Diálogo Elétrico: Julia Wähmann

Uma conversa com a escritora de “Cravos”

Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos
10 min readOct 12, 2016

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Esta aqui é a segunda edição do Diálogo Elétrico, série de conversas que estou começando a fazer com artistas pelo chat do Facebook. A ideia é conversar informalmente sobre as atividades profissionais, os interesses pessoais, reflexões, pensamentos e o que mais surgir no momento. A conversa deve seguir seu fluxo com questões nem sempre abordadas numa entrevista convencional, e o bate-papo virtual é perfeito para isso.

Conversei com a escritora Julia Wahmann. Ela nasceu em 1982, no Rio de Janeiro, em 2015 publicou “Diário de Moscou” (Megamíni/ 7Letras) e “André quer transar” (Pipoca Press) e, em 2016, “Cravos” (Record). E escreve para o Ornitorrinco desde 2014.

A conversa aconteceu entre as 20h30 e 23h da segunda-feira 11 de outubro de 2016.

Gabriel Pardal: Primeiro eu queria conversar sobre o livro Cravos. Queria que você me explicasse sobre essas duas influências, a dança e a literatura, como você convergiu isso em um livro, no que elas se diferem e no que elas se assemelham.

Julia Wähmann: Eu comecei a fazer aulas de balé quando era uma criança analfabeta e não parei até os 22 ou 23 anos. Dali em diante não consegui manter o ritmo, por questões ortopédicas e de trabalho, mas fui fazendo aulas quando dava. A dança sempre foi, portanto, uma parte importante na minha formação, tanto pelo lúdico quanto pela disciplina, que são duas coisas que a literatura também oferece. Acho que essa é a primeira relação que consigo estabelecer entre as duas atividades.

Do aspecto da disciplina, ambas exigem uma dedicação e um estado de atenção que acho bem parecidos, são duas coisas que me capturam muito facilmente. Consigo mergulhar nos dois universos sem maiores dificuldades, fazer deles pequenos mundos. O que talvez já seja o gatilho do lúdico: além de fazer parte de outros ambientes, você começa a ter necessidade de inventá-los também, com as respectivas ferramentas. Tanto a dança quanto a literatura permitem criar esses espaços.

Gabriel Pardal: O texto é fragmentado, e assim acaba criando no mínimo dois tipos de leitura. O primeiro é o convencional, do início ao fim do livro. O segundo é mais espaçado, como poesia, cada fragmento parece conter cifras, detalhes, códigos que contam essa história. Como surgiu a personalidade do Cravos?

Julia Wähmann: O Cravos tem duas fontes principais: uma pesquisa de um curso de pós-graduação em letras na PUC-Rio, e um blog que escrevi por uns dez anos (talvez ainda escreva, não sei mais!).

Para o trabalho da PUC, escolhi falar sobre a dança da Pina Bausch, coreógrafa alemã morta em 2009 que habita sobretudo a segunda metade do livro. Eu tinha que descrever algumas cenas dos balés pra situar o leitor, e comecei a gostar desse exercício. Depois que o texto da monografia decantou um pouco, percebi que as cenas descritas falavam muito sobre várias outras coisas, relacionamentos, encontros, e que poderiam ser uma espécie de tradução ou versão para acontecimentos banais. Descrever alguém que se contorce para tirar uma fotografia, por exemplo, poderia resultar numa coreografia.

Paralelamente, eu tinha bastante coisa no blog que eu já queria usar para alguma narrativa, e tudo isso já estava, naturalmente, escrito aos pedaços. A dança da Pina Bausch é toda ela uma colagem de cenas, situações e músicas também, então não tinha muito como escapar da forma.

É curioso que a maioria das resenhas e comentários que leio e ouço batam nessa tecla da poesia, como se ela estivesse colada ali. Eu leio muito poesia, tenho certa inveja, até, de quem escreve poesia, portanto acho um luxo que vejam minha prosa assim!

Gabriel Pardal: Mas não é de jeito nenhum o que se entende por “prosa poética”, é outra coisa, está mais para o conteúdo e ritmo do que estilo. É uma sensação. Interessante saber que outras pessoas tiveram a mesma sensação.

Julia Wähmann: “Prosa poética” é meio cafona, né?

Gabriel Pardal: Totalmente. Totalmente. Parece nome de doença. “Tô sofrendo de prosa poética”, tipo isso.

Julia Wähmann: Hahaha talvez seja! Isso que você falou da sensação… Acho que a poesia é bem instantânea. Você bate o olho e pá. Talvez o livro tenha isso.

Gabriel Pardal: Você se considera muito racional? Porque há uma racionalidade em como você escreve sobre os sentimentos, os afetos dos personagens.

Julia Wähmann: Sim, acho que sou bastante racional. E acho que não escreveria se não fosse. Escrever é também uma maneira de organizar algumas bagunças, por mais racional ou pragmático que possamos ser. Até porque, ser racional não significa falta de inquietude ou dilemas e afins.

