Diálogo Elétrico: Paulliny Gualberto Tort

Uma conversa com a autora de “Allegro ma non troppo”

Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos
9 min readFeb 26, 2018

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Nesta edição do Diálogo Elétrico vocês vão ler o papo que tive com a escritora e jornalista Paulliny Gualberto Tort, que nasceu e reside em Brasília. Paulliny publicou o livro “Allegro ma non troppo”, cuja história é narrada por um jovem que busca a sua identidade enquanto lida com o desaparecimento do irmão mais velho. A história é como um road movie que começa em Brasília e avança para dentro da Chapada dos Veadeiros. “De certo modo, esse livro é também uma ode ao Centro-Oeste”, conta Paulliny.

“Allegro ma non troppo” é seu livro de estreia e ficou entre os semifinalistas do Prêmio Oceanos, um dos mais importantes da literatura de língua portuguesa.

A conversa aconteceu em junho de 2017.

Gabriel Pardal: Você se lembra de quando você decidiu que queria ser escritora?

Paulliny Gualberto Tort: Eu me lembro de, por volta dos sete anos, escrever e ilustrar uma história chamada “Uma Tarde na Piscina”. Tenho a impressão de que não soube como escrever a palavra piscina, mas nunca vou ter certeza porque minha família não guardou esses primeiros trabalhos. Um pouco mais tarde, com nove anos, li “A bolsa amarela”, da Lygia Bojunga, e me convenci de que era isso mesmo. Eu seria escritora (embora não estivesse muito certa de que isso fosse uma profissão). Mas você começa a crescer e a duvidar das possibilidades. Durante a adolescência, eu escrevia. Não tinha, porém, nenhum projeto nem planos para os meus escritos. Apenas escrevia de maneira compulsiva sobre qualquer coisa que me viesse à cabeça. Um dia desses, mexi em uma caixa cheia de cadernos e mais cadernos, folhas e mais folhas datilografadas daquela época. Até encontrei umas notas, uns versos, umas imagens interessantes. Mas foi só por volta dos vinte e poucos anos que a ideia começou a sedimentar dentro de mim. Fiz algumas tentativas, todas péssimas, eu acho. E de uns dez anos para cá passei a levar a literatura mais a sério. Sempre fui boa leitora, o que ajuda. Mas mergulhei mesmo na onda a partir de 2013, quando fui morar em Porto Alegre. Aquela cidade tem um peso muito grande para mim nesse aspecto.

Gabriel Pardal: Considero Porto Alegre uma cidade muito importante para a vitalidade e resistência da literatura neste país. Gosto muito de lá e dos amigos que fiz nas idas e vindas de feiras literárias que tive a oportunidade de comparecer. Engraçado que ela também é importante para minha formação como leitor e em seguida, escritor, mas nunca morei por lá. Quanto tempo você morou em POA e por que foi decisiva na sua formação como escritora? Você chegou a fazer as famosas oficinas literárias da cidade?

Paulliny Gualberto Tort: Eu vivi no Rio Grande do Sul em duas ocasiões. Mas esta última vez que estive por lá, entre 2011 e 2013, foi a mais marcante. Eu morava na Zona Sul de Porto Alegre e me sentia um pouco ilhada; queria estar perto do que acontecia no centro, no Bom Fim. Então pegava meu computador, fones de ouvido, dois ou três livros e desembarcava em alguma livraria ou café. Ficava horas nesses lugares. Lia, produzia, bebia vinho, observava o movimento nas ruas… Porto Alegre é uma cidade muito curiosa, antagônica. Por um lado, é cosmopolita, aberta, libertária. Por outro, é conservadora, fechada, um pouco provinciana. Acho esse embate muito louco. Até hoje tento entender os gaúchos. Rsrsrs… E foi nesse cenário que mergulhei fundo na leitura de autores contemporâneos. É claro que eu já lia algo da produção atual, mas não com aquela intensidade. Ler quem está produzindo hoje, quem está produzindo agora me ajudou demais. Amadureci (estou amadurecendo) tanto como leitora quanto como autora. Quando alguém me diz que gosta de literatura ou que quer ser escritor e não gosta de ler os contemporâneos, considero um delírio. Cada um lê o que quer, mas, se você deseja levar a literatura a sério, não existe uma única justificativa razoável para menosprezar a produção atual. Na cena gaúcha, parece haver uma valorização das narrativas contemporâneas e isso faz diferença. Em relação a Brasília, considero um salto quântico. E, sim, participei de oficinas por lá. Fiz a do Charles Kiefer, algo com o João Gilberto Noll… Foram experiências decisivas, sem dúvida.

