Diálogo Elétrico: Leonardo Villa-Forte

Uma conversa com o autor de “Escrever sem escrever”

Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos
10 min readDec 19, 2019

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Nesta edição do Diálogo Elétrico vocês vão ler o papo que tive com Leonardo Villa-Forte. Leonardo nasceu no Rio de Janeiro em 1985, é pesquisador, professor de escrita e doutorando de Letras na PUC-RJ. Publicou em 2014 o livro de contos “O explicador”, em 2015 o romance “O princípio de ver histórias em todo lugar”, e agora em 2019 publicou o ensaio “Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI”. Neste livro, Villa-Forte partiu das noções de “escrita não-criativa” de Kenneth Goldsmith, do “Manifesto da Literatura Sampler” de Fred Coelho e Mauro Gaspar para analisar obras recentes de escritores e artistas, refletindo sobre formas de produzir literatura nos dias de hoje.

A conversa aconteceu entre o dia 20 de Novembro e 13 de Dezembro de 2019 pelo whatsapp. Em alguns momentos trocamos mensagens (entre parêntesis) comentando o tempo do processo de diálogo tão comum no aplicativo. Optei por manter esses trechos porque funcionam como uma meta-entrevista.

GABRIEL PARDAL: Periga esse bate-papo aqui ficar uma coisa assim meio vendida porque eu preciso logo dizer que gostei muito do seu livro. Teu livro esmiúça muito das coisas que eu penso, vejo, acredito e, inclusive, com o que trabalho. Acho o livro meio assim uma bíblia de um novo jeito de ler e escrever do início do século XXI pra cá. Resolvi começar esse papo já dizendo isso pra poder deixar logo minha impressão e a gente não ficar de falseamento jornalístico. Daí, portanto, é o seguinte: você acha que o Machado de Assis da nossa geração está tuitando, postando no face, fazendo stories?

LEONARDO VILLA-FORTE: Como você começou quebrando o que seria uma pretensão de isenção jornalística, vou seguir por essa trilha e dizer, sem afetação, que eu já esperava que você gostasse do “Escrever sem Escrever” e agora fico feliz pela intuição se confirmar. Digo isso porque esse livro que você generosamente apelida de bíblia, para além das pesquisas teóricas e do debruçar sobre obras específicas, se nutriu bastante da escuta e da observação dos dilemas e impulsos da nossa geração e das gerações um pouco acima e um pouco abaixo, principalmente daqueles que escrevem ou lidam com a palavra e o texto. Nisso incluo também, claro, minha própria experiência, e a sua, e as conversas que já tivemos por aí nas ruas, bares e livrarias. Para mim é muito significativo que sejamos a última geração do mundo a lembrar da vida sem internet. Estou tateando aonde isso faz diferença e aonde não faz, e como. Machado tinha uma relação bastante intensa com o jornal, que era o principal meio de difusão de ideias e textos em sua época. Inclusive via o jornal como um espaço símbolo da república, da liberdade e enxergava nele um meio para participar e intervir na sociedade com suas ideias e críticas. Então ele provavelmente estaria usando twitter, ou face, ou um blog com esses intuitos hoje. Não sei se com entusiasmo ou frustração. Mas admito que fico meio confuso em pensar quem é e onde está o Machado de Assis da nossa geração, o que ele faz e o que não faz. É um tempo complexo para previsões. Sei que eu seguiria o @jmmachadodassis

Teve um cara que decidiu postar diariamente trechos do Ulysses, do Joyce, no Twitter. E teve outro que criava um desenho pra cada página do Graça Infinita, do David Foster Wallace. No seu livro você cita várias obras como exemplo para “escrever sem escrever”. Colagens, criações digitais, de autoria coletiva, de autoria anônima, fragmentada em links… O que podemos aprender sobre o momento em que vivemos agora ao observar essas obras?

Leonardo levou quatro dias para responder. Eu cutuquei ele com a mensagem: (Achou que era moleza? Distração sinistra)

(Rapaz, como é difícil manter um papo no zap que não seja zoeira, putaria, trabalho ou política na veia)

Fiquei pensando no email. Eu tenho certa saudade do email. Quando trabalho vinha pelo email, aí você respondia, aí a pessoa respondia de lá, cada um no seu tempo. Agora o zap virou canal oficial para tudo. E ele impõe uma outra temporalidade, mais urgente, mais imediata. Dá até uma aflição você olhar seu zap e ver ali aquela mensagem ainda por ler ou ainda por responder. No email eu não sentia essa aflição. O email estava mais perto da carta, mais do que o zap. O que eu gosto no zap é ouvir áudios em outras línguas, ou áudios mesmo na nossa língua brasileira, mas sem função imediata, divagações sobre a vida. Outro dia a Jerusa, uma amiga portuguesa, me enviou quatro áudios e eu ouvi dois em um dia e dois no outro, para não esgotá-los rapidamente, porque ela tinha o sotaque português e apenas falava da vida.

