Diálogo Elétrico: Giovana Madalosso

Uma conversa com a autora de “Tudo pode ser roubado”

Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos
9 min readAug 31, 2018

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Nesta edição do Diálogo Elétrico vocês vão ler o papo que tive com Giovana Madalosso. Giovana nasceu em Curitiba, em 1975, mas mora em São Paulo. Dois anos após lançar o elogiado livro de contos "A Teta Racional" (Grua), a escritora publica o romance, "Tudo pode ser roubado" (Todavia). O livro é narrado por uma garçonete de um badalado restaurante de São Paulo, que costuma aproveitar encontros fortuitos nas casas de homens e mulheres aleatórios para roubar roupas de grife e objetos de valor. Até que surge um desconhecido no restaurante lhe oferecendo muito dinheiro para roubar um livro: a primeira edição de "O Guarani", de 1857, arrematada em leilão por um professor universitário que se recusa a vendê-la. Com uma escrita envolvente e personagens cativantes, o livro transmite uma visão mordaz da elite paulistana.

A conversa aconteceu entre Julho e Agosto de 2018.

Gabriel Pardal: Vamos começar pelo começo. De onde você é, quando a literatura surgiu na sua vida, o desejo de ser escritora e como começou a escrever?

Giovana Madalosso: Eu sou de Curitiba, e foi lá que a paixão pela literatura surgiu para mim, quando criança, através de livros como "Grimble" e "O apanhador no campo de centeio", que li ainda antes da adolescência. É curioso porque leitura e escrita são quase a mesma coisa para mim, frente e verso de um mesmo tecido, nunca dissociadas. Escrevo desde que comecei a ler, desde que me alfabetizei. E o desejo de ser escritora deve ter surgido nessa época, talvez antes mesmo de eu saber que ofício era esse, pois aos oito ou nove anos já compunha poemas sofríveis, peças de teatro e inventei até uma língua, com gramática e tudo, para desespero da minha melhor amiga, que foi obrigada a aprender o idioma para se comunicar comigo. Desde então, segui escrevendo, em alguns períodos mais, em outros menos, até finalmente encontrar minha voz narrativa, aos trinta e poucos anos, e me sentir pronta para publicar.

Você deveria colocar isso na sua biografia: “inventou uma língua”, junto dos livros que escreveu. Mas você estudou Letras? Fez alguma faculdade?

Fiz jornalismo na UFPR. Nunca estudei Letras.

Você publicou seu primeiro livro, "A Teta Racional", em 2016. Imagino que tenha escrito após o nascimento da sua filha, por colocar questões sobre maternidade. Como foi que surgiu a ideia do livro e quanto tempo levou no processo da ideia até finalizar? Como foi?

Nunca planejei escrever "A Teta Racional", nem sequer um volume de contos sobre a maternidade. Como costuma acontecer comigo, escrevi sobre assuntos que estavam me intrigando ou angustiando naquele período. Quando parei para analisar a minha produção, eu tinha cerca de vinte contos, e os melhores passavam pela maternidade, talvez porque a mesma ainda estivesse palpitando dentro de mim. Então tudo o que precisei fazer foi selecionar os contos e organizar a sua ordem, algo que faço de uma forma peculiar, escrevendo o nome de cada um num papel e depois enfileirando esses papéis, testando sequências e tentando entender que grande história aquelas pequenas histórias podem contar. Feito isso, foi hora de dar nome ao livro, e assim surgiu "A Teta Racional", um título controverso que, quanto mais as pessoas rechaçavam, mas eu tinha convicção em manter.

Por que rechaçaram o título? Não acompanhei essa polêmica — aliás, não tenho talento pra acompanhar polêmicas.

Algumas editoras para onde mandei o original acharam o título chulo, sugeriram que eu trocasse. Depois de publicado, o título também foi criticado por algumas pessoas nas redes. O problema era a palavra teta, que não soava natural para alguns. Nessa época, eu passava o dia amamentando, manuseando a minha teta, e pensei: anti-natural pra quem? Eu até podia trocar a palavra por seio, como alguns sugeriram, mas claro que não funcionava, era de teta mesmo que eu precisava falar, da doação animalesca da maternidade. Pela primeira vez, me dei conta que a língua também pode exercer uma forma de dominação. Quem dá as cartas do vocabulário que devemos usar? Manter teta no título tornou-se para mim um gesto de resistência, um prazer.

Uau. Não imaginava que tinha sido por isso. Achei que tinha sido pela palavra Racional. As pessoas se ofendem com a palavra Teta mas não se ofendem com a palavra Racional. Você escreveu “A Teta Racional” quando morava em Curitiba? Ou já estava morando em São Paulo? À propósito, pode contar porque saiu de Curitiba e foi pra São Paulo?