Gabriel Pardal: Quando estamos começando a escrever acabamos sofrendo a chamada “angústia da influência”, que é algum livro (ou alguns livros) e algum autor (ou alguns autores) que nos marcam tanto que passamos a “imitá-lo” nos nossos primeiros escritos. Que livro ou autor teve esse papel na sua formação? E qual livro e autor não teve, porém te marcou profundamente e te arrebatou como leitora/autora.

Paulliny Gualberto Tort: Minha “angústia da influência” dever ter se passado no inconsciente. Não consigo identificar um autor que eu tenha procurado imitar, um estilo que eu tenha deliberadamente reproduzido, embora saiba que esse é um processo natural na carreira do escritor. E acho tão delicado falar de influências… Você acaba citando alguns nomes e depois se dá conta de que deixou de fora outros importantíssimos. Falar de influências, para mim, soa sempre injusto, incompleto. Mesmo porque tudo o que você lê acaba tendo um peso na sua formação como escritor, tudo. Até quando você rejeita um autor, uma obra, há algo que você extrai daquela experiência de leitura; aprender o que não se deve fazer também é importante. Mas vou me arriscar aqui. Nos meus primeiros escritos, talvez eu tenha me influenciado pelos romancistas de língua inglesa. Hemingway, Steinbeck, Salinger, Scott Fitzgerald, Harper Lee, Philip Roth… Porque tenho essa pegada de contar uma história. A linguagem, na minha literatura, está sempre a serviço da história, nunca o contrário. Mas não houve um empenho estilístico de imitação, não. Agora sobre um autor que admiro, embora eu me distancie muito do estilo dele, é o Raduan Nassar. Li o “Lavoura Arcaica” no comecinho dos anos 2000 e foi arrebatador. A leitura de “Um copo de cólera” também foi muito impactante. Mas eu poderia citar o João Gilberto Noll, o Marcelino Freire, a Sheyla Smanioto… E também Homero, Ovídio, Borges… Eu me deixo encantar por autores muito diferentes entre si.

Gabriel Pardal: Vamos falar sobre seu livro “Allegro ma non Troppo”, quando surgiu a ideia e como você escreveu? Quero dizer, quanto tempo levou escrevendo, onde, se houve algum contratempo…

Paulliny Gualberto Tort: O Allegro surgiu de uma imagem: um sujeito durante o velório de seu pai. Em 2012, escrevi esta cena, que se tornou o primeiro capítulo do livro. Tudo o que o Daniel, protagonista da história, veio a ser — as relações que travou, os conflitos que teve de resolver — surgiram deste velório. Quando fiz o primeiro esboço do capítulo, que até então eu nem sabia que desencadearia uma narrativa longa, o personagem não estava definido. Foi no processo de reescrita deste trecho que ele ganhou uma personalidade, uma trajetória familiar específica, uma busca, uma dicção própria. Levei cerca de dois anos até chegar à versão final que foi publicada pela Oito e Meio. Quanto aos contratempos, bom, você não poderia escolher palavra melhor: contra tempo. O tempo parece correr contra a escrita; encontrar um momento para produção entre os afazeres diários, às vezes, é complicadíssimo. Mas chega uma hora em que a história domina o escritor e ele tem de escrever de qualquer maneira. Aí não tem mais jeito: você vai até o fim.

Gabriel Pardal: Você escreve sempre no computador?

Paulliny Gualberto Tort: Sempre. Sou completamente apegada à escrita no computador. A digitação acompanha melhor o fluxo das ideias, que é veloz. A escrita à mão me parece morosa, desenhada. Mas sei de autores que gostam de trabalhar esse tempo e que fazem as primeiras versões de seus livros em cadernos pautados. Acho interessante, mas não para mim. Não sei nem se conseguiria ser escritora se tivesse de escrever à mão. Durante a adolescência, eu já escrevia na minha Olivetti portátil; fiz muito cedo o curso de datilografia. No bloco de papel, escrevo apenas notas para trabalhar depois.

Gabriel Pardal: Me diverti muito lendo seu livro porque ele tem elementos que me interessam bastante: flerta com o gênero do road movie, o filme de viagem, livro de viagem; e também com o romance de formação, onde um jovem empreende uma jornada para se encontrar; neste caso aqui a jornada é para encontrar o irmão, e é nela que ele se encontra. Essa leitura faz sentido pra você? Fico curioso pra saber como essas ideias foram tomando forma na sua cabeça. Se você pensava conscientemente “vai ser um livro sobre uma viagem”.