O email virou uma terra de ninguém, não é? Olho os emails que recebi hoje, só hoje, e percebo que nenhum, absolutamente nenhum é uma mensagem pessoal, direcionada a mim mesmo, mas mensagens gerais, garrafas jogadas no oceano. É claro que algumas dizem respeito a mim, a coisas que me interessam, e que eu escolhi receber. Até uma e meia da tarde de hoje o poema-caixa de email fica assim:

PublishNews — Casa Melhoramentos apresenta
Ubu Editora — Últimas horas! Circuito Ubu
PublishNews — Magazine Luiza faz proposta para fic
Relicário Edições — Aniversário de 6 anos da Relicário Edi
Leandro Demori, The Intercept — Melhor que bugigangas
PublishNews — Cuidado: conteúdo cáustico
revista seLecT — Agenda com Fernanda Gomes, Gu
LinkedIn — Seu perfil foi exibido em 8 resultados
Chão da Feira — Caderno de Leituras n.96 — Habitar e
Hering — Partiu Black Friday: Descontão
Meio — Em derrota para Toffoli e Bolsonaro, S
Madeira Madeira — T-U-D-O para sua casa com 85% OFF
Buser — É hoje, começou a Black Friday Buse
Academia — [PDF] “ Resenha sobre o livro Mistrais
Literary Review — An offer from our partners at the Idler
Horóscopo Personare — Você está passando por um novo trâ
Cepe Editora — A FLITIN começou hoje! Programa-se
UFRJ — Ópera do Malandro com Entrada Fran

Olhando agora, até acho de uma sujeira, uma feiúra interessante. Fica melhor do que na minha caixa de email.

Uma das coisas que percebo nesse momento, ao olhar para as obras comentadas no livro, é o abandono do sentimento negativo ou vergonhoso quando falamos em influência. Por muito tempo a influência foi pensada como uma sombra, algo que diminuía, uma espécie de mal necessário, mas um mal. Como hoje vivemos muito de paródias, a influência se tornou escancarada, mesmo que pelo deboche, que também é uma forma de afeto. E agora, o gesto da apropriação, de tomar um trecho, um fragmento ou mesmo um inteiro e deslocá-lo, recontextualizá-lo, coloca a questão em outro lugar, porque não se trata mais de ser influenciado ou não, mas sim de uma lógica da utilidade. Você pode não ser realmente influenciado por um artista ou escritor, mas pode pegar um trecho de algo dessa pessoa e fazer algo com isso, esse gesto não necessariamente vai produzir uma filiação. Sinto que a passagem dos materiais físicos para o espaço digital nos estimula a olhar para tudo que já foi produzido como arquivos, com itens que podemos ou não utilizar. Como ferramentas que podemos ou não selecionar e editar. Mas que estão lá, disponíveis.

Qual meio você mais usa para se comunicar hoje? E isso serve para uso social, profissional, afetivo, tudo? Pode parecer que não tem a ver com o papo sobre o livro, mas tem, porque nele falo sobre essa indistinção à qual nos conduz o ambiente digital, indistinção que faz com que, no limite, questionemos o gesto de criação, a natureza do afeto e do espanto na poesia, por exemplo: porque posso fazer poesia com resultados colhidos do Google (como faz a Angélica Freitas), ou posso fazer poesia com um arquivo que baixei do site da Câmera Federal (da sessão que depôs a Dilma, no caso da obra do Roy David Frankel).

[Neste meio tempo eu vi que o livro dele apareceu na lista de melhores livros do ano do Suplemento Pernambuco. Enviei o link com a lista. Ele respondeu “Muito legal né! Feliz aqui com isso!” Em seguida ele enviou o link com a lista de melhores do ano da Revista 451, onde o livro dele aparece na seção de “Crítica Literária”.]

Teu livro tá como Critica Literária. Você concorda com isso?

Sabe que eu não sei… pra mim ele tem tom de ensaio. Fiquei justamente aqui pensando nesses limites e fronteiras. Por que o olharam como crítica literária? Se você for ver, os outros livros de não-ficção têm temas mais variantes, tipo vários temas num livro só, como o do Nuno [Ramos]. Mas é porque não existe categoria “crítica da sobrevivência”, que seria o do [Aílton] Krenak. Ou “crítica do racismo”, seria o da Grada [Kilomba].

Acho que é porque a espinha dorsal é a literatura mesmo. Fiquei aqui pensando e acho que teu livro é útil para várias práticas artísticas, mas é interessante também colocá-lo como Crítica, pois aí não cai no bloco de carnaval que é o Ensaio.

Particularmente também acho. Crítica acaba tendo menos “‘mercado” que ensaio, me parece, mas não sei se isso é verdade em números. Talvez menos prestígio.

