Diálogo Elétrico: Carlos Eduardo Pereira

Uma conversa com o autor de "Enquanto os dentes"

Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos
9 min readMar 20, 2018

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Nesta edição do Diálogo Elétrico vocês vão ler o papo que tive com o escritor Carlos Eduardo Pereira, nascido e criado na Ilha do Governador, foi professor de história e servidor público. Em 2012 fez graduação em produção de textos no Departamento de Letras da PUC-RJ. Em 2018 publicou seu primeiro romance, "Enquanto os dentes" (Todavia), uma narrativa que atravessa as dores e dificuldades do cadeirante Antônio durante um dia chuvoso em que está de mudança do seu antigo apartamento para a casa dos pais. Ele precisa cruzar a baía de balsa, seguir um caminho que ele não quer ir, em uma cidade que ignora quem não anda.

A conversa aconteceu no início de março de 2018.

Gabriel Pardal: Carlos! Me diz onde você está agora. Está em casa? No computador ou celular? Aqui onde estou, na minha casa em Botafogo, está chovendo. São quase oito da noite e estou colocando meu filho de oito meses pra comer.

Carlos Eduardo Pereira: Cara, tô em casa também, minha filha Alice, 5 anos, tá aqui enrolando pra jantar e tô no celular. Tá chovendo no Flamengo também.

Você escreve todos os dias? Escreveu algo hoje?

Escrevo todo dia. A hora que dá, do jeito que dá, hoje escrevi sim, tô no meio de um projeto de romance, escrevi num caderno que eu tenho e anoto tudo que vem à cabeça, mais tarde passo pro computador.

Como eu disse, tô com filho pequeno, e como você sabe demanda muito do nosso tempo e da energia física e psicológica. Não me lembro agora quem disse “Filhos ou livros”. Por exemplo agora, dou uma colher de comida, meu filho aceita ou rejeita, chora, reclama, e no meio disso penso numa pergunta pra fazer pra você. Como foi pra você nesse início da paternidade e como funciona pra você sua rotina como escritor?

Tô pra te dizer que a paternidade foi, e é, a melhor coisa que me aconteceu. A gente fez umas mudanças na casa, tinha uma bancada e tal, pra eu poder contribuir trocando uma fralda ou dando um banho. E funcionou bem. Hoje tento manter alguma rotina, e é me baseando na rotina da Alice que eu me viro melhor. De manhã eu fico por ela, trocando uma ideia, brincando no play. De tarde ela tá na escola, então aproveito pra trabalhar.

Você acabou de publicar “Enquanto os dentes”, seu primeiro romance. Explica um pouco sobre o que é o livro e como foi o processo de escrita dele, quanto tempo levou pra escrever, o que tinha em mente, onde, quando…? Essa é sempre minha maior curiosidade, como alguém criou uma obra.

Eu queria escrever sobre alguém que é forçado a fazer o movimento de volta pra casa, depois de tentar alguma coisa diferente do que estava previsto e falhar. Me interessava isso de dar com a cara no muro. Levei uns dois anos escrevendo, primeiro tentando encontrar o narrador, depois foi organizar as anotações todas e deixar que ele falasse.

O protagonista, Antônio, é um cadeirante na casa dos 40 anos que desiste de viver sozinho e decide voltar a morar com os pais, com quem não fala há duas décadas. A narrativa acompanha o percurso de Antônio, da Zona Sul carioca à casa dos pais em Niterói. Nesse trajeto seu livro mostra um olhar revelador sobre a cidade do Rio de Janeiro. Uma cidade cheia de contrastes, que é muito desigual e que tem muitas barreiras. O protagonista reflete tudo isso.

No livro, a Baía de Guanabara ocupa simbolicamente um lugar de fronteira, alguma espécie de portal entre pelo menos dois Rios de Janeiro. O tempo todo o narrador faz referência ao “lado de cá” e ao “lado de lá”, que pode ser tanto Niterói quanto Paquetá, tanto o subúrbio quanto a favela, é uma transição geográfica relacionada a transições sociais, culturais, emocionais (dos personagens). E o Rio é muito isso, acho positiva essa disposição única que junta praia com morro com floresta, tudo ao mesmo tempo, mas há também o cara que mora (e trabalha e estuda) em Santa Cruz, em Campo Grande, na Ilha do Governador, que, se depender deles, nunca sairão de lá. Conheço adultos da zona oeste que nunca foram ao centro da cidade, jovens que jamais saíram da Barra da Tijuca. Me interessa olhar também pra esse movimento interno regional que existe por aqui e nem sempre aparece.