Paulliny Gualberto Tort: Fico feliz que tenha se divertido. Não me lembro agora se o livro nasceu com a intenção de ser um road book. Mas, com certeza, a viagem que o protagonista faz para a Chapada dos Veadeiros tem um papel central na narrativa. Sempre acreditei que deslocamentos provocam transformações, mudanças de perspectiva, dúvidas… Só não sei se o Allegro se encaixa na estante dos livros de viagem, embora muitos leitores o identifiquem como tal. De qualquer modo, prefiro não gerar esta expectativa em quem ainda não leu porque o Daniel também se apresenta em uma fase sedentária, de poucas aventuras. Por outro lado, eu tive, sim, a intenção de trabalhar o texto como um romance de formação. Talvez por isso eu tenha escolhido narrar em primeira pessoa, para que os processos internos do protagonista estivessem expostos, gritando para o leitor.

Gabriel Pardal: O que você tem mais gostado de ler ultimamente?

Paulliny Gualberto Tort: Nossa, leio coisas tão diferentes umas das outras… Recentemente, li “Odisseia”, de Homero, naquela edição maravilhosa da Cosac Naify. Foi uma das melhores experiências de leitura da minha vida. E, como procuro alternar a literatura dos clássicos com a dos contemporâneos, li “A Resistência”, do Julián Fuks, logo depois. Dele parti para o Goethe, “As afinidades eletivas”, e em seguida li um sobre o mercado de obras de arte, porque é um tema que me interessa. Agora estou relendo “Lolita”, do Nabokov, para estudar minuciosamente o texto, palavra por palavra. Isso vai me tomar algumas semanas. O próximo da fila é Ovídio, com “Metamorfoses”. Dá para notar que não tenho muita coerência. A verdade é que leio o que me dá vontade e não por um sentimento de obrigação. A não ser pelo meu trabalho, já que atuo com jornalismo cultural (e essas leituras não mencionei aqui porque nem sempre são prazerosas).

Gabriel Pardal: Eu quero saber agora do Movida Literária, esse evento de literatura que você, junto de outros parceiros, criou para movimentar a cena de Brasília. Primeiro, como é essa cena, existe um movimento literário acontecendo na cidade? E qual a proposta do Movida?

Paulliny Gualberto Tort: A Movida surgiu da ideia de dar visibilidade aos autores locais, mas também de inserir a cena no circuito da literatura brasileira contemporânea. Sinto que a cidade precisa dialogar mais com a literatura feita fora daqui. Quem escreve tem de conhecer as formas atuais da poesia, do conto, do romance… Precisa conhecer Julián Fuks, Elvira Vigna, Luís Ruffato… E entender que, por mais que se goste do Machado, por exemplo, a literatura já caminhou muito de lá para cá. Por isso, tomei como meta pessoal trazer a Sheyla Smanioto e o Marcelino Freire para a Movida. Não tínhamos um centavo, mas, graças ao apoio das pessoas em uma campanha de crowdfunding, conseguimos tirar leite de pedra. A agência Fermento, do publicitário Carlos Grillo, e a cervejaria Colombina também foram grandes parceiras. Trabalhei feito uma louca para que esse evento acontecesse e, embora eu tenha minhas críticas em relação ao resultado final, acho que conseguimos acender uma vela na escuridão. Como experiência, a Movida valeu a pena. No entanto, por uma série de motivos, decidi sair do grupo. Isso não significa que vou deixar de lado a agitação cultural, pelo contrário. Estou pipocando de ideias, já tenho uma parceira que é uma escritora incrível e, em breve, vem coisa nova por aí.

Gabriel Pardal: Paulliny, agora para finalizar, queria que você desse uma dica de livro, filme e disco.

Paulliny Gualberto Tort: Tem tanta coisa boa acontecendo… Tanta coisa boa já aconteceu… Então vou citar o que me ocorre agora, ok?

Um Livro: Instinto de Inez, do Carlos Fuentes. Acho até que já falei desse romance para você. Nele, o Fuentes costura duas histórias de amor: a de uma cantora de ópera com um maestro e a de um casal primitivo que ainda não conhece a língua falada. É um livro belíssimo, que pouca gente conhece e que pesquei por acaso em uma livraria de Salvador, nas férias de verão em 2005. Um achado.

Um Filme: Elena, da Petra Costa. Nesse documentário, a Petra conta a história da irmã dela, Elena, que se suicidou nos Estados Unidos. O filme mostra muito material de arquivo da família e toca em questões importantíssimas, como ditadura, liberdade, arte, sanidade e gênero. Uma joia.

Um Disco: Lady Remédios, do Pedro Bonifrate. É um EP com 5 faixas. O Pedro fez parte da extinta Supercordas, banda que aprecio muito, e agora está com esse trabalho solo. Tenho escutado bastante. Quando quiser, pode me pedir mais três de cada — um livro, um filme e um disco — que já estou com umas dez listas prontas aqui na cabeça.

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Gabriel Pardal
Diálogos Elétricos

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/