Escrevi em São Paulo, onde moro há 18 anos. Mudei para cá porque sempre gostei de cidades grandes, cosmopolitas. Tanto que antes de vir para São Paulo morei também em Nova Iorque.

Neste livro você mostra uma diversidade de vozes femininas desconstruindo pré-conceitos sobre elas mesmas, propondo repensar padrões relacionados à mulher. São personagens que não estão muito presentes na literatura do país. Há um tempinho atrás rolou uma pesquisa que mostrava que os personagens da literatura contemporânea são em sua maioria homens, brancos, classe média, cis. Me explica um pouco quem são as suas personagens, ou melhor, como elas são criadas por você. E como o livro foi recebido por aí?

Como a maioria das mulheres, eu fui criada lendo autores homens. Até os 35 anos, quando parei pela primeira vez para pensar nesse assunto, as minhas maiores referências na literatura eram masculinas. E, naturalmente, durante anos, como acontece com qualquer escritor iniciante, que ainda procura a própria voz, escrevi influenciada por homens e suas temáticas. Um dia, um grande amigo e também grande escritor, Luís Henrique Pellanda, leu um dos meus contos, cujo o narrador era um homem que não tinha nada a ver com o meu universo, e disse: “escreva sobre o que você conhece, teu texto vai ganhar mais profundidade”. Foi um conselho transformador. Perceber minhas próprias (e triviais) histórias como dignas de serem contadas mudou tudo para mim. Encontrei rapidamente minha voz narrativa, passei a escrever com mais fluidez. Claro que nem tudo são flores. Quando "A Teta Racional" ficou pronto, dei o manuscrito para alguns jornalistas, editores. Ouvi de alguns, inclusive de uma mulher: quem vai se interessar pela história de uma mãe amamentando? Quase metade da população, eu disse. No mínimo todas as mulheres que já amamentaram ou pretendem amamentar um dia. Não me deram muito ouvido. Isso foi um pouco antes da primavera feminista, um pouco antes de as editoras saírem desesperadas atrás de mulheres para equilibrar os seus catálogos. Então, voltando a sua pergunta, de como "A Teta Racional" foi recebida pelo público: com um surpreendente interesse, e por um motivo simples, porque as mulheres ainda são carentes de histórias sobre mulheres.

É impressionante isso. Eu posso imaginar a desgraça (não tem palavra melhor, desculpa) que é perceber que passou a vida inteira só lendo autores masculinos. E olha que você está falando de provavelmente 99% das leitoras do mundo até hoje. Um dos melhores acontecimentos no universo literário dos últimos tempos é que essa questão apareceu e o cenário começou a mudar. Começamos a perceber quantas autoras incríveis existiram, existem, e estão escrevendo.
Quais livros e escritoras você leu, após os 35 anos, que fizeram a sua cabeça?

1. "Vozes de Tchernobil", Svetlana Aleksievitch
2. "Paisagem com dromedário", Carola Saavedra.
3. "Tudo o que tenho levo comigo", Herta Muller.
4. "O livro das semelhanças", Ana Martim Marques
5. "Acre", Lucrecia Zappi

Bom, essa questão nos traz para seu livro novo. “Tudo pode ser roubado”. Como surgiu a ideia e como foi o processo de escrita do livro?

A ideia de "Tudo pode ser roubado" surgiu quando fui mexer na minha gaveta de contos. Encontrei um conto inédito, que eu havia deixado de lado por ser muito longo. Era narrado por uma garçonete ladra. Na hora, percebi que ali tinha uma personagem com bom potencial narrativo e diferente de qualquer outra, algo que me deixou animada, pois naquele momento eu estava querendo fugir das mesmas representações do feminino na ficção. Assim me apaixonei pela minha própria criatura e, em seguida, fui procurar uma história para ela, pensando o que ela poderia roubar. Lembrei da visita que fiz a um negociante de livros raros certa vez em Lisboa, de ter ouvido que uma primeira edição de "Dom Quixote" podia chegar a quase quinhentos mil Euros. Na ocasião, fiquei curiosíssima para saber quem comprava essas edições, para entender o fetiche por objetos que, muitas vezes, mal podem ser manuseados, de tão deterioradas as encadernações. Então o "Tudo pode ser roubado" nasceu daí: do encontro de uma personagem com um universo, e do meu desejo de investigar a relação das pessoas com o mundo material, com o prazer, obviamente efêmero, gerado por certas aquisições. Sobre o processo de escrita: escrevi o romance ao longo de um ano e meio, com alguns intervalos.

Quais livros da sua estante você detestaria que fossem “roubados”? Não vale dizer todos. Cite pelo menos três.

A minha coleção de livros do Roberto Bolaño em espanhol, da Anagrama, e uma edição de "O Apanhador no Campo de Centeio" que ganhei da minha mãe quando fiz treze anos.