Gabriel Pardal: Claro, claro. Eu também sou bastante racional. Gostar de ler e escrever tem relação com isso também.

Julia Wähmann: Isso. Na vida prática, o excesso de racionalidade até atrapalha, porque muitas vezes você se pega debatendo coisas, pesando com você mesmo, e acaba meio paralisado. Na literatura acho que é o contrário. A racionalidade vem como autocrítica, como norte para diversos caminhos.

Gabriel Pardal: Você tem alguma espécie de ritual para escrever? Descreva como é para você um dia ótimo para escrever?

Julia Wähmann: Não tenho muito ritual, não. Às vezes faço anotações em cadernos ou no celular, mas nunca me estendo muito com isso, normalmente são notas bem pontuais, lembretes. Geralmente o texto vai se formando na minha cabeça, fico pensando uns dias naquilo e então ligo o computador para escrever.

Durante um tempo era mais comum fazer isso à noite, por causa de horário de trabalho. Agora que já não tenho horários tão rígidos, fiquei mais flexível.

Gabriel Pardal: E para ler? Quando você lê?

Julia Wähmann: Em qualquer hora e lugar. Eu tenho uma mania de andar com o livro (ou um dos livros, quando estou lendo mais de um ao mesmo tempo) da vez dentro da bolsa. Leio em salas de espera, no trânsito de Botafogo. Hoje faltavam 3 páginas para terminar um livro quando a criatura do laboratório me chamou pra fazer um exame e eu quase pedi pra ela me dar mais uns minutinhos, depois me peguei lendo parada na rua, esperando o sinal de pedestre ficar verde, de tão obcecada.

Trabalhei anos numa editora em que, dentre outras coisas, eu lia para avaliar se poderíamos publicar ou não. E fazia isso no ambiente de escritório, com pessoas em volta, sem grandes dificuldades. Só não consigo ler na praia, acabo me distraindo com as conversas ao redor.

Muitas vezes deixo de sair com amigos pra ficar em casa lendo. Nesses casos eu invento uma desculpa, pra não parecer muito obcecada.

Gabriel Pardal: Hahaha é que as pessoas acham que ler é perda de tempo, mas na verdade é o contrário. A gente ganha tempo.

O que você está lendo, ou terminou de ler? E qual a próxima leitura?

Julia Wähmann: Eu terminei hoje (esperando o sinal da rua) o novo livro do Daniel Galera. Tô lendo o 2666 do Bolaño, que é enorme, vou ficar lendo por um tempo, ainda. Da safra recente, adorei “A história dos meus dentes”, da Valeria Luiselli. O próximo deve ser um livro de ensaios da Virginia Woolf, da pilha dos futuros livros extintos da Cosac Naify.

Gabriel Pardal: Esse livro da Luiselli é ótimo, adorei. Eu li alguns dos ensaios da Virginia Woolf e foi delicioso. Esse do Bolaño ainda não li, mas pretendo ler no verão na Bahia. O Meia-noite e vinte, novo livro do Daniel Galera, é que o estou lendo no momento, mas ainda no começo.

Julia Wähmann: No livro da Valeria Luiselli ela cita um ensaio da Virginia Woolf que trata da extração de alguns dentes. A edição da Cosac Naify nem tem esse específico, mas me animei assim mesmo.

Gabriel Pardal: Uma amiga fez uma pesquisa recente com pessoas na rua para saber quais os livros que elas estão lendo no momento. O resultado mais ou menos foi que 70% disse que não estava lendo, porque não tinha tempo pra ler, etc. 20% estava lendo mas não lembrava o nome do livro. 10% nunca leu nenhum livro. Conclusão: 100% das pessoas que ela abordou não leem.

Julia Wähmann: Caramba… e a gente aqui insistindo em escrever!

Gabriel Pardal: Pois é. Desculpa te dar essa informação logo assim de noite, não quero tirar seu sono.

Julia Wähmann: Hahahaha tudo certo, eu tenho drogas pra dormir!

Gabriel Pardal: Você acha que ler torna as pessoas mais inteligentes?

Julia Wähmann: Acho que ler torna as pessoas mais sensíveis e empáticas a muitas coisas, mais ainda quando se trata de ficção. A leitura é um meio pelo qual você consegue ver um pouco da mente do outro, mesmo que seja um personagem totalmente inventado de uma distopia. Acho que é o mais próximo do que podemos chegar de nos colocar no lugar de alguém, portanto, de certa maneira, dá um up na inteligência, sim, à medida em que você vai levando as leituras para a vida, se tornando mais receptivo, mais aberto para os outros.

