Top 10 é o caralho — Arte leva tempo

Bruna Rocha
Diálogos da Incerteza
5 min readJun 22, 2020

Conheci o RAP com profundidade aos 19 anos — 10 anos atrás. Um amigo que na época abrigava eu e meu então companheiro, casal de andarilhos sem teto, estava viciado no DVD dos Racionais e ele passava o dia todo escutando aquilo. Não teve jeito, ali eu entendi o que o RAP tinha a fazer comigo — sentir, refletir, me indignar e extravasar, na mesma proporção — nunca mais parei. O RAP me ensinou a derrubar a barreira entre o erudito e o popular, mostrando que da rua é que sai a escrita mais sofisticada e sagaz, o ritmo mais desconcertante, a poesia mais malassombrada — e todo mundo entende — ou pode entender.

Quando cursei a disciplina de Estética e depois de Comunicação e Cultura Contemporâneas, comecei a entender algumas das tensões que atravessavam meu consumo de música e aprendi a dar nomes a processos de cunho político-filosófico que perpassam dimensões como fruição, gosto, sensibilidade e interpretação na relação com a arte.

A arte, campo do saber e do fazer que se articula ao sensível, durante um tempo foi algo inacessível às massas e feito pelas e para as elites, com objetivo de trabalhar a ‘evolução moral e espiritual’ destes sujeitos. Mas no sentido da arte como obra de consumo, com legitimidade social Falava-se em aura, como esta atmosfera metafísica a qual através da contemplação o indivíduo podia se conectar com a essência da obra e desse contato sair melhorado, evoluído e ‘culto’. Obviamente estou falando da institucionalidade, de quando arte era aquilo que se via em museus, igrejas, galerias, concertos — pois é óbvio que, do ponto de vista do exercício do sensível na produção de saberes e fazeres, o povo sempre fez e consumiu arte.

O advento da indústria cultural inaugura o fenômeno da ‘obra de arte da era da reprodutibililidade técnica’, expressão que dá nome a um texto clássico do Walter Benjamin, integrante da Escola de Frankfurt, a mais proeminente escola marxista de crítica ao capitalismo e sua transformação da arte em mercadoria. O problema é que a Escola de Frankfurt, ao produzir sua crítica, afirmava que os sujeitos que consumiam os produtos da indústria eram todos homogêneos, massa de manobra e incapazes de exercitar a fruição estética devido à alienação provocada pelo trabalho, através dos meios de produção, controlado pela burguesia.

Mas então todo mundo é burro, alienado e incapaz de construir gosto?! Na leitura da Escola de Frankfurt, sim. Na minha, definitivamente, não. Mas o que é que toda essa discussão tem a ver com o rankeamento dos artistas do ano, álbuns e caralhos a quatro do ano, que todo ano despontam nas redes sociais como termômetro de avaliação da produção artística no Brasil e no Mundo?

Quero voltar ao começo do meu raciocínio pra dizer: nem tão ao céu e nem tão ao mar. Creio que o advento da indústria cultural e todas as plataformas de massificação dos produtos de arte e cultura cumpriram um papel importante em democratizar a arte. Aqui no Brasil temos o excelente exemplo dos festivais de música que coroaram ícones e lançaram talentos, hinos e afrontaram ditaduras nos anos 60 e 70. Se não fosse a televisão não teriam tanta repercussão. Neste sentido, não concordo com a máxima de que tudo que é popular, massivo e comercial é ruim. Tem muita coisa boa sim.

Mas tem um aspecto da preocupação dos frankfurtianos que segue latente e que eu gostaria de evidenciar: a questão do tempo.

O tempo do capitalismo é o tempo do dinheiro, o qual, na era da mediatização, é o tempo do algoritmo, ou seja, mais rápido que a luz. A arte é outra coisa, a arte tem outro tempo e tem que ter, porque a arte é o que nos mantém humanos em uma sociedade rumo à robotização. No entanto, como artistas de carne e osso precisam sobreviver, estes se submetem à lógica da indústria, que, por sua vez, é dirigida pela lógica algotimica do capitalismo de dados. Ou seria de dardos? Não serei o alvo.

As novas tecnologias da comunicação vêm cumprindo um papel ambíguo do ponto de vista da produção artística, tal qual os meios massivos cumpriram outrora. Elas servem para democratizar, lançar novos talentos, ser espaço de compartilhamentos, trocas e pontes, onde qualquer sujeito pode produzir, consumir, sem barreiras, a não ser a mensalidade do wifi (INTERNET LIVRE E UNIVERSAL JÁ!). Mas também servem para deixar ainda mais frenético o ritmo do consumo e da produção, o que termina por artificializar um processo que deveria ser orgânico e denso, que é o da fruição estética e também o da produção artística.

E aí viramos um celeiro de loucos e loucas, querendo ouvir tudo e todos ao mesmo tempo, produzir opiniões em tempo real e lançar discos na velocidade dos algoritmos. Não tem sanidade que aguente. É neste contexto que os rankeamentos dos álbuns do ano, dos artistas, das músicas, começam a virar uma grande armadilha para a produção e o consumo de arte, pois reproduzem exatamente a lógica exclusivista, numerizada e financeirizada das grandes gravadoras e dos grandes oligopólios de mídia. Quem disse que a mais escutada é a melhor? Qual o parâmetro? Como dizer o que é bom e o que não é se o consumo é tão subjetivo e as condições de produção e distribuição tão desiguais? Então temos listas que, por exemplo, excluem descaradamente a produção de mulheres, LGBts, nordestinos e quaisquer setores que estejam fora desta coisa nojenta chamada mainstream.

É preciso virar a chave e exercer a crítica. A galera acha que é chatice nossa, mas as vezes é preciso mesmo ser chata pra apontar os equívocos, e o rankeamento de artistas e produções, principalmente no RAP — gênero musical fundamentalmente contra-hegemônico — é um puta equívoco. Top 10 são listas vazias, marcadas por desigualdades, disparadoras de gatilhos e frustrações numa era em que os simulacros das redes alimentam populações em depressão e retroalimentam padrões adoecedores, em um ritmo sobrehumano de competição. É tudo lixo, é comer reggae da obsolescência programada. Os rankings não fodem só quem está de fora, fodem também quem está dentro, com a pressão miserável de se manter na carniça dos TOPs no ano seguinte.

Não caio nessa armadilha, mesmo tendo uma tendência capricorniana a enumerar as coisas e construir rankings mentais, eu os guardo pra mim, pois não acho justo contribuir com uma cultura de pasteurização daquilo que sobrou de mais verdadeiro no mundo de mentiras do capitalismo global: a arte.

Agora vou deitar na minha rede e continuar escutando o disco do Nego Gallo — o Veterano, acho que vou precisar de uns anos pra entender tudo que ele tá falando. Quero arte sem pressa, sem pressão, sem competição. Viva o RAP nacional, viva a cultura popular, viva a quem resiste à guilhotina de moer gente do capitalismo cultural, viva a quem se nega a ser another brick in the wall.

  • Texto publicado originalmente no Oganpazan
  • Bruna Rocha é jornalista, escritora, ativista diaspórica e mestranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Pesquisa a relação do discurso com os processos de mediatização da sociedade e é idealizadora do Diálogos da Incerteza.

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Bruna Rocha
Diálogos da Incerteza

Jornalista, ativista, mestranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas e pesquisadora em Análise do Discurso. Ativista, feminista, afro-latina em diáspora.