O Rio sempre foi uma cidade muito presente na literatura, não é? Machado de Assis, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, as crônicas do Rubem Braga, etc. A partir do século XXI parece ter havido um enfraquecimento na cena literária carioca, pelo menos na produção de prosa de ficção. Como você vê a atual cena literária da cidade?

Pois é, cara, dá essa impressão mesmo, né, se comparada à de São Paulo ou Porto Alegre ou Brasília parece que a produção de prosa de ficção daqui é quase nada. O que não é verdade, claro, tem muita gente boa escrevendo, buscando espaço. O problema talvez esteja mesmo aí, numa falta de visibilidade pra uma galera que tá nas oficinas, nos coletivos de escrita, na internet, nas faculdades. Sinto que esses grupos não se articulam tanto, a cena carioca acaba diluída e, honestente, eu não sei o motivo.

Continuei pensando aqui nesse problema que você levantou: isso não rola com a poesia. Aqui tem muita iniciativa ligada à poesia, tá cheio de poeta bom demais produzindo, e publicando, e agitando a cena, a gente percebe concretamente.

Não sei se é porque eu venho das oficinas de escrita, e nelas, pelo menos nas que rolam por aqui, a produção é muito voltada pros contos, e aí vem aquele papo de que as editoras não estão interessadas em publicar contos e tal, mas aí é uma outra discussão.

Curiosamente os autores que citei acima têm uma notável obra de contos e crônicas. Eu gosto muito de narrativas curtas, na verdade é meu gênero favorito. Gosto de começar a ler um texto e acabar no mesmo dia, ou dois, três dias depois. Por que você acha que as editoras se interessam pouco em publicar contos?

Outro mistério. Também gosto muito de ler, e escrever, narrativas curtas, mas tem isso mesmo de um relativo desinteresse em se publicar o gênero. No Brasil tem muita editora média fazendo um ótimo trabalho, a Oito e Meio, a Patuá, um pouco na contramão dessa tendência. Talvez seja uma lógica de mercado (assunto de que eu entendo nada, mas): as editoras grandes têm mais dinheiro, então podem investir no mais seguro, podem pagar, por exemplo, pelos direitos de livros que já são sucesso de vendas no exterior. Acontece que lá fora o perfil de leitor é diferente, os caras lêem mais, e o modelo romance é o preferido. Pode ser que isso influencie na produção nacional, um autor talvez pense que seu trabalho, se for um romance, tem mais chances de ser traduzido e circular em outros países. (Devo destacar que acredito firmemente que a gente tem que escrever o que a gente tem que escrever, independentemente qualquer outro fator.)

Voltando ao livro, como está sendo a repercussão? O que você pode dizer da experiência de lançar um romance em uma editora que, embora seja nova, está com ótimo destaque no mercado principalmente por ser formada por profissionais experientes. O que você tem sentido como retorno?

A repercussão tem sido excelente, maior do que eu esperava. Eu nunca havia tido um livro publicado, me falta referência anterior, mas posso dizer que minha experiência com a Todavia está sendo incrível. A equipe trabalha muito bem, a distribuição do livro é bacana, rola uma visibilidade legal, mas o que mais me imprecionou, e me deixou mais satisfeito, foi o cuidado que eles sempre tiveram com o texto. Desde o primeiro momento a gente criou um diálogo eficiente em cima das coisas do texto, foram trocas de verdade, e, honestamente, eu nem esperava, imaginei que profissionais tão experientes e reconhecidos no mercado pudessem impor suas ideias aqui e ali, mas não foi o que aconteceu, não houve nenhuma alteração no texto sem que eu estivesse plenamente de acordo. O resultado me agradou demais.

E todo esse processo de apresentar o livro pra editora, a edição e finalmente a publicação, levou quanto tempo?

Seis meses mais ou menos, assinamos contrato em maio e o livro saiu em novembro. Mas o processo de edição foi bem rápido, houve poucas trocas de mensagens, tudo funcionou muito bem.