Gabriel Pardal: Concordo totalmente. É tudo isso que você falou e é também muito divertido. A sociedade ultra veloz e conectada deixou de encontrar diversão nessa atividade solitária e introspectiva. Mas ler pode ser muito divertido. Às vezes mais até do que sair para beber no bar com os amigos — pegando o gancho do que você falou ali em cima, porque eu também já deixei de sair muitas vezes ansioso para saber como a história do livro iria continuar. Eu acho até que desperta um certo vício intelectual, de gostar de estar em contato com essa voz literária, esse contato íntimo-distante-perto com o autor.

Julia Wähmann: E não dá ressaca, né? Hoje em dia racionalizo muito o bar com amigos porque depois fico uns 2 dias inválida!

Gabriel Pardal: “Cravos” é um livro de ficção. No ORNITORRINCO você escreve textos de não ficção. Como você vê o processo de criação desses textos, de ter que se expor, se colocar como autora e narradora assumindo a sua personalidade? Qual o seu interesse em escrever essas histórias, crônicas, relatos, pensamentos sobre você mesma e a sua vida?

Julia Wähmann: Eu confesso que não consigo muito fazer essa separação entre ficção e não-ficção. Olhando bem, os meus textos para o Ornitorrinco têm o clima do Cravos, e vice-versa. Eu acho.

Eu amaria ser uma romancista do tipo que inventa personagens com vidas muito distintas da sua própria, que é capaz de criar tramas e arcos narrativos que nada tem a ver com a sua biografia. Ocorre que, por muitas razões, sempre me arrisquei no texto confessional, um tanto por incapacidade de fazer de outro jeito, um tanto porque talvez esta tenha sido a literatura que mais me marcou (e que ainda marca).

Hoje, com todo esse discurso de lugar de fala, com uma vigilância grande em cima do que se publica e se diz, acho até um alívio ter solidificado essa escolha, porque ao menos as chances de ser acusada do que quer que seja se reduzem. Assumir a personalidade, essa marca autoral ou essa voz, é assumir também a maneira como olho para as coisas, é me autosacanear com frequência… é escrever de uma forma mais honesta, e por isso acho que a resposta ao meu trabalho vem na mesma vibração.

Num rápido desvio sobre isso, outro dia a gente conversava ao vivo sobre essa sensação que a gente tem de estar se repetindo nos textos, lembra?

Gabriel Pardal: Lembro sim. Mas eu lido bem com isso de me repetir ou não querer me repetir. Quero dizer: eu não ligo muito para isso. Por falar nisso, você está escrevendo algum novo livro? Projetos, planos, essas coisas de pensar o futuro da carreira?

Julia Wähmann: Tô ainda um pouco na ressaca do Cravos, que saiu em agosto. Tô numas de curtir a repercussão, receber elogios (hahahahah) e deixando passar um pouco. Tenho algumas ideias para um livro novo, mas nada muito concreto ainda. Publicar um livro é muito bacana, mas tem todo o lado de correr atrás de imprensa, mídia, matéria etc. que cansa pacas, né? O trabalho da autopromoção é complicado.

Gabriel Pardal: É um porre. Ter que lidar com criação, promoção, divulgação, etc, etc. Cansa mesmo. É isso que é trabalhar com arte nos tempos de hoje. E ainda tem as redes sociais para dar conta. E a família. Etc.

Julia Wähmann: Pois é, a gente acumula tarefas. Numa próxima vida eu queria ser de exatas.

Gabriel Pardal: Hahahaha. Pois bem, Julia, adorei conversar contigo sobre todas essas coisas. Seguiremos avante. Obrigado pelo seu tempo.

Julia Wähmann: Também adorei! Até porque não marcaremos chopes vindouros, estaremos em casa enterrados em nossos tijolos literários para todo o sempre.

Dicas de Julia Wähmann
Um filme:
essa semana assisti à estreia do “Vermelho russo”, do Charly Braun, no festival do Rio. Além de ter achado o filme sensacional, teve um gosto especial porque o assistente de direção e montagem é o Marcelo Grabowsky, que também é cineasta e meu melhor amigo. O filme foi rodado em Moscou, e na ocasião eu fiquei encarregada de garantir a sobrevivência das plantas do Marcelo, o que acabou dando origem ao meu primeiro minilivro, além de mensagens e histórias hilárias que o Marcelo me enviava num fuso horário maluco. A entrada em circuito deve demorar um pouco ainda, mas recomendo para um futuro próximo, tomara!

Um disco: eu comecei a achar que o Gilberto Gil não vai mais ficar muito tempo entre nós, o que me fez querer ouvir a discografia dele mais atentamente. Acabei me apegando ao “Um banda um”, que tem “Drão”, uma das músicas mais bonitas do mundo, além da faixa que dá título, “Banda um”, que é ótima pra ouvir cozinhando, faz parecer que o almoço vai dar certo.

Um livro: Bluets, da Maggie Nelson, foi um livro que li esse ano e que me deixou boladíssima, a ponto de não saber exatamente como descrevê-lo.

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Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/