Ha. E que livro você já desejou roubar?

Vou mudar um pouquinho a sua pergunta, espero que não se importe. Eu desejaria roubar algum livro que tenha pertencido a Simone de Beauvoir, de preferência dado por Sartre, e cheio de anotações feitas por ela nas margens e rodapé.

Como foi a experiência de escrever o romance? No que difere da escrita dos contos? Criou algum método, disciplina de trabalho?

Estou no meu segundo romance e já posso dizer que escrever um romance é uma experiência apaixonante, embora também dolorosa. Apaixonante por ser uma aventura, por darmos largada sem saber muito bem onde vamos chegar. Acho que nisso o romance difere bastante do conto, ao menos para mim. Por ter um espaço delimitado, o conto precisa de uma rota mais definida. Com o romance me sinto mais livre. Numa primeira etapa, vou juntando anotações num caderno e também fotos, recortes de jornal, documentos, bula de remédio, enfim, qualquer fragmento que possa se relacionar com a história que pretendo contar. Depois começo a delinear essa história, e nesse momento lanço mão de um recurso que me ajuda muito: uma parede de cortiça. Ali eu traço um arco narrativo e vou grudando em volta todos os fragmentos que juntei. Só então começo a escrever. Claro que no decorrer desse processo, outros elementos surgem, a escrita toma novos rumos, a parede de cortiça ganha nova aparência. Em termos de disciplina, quanto mais eu escrevo, mais eu me envolvo, mais fundo eu mergulho, e melhor eu rendo. Então procuro dividir minha vida em dois momentos: passo alguns meses trabalhando como freelancer, depois alguns meses só dedicada a literatura.

E nesses momentos você escreve a qualquer hora? Ou prefere as manhãs, as madrugadas…?

Prefiro as manhãs, quando o cérebro está mais limpo. Mas tenho uma filha de seis anos, então escrevo na hora que dá.

Duas coisas que percebo na escrita do livro é que, primeiro, é uma narrativa bem cinematográfica e visual, e, segundo, as personagens não são nada óbvias. Soube que você estudou Roteiro em NY, você credita à isso esse estilo? Tanto da narrativa como da criação de personagens?

Acredito que não, pois meu texto tem essa inclinação imagética desde que eu comecei a escrever mais a sério, aos dezoito anos, portanto antes do curso de roteiro que fiz na New York University. A escolha por personagens pouco óbvios também não vem desse curso. É uma preferência pessoal minha, na literatura e na vida, estar rodeada de tipos singulares. Digamos que meus personagens são figuras com as quais eu gostaria de tomar uma cerveja. Mas há outras coisas que devo creditar ao curso de roteiro que fiz na NYU: a afiação dos diálogos e o entendimento da máquina narrativa, de como as peças se encaixam para contar uma história, e de como esses encaixes, feitos de tal ou tal forma, produzem uma história melhor ou pior. É uma coisa bem americana, quase uma fórmula, mas já gerou filmes brilhantes, e até para desconstruí-la é útil sabê-la.

Inclusive é sabido que seu método para escrever essas narrativas envolve um tempo de pesquisa em que você junta imagens, recortes de jornais e anotações, tudo numa parede. Achei isso bastante interessante e fiquei curioso. Você é do tipo que procrastina para escrever? Acha escrever doloroso? Se diverte escrevendo? Abdica de certos compromissos para escrever? Se perde, se encontra, se dilacera…? Como é?

Boa pergunta. Minha relação com a escrita é complexa, tenho momentos de prazer, quando escrevo com fluidez, e também de dor, quando a escrita não anda, ou anda claudicante, o que me deixa bastante ansiosa. Em geral, sou disciplinada, mas isso também não é regra, acho que nada é regra quando trabalhamos a partir de sentimentos e percepções difusas. Costumo escrever no período da tarde, enquanto minha filha está na escola, mas às vezes um trecho bom surge quando estou quase dormindo e me levanto e vou escrever, porque tem um calor do texto que não gosto de desperdiçar, as frases escritas pelo inconsciente, num primeiro rompante, geralmente são as melhores. Por ter esse grau de inconstância, esse caráter fugidio, a escrita nem sempre é fácil para mim. E, por não ser fácil, me programo um pouco antes de escrever, para não empenhar meu pouco tempo quase inutilmente — e digo quase inutilmente porque as boas páginas também são feitas das páginas que jogamos fora. Outra coisa boa de trabalhar com uma certa diretriz narrativa é que, quando sento para escrever, fico livre para pensar só na linguagem, nas sutilezas do texto, o que, no final das contas, é o que mais importa.

Dicas

Disco: Recomeçar, Tim Bernardes.
Livro: Com armas sonolentas, Carola Saavedra
Filme: Juventude, Paolo Sorrentino

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Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/