Mas também só é “Critica Literária” pra Revista 451. Pro resto é o que você disser que é.

Isso aí. Mas não estou desdenhando da classificação Crítica Literária. Eu sei que o livro também é crítica.

Por que você acha que narrativas mais tradicionais são as que vendem mais? Romance vende mais do que contos, biografia vende mais do que filosofia, poesia não vende praticamente nada. Por que há essa soberania e como tentar quebrar com isso?

Uma vez eu estava trabalhando como editor em um livro do Gilberto Braga, o autor de novelas, e comentei com ele sobre a duração longuíssima de uma novela e ele falou que também se espantava em como as pessoas seguem personagens e histórias durante meses e meses. Então ele disse que as pesquisas mostravam que quando o público se afeiçoava a um ou mais personagens, o público não queria que esses personagens fossem embora de suas vidas tão cedo. Acho que o romance tem um pouco a ver com isso — a sensação de ir conhecendo uma pessoa ou uma linguagem de autor e de que isso ocorrerá aos poucos, com novas percepções e mudanças a cada bocado. E de que aquilo tem um início, um meio e um fim. Acho que tem a ver com a ideia de entrar em um mundo e conhecê-lo.

(vou continuar ainda essa resposta)

(impressionante como é difícil mesmo por zap)

[Quatro dias depois ele respondeu:]

Reli a pergunta dias depois. A pergunta fala sobre mercado. Não sei se tenho condições de pensar em mercado nesses dias. Geralmente penso nisso. E os gêneros estão cada vez mais misturados. Romance com autobiografia, por exemplo. Poesia com ensaio filosófico e por aí vai. Assim como na vida vemos o florescer e o reconhecimento das pessoas trans, talvez devamos olhar para os textos com esse prisma também, menos encaixotado e imutável. Nesse momento tenho lido coisas assim, que cruzam gêneros. As categorias estabelecidas pelos mercados sempre estão defasadas em relação ao que as pessoas estão fazendo. E é natural que seja assim.

(terrível eu, desculpe. será que é a falência do zap para certos assuntos?. (ou a falência da minha seriedade no zap)

(é a falência do tempo)

(total. e o cansaço das telas)

Eu entro na livraria e olho a imensa quantidade de livros nas estantes. Obviamente ninguém tem tempo de ler tudo. Ninguém tem tempo de ler nem tudo o que compra. Mas toda vez que entro, tem novos livros nas mesas de lançamentos. Por que mais livros no mundo?

Porque as pessoas não conseguem parar de escrever. É uma pulsão, um impulso. Um livro é um objeto que encerra certa visão da vida, da linguagem, da arte, das coisas do mundo. E as pessoas não conseguem parar de ter suas visões e querer acomodá-las em páginas e mais páginas. E seja escrevendo sem escrever — ou seja, montando, remixando, deslocando, se apropriando — ou escrevendo escrevendo; seja recriando ou criando, boa parte das pessoas enxerga um livro como uma marca sua no mundo. E a ideia de deixar uma marca para além de si, para além do próprio tempo da sua vida, é muito atraente. Algumas pessoas fazem isso criando empresas, outras fazem isso ensinando algo a alguém, transmitindo conhecimento, outras contando suas experiências, outras tendo filhos, outras matando gente, outras orientando recursos — estão todas deixando alguma marca no mundo, interferindo no real; e pensar que um certo arrepio pode subir na espinha de alguém ou uma nova sinapse acontecer em um cérebro por conta da leitura de algo que você propôs é quase mágico. As pessoas não param de produzir textos — seja de segunda ou de primeira mão — e isso para mim é bastante compreensível, porque a linguagem para mim tem um quê de encantatório, um quê sedutor no sentido mais admirável. Creio que a fábrica de textos anda a mil e não deverá arrefecer. O problema está menos no campo da escrita e mais no da leitura. E isso em si é um sintoma que me levou a pensar no autor-leitor, que está lá no livro. O autor cujo texto se faz por meio da sua leitura. De como ele desloca, organiza, manipula sua leitura. A ideia de trajeto de leitura como uma autoria. Que gera uma outra forma de escrever. Mas tudo parte desse polo, do polo da leitura, ao qual você aponta quando fala dessa sensação de inundação, de enxurrada da livraria, e de não termos um tempo de navegação hábil para fluirmos nas águas essa enxurrada.

(Cara, eu gostei tanto dessa tua resposta que acho que é um ótimo fechamento. Que acha?)

(Legal. Vamos nessa. Será que seria interessante incluir alguns dos nossos parênteses, a questão do tempo, da dificuldade em se concentrar por aqui?)

Dicas

Livro: Não, não é bem isso, de Reginaldo Pujol Filho
Disco: Abaixo de zero: Hello Hell, de Black Alien
Filme: Border, de Ali Abbasi

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Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/