Um trecho do livro: “A lesão na medula é relativamente alta, o que acaba por comprometer seus movimentos e a sensibilidade do tórax para baixo. Ele não sente nada. Ou sente dores, e essa é a contradição em sua cabeça. (…) Doem os braços, as mãos e as costas. (…) A camada mais externa da pele pinica, arde, formiga. Antônio é capaz de cada vez menos. Com as limitações físicas, foi perdendo trabalhos, não entra mais na maioria dos lugares, não alcança determinadas alturas, não tem a mesma disposição de outros tempos. Passou a ver tudo por baixo.”
Como surgiu essa história pra você?

A história do Antônio é mais uma história de fracasso. Já estava escrevendo quando me ocorreu que a condição de cadeirante se encaixava bem nele, então larguei de umas bobagens que eu tinha (pensava que pra escrever ficção eu precisava me afastar o mais possível da minha realidade concreta) e fui construindo o personagem, e reestruturando a trama, usando muitas de minhas experiências pessoais.

Por falar nisso, no livro você coloca as tradicionais calçadas de pedras portuguesas da orla do Rio, cheias de irregularidades, como um problema para Antônio, que tem que fazer seu percurso numa cadeira de rodas. Além disso, a inexistência de banheiros públicos adaptados e a dificuldade para encontrar meios de transporte com espaço para cadeirantes são alguns dos obstáculos que Antônio tem que enfrentar. Você é cadeirante e escreve com conhecimento de causa sobre o assunto. A “cidade maravilhosa” mostrada por outro ponto de vista não é tão maravilhosa assim.

Isso, o narrador do livro diz algo assim: nem todo mundo ideal é tão ideal quanto a gente gostaria. A cidade tem muitos problemas, muitos deles embaçados por essa beleza toda que temos por aqui, e acho legal que o livro possa jogar alguma luz sobre alguns desses problemas, sob uma perspectiva a que nem todos têm acesso. Antônio ser um personagem cadeirante abre muitas possibilidades pra construção narrativa. Como eu sou cadeirante tem mesmo isso de escrever com conhecimento de causa sobre o assunto, consigo abordar aspectos que fazem parte do dia a dia de um cadeirante (ou do meu dia a dia como cadeirante) que nem todo mundo conhece, o que é literariamente interessante. As pedras portuguesas são um bom exemplo, elas são bonitas e tal, fazem parte do cenário da cidade, mas nem todo mundo percebe que elas podem não ser a melhor opção em se tratando de mobilidade urbana, por essas irregularidades que você mencionou.

Aí a gente entra naquela questão de que toda escrita é uma escrita sobre si, não é?

Necessariamente, mas o bacana é que isso não é um problema, pelo contrário.

Vamos falar do contrário. Você tem formação? Trabalha ou trabalhou muito tempo em alguma coisa? Se não, o que você faria se não fosse escritor?

Cara, eu sempre fui professor, minha formação original é em História, e ainda trabalhei alguns anos no Judiciário, hoje sou servidor aposentado.

Professor, História, Judiciário, Aposentado… São palavras que a gente tem ouvido muito nos último tempos. Me diga uma coisa… Atualmente o que lhe motiva escrever?

Escrever é bom demais, é muito divertido, então quando a gente encontra isso na vida (algo tão bom, e tão divertido) é isso mesmo que a gente tem que fazer, enquanto der.

Camarada, muito obrigado pelo seu tempo e disponibilidade. Foi massa conversar contigo sobre o livro e o processo. Como sempre no final eu peço para indicar uma dica de livro, filme e disco.

Velho, muito obrigado pelo papo, curti bastante a experiência. Vamos em frente.

Dicas:

Livro: sempre que me perguntam, eu costumo indicar o que estou lendo no momento, e o da vez é o Tudo pode ser roubado, da Giovana Madalosso, demais esse livro, tem uma narradora que te fisga logo nas primeiras páginas, vale muito a pena.
Filme: acabei de assistir ao Corra!, gostei muito, filme inventivo, me surpreendeu, quem ainda não viu, veja.
Disco: tenho ouvido todos os dias um disco do Martinho da Vila que eu adoro, o Samba Enredo. Também não larguei ainda o Wildflower, dos Avalanches.

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Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/