Mulher Enxaqueca

Sobre a minha enxaqueca, eu acho hoje que ela é um símbolo.

Alessandra Nahra
diário da viagem pra dentro
4 min readJan 12, 2019

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olhos de enxaqueca — mas meu cabelo tá ótimo

Eu busco, na vida, a aceitação das coisas como elas são. Não é uma aceitação conformista: é, sim, o contrário da negação e cegueira seletiva. Não aceitar é não querer ver, é querer que o que está acontecendo não esteja acontecendo. Ou seja, é um inútil gasto de energia. Eu acho que só a aceitação plena do que é, como é, nos permite transformar o que precisa ser transformado. Aceitar significa reconhecer plenamente que esta é a realidade, e parar de querer que, magicamente, seja outra. Enquanto eu não aceitar, não quiser ver, negar que isso exista, eu não consigo agir. Por exemplo: "que droga essa chuva, eu não queria que estivesse chovendo". Não adianta nada, filhão, vai continuar chovendo, mesmo que você não queira. Quando você aceita que está chovendo, a atitude passa a ser "ok, tá chovendo, o que eu posso fazer a partir disso?". Saca?

Pois então. Essa é a minha grande busca na vida. E a enxaqueca existe e vem me visitar todo o mês pra me mostrar o quanto eu ainda não consegui aceitar as coisas como elas são. E isso tem um impacto profundo no meu ativismo.

Minha vida é baseada na não-conformidade, no querer que as coisas sejam de outro jeito. Eu não suporto a exploração animal, o sofrimento, a violência. Eu queria MUITO que isso não existisse. Agronegócio, capitalismo, opressão, racismo, fascismo, família nuclear, açaí servido em pote de isopor, animais abandonados, gente dormindo na rua, copo de plástico, rios poluídos, deixar lixo na praia, a merda do vizinho cortando a porra da grama com o raio da roçadeira elétrica enquanto eu tento dormir — TUDO isso me contraria DEMAIS. E eu me organizo contra e luto contra e escrevo contra e falo contra e corro de um lado pro outro contra, "porque assim é a noite e é isso que ela faz com você e eu não tinha nada a oferecer a ninguém a não ser a minha própria confusão" (Jack Kerouac em On The Road — sorry, não resisti; a metáfora é boa: enquanto eu permanecer na negação o discurso é confuso, ansioso, pífio).

A enxaqueca que me visita todo mês é um símbolo do quanto eu não aceito as coisas como elas são, ainda (prova disso é que a única ação possível pra mim na enxaqueca é dormir, ou seja: a inconsciência. Não quero ver, não quero sentir, não quero saber; me acorda daqui a 4 anos). A enxaqueca me mostra que eu ainda tô reclamando da chuva. E POR ISSO MINHA AÇÃO AINDA NÃO É EFETIVA. Porque eu ainda não fucking aceitei mesmo. Que existe tudo isso: que, sim, gente e bicho sofre e morre e é explorada TODOS OS DIAS DAS PIORES MANEIRAS QUE TU PODE CONCEBER; caralho Alessandra, não ver TV e não ver Earthlings não faz com que as coisas desapareçam; não querer saber e não querer ver só faz com que tu não SINTA a dor plenamente, e enquanto tu não sentir a dor plenamente, porque tu não queria que ela existisse, e tá tentando fingir que ela não existe, tu não vai conseguir atravessar a dor — porque tu não a reconhece de fato.

E não reconhecer a dor, não aceitar a dor, não sentir a dor, faz com que a gente não sinta mais nada, e isso nos impede de reconhecer o amor dentro dos olhos de cada pessoa que passa pela gente na rua (porque eu passo por gente na rua e, ainda que eu abra um sorriso e diga bom dia ou alguma outra coisa agradável e gentil, na maioria das vezes eu AINDA tô julgando aquela pessoa e pode apostar que eu acho que ela usa copo plástico na academia e come bicho morto e talvez até tenha votado no presidente lixo, e eu não queria que nada disso fosse assim e por isso eu não consigo de fato amá-la e reconhecer que ela é um outro eu, que a gente tá junto nisso tudo).

Provavelmente a essa altura vocês estão pensando que mina loca, olha a teoria mirabolante sobre enxaqueca, é só uma enxaqueca, porra, toma um remédio (eu tomo remédio, tu acha que adianta? alivia a dor por algumas horas, mas a enxaqueca não passa, não há nada que eu conheça que impeça ou encurte uma crise de enxaqueca, que pra mim dura entre 3 e 5 dias — na maior parte das horas desses dias eu durmo, pra atravessar a crise na inconsciência). Queridão, me deixa com as minhas teorias, aposto que se tu tivesse uma dor por 3 a 5 dias todos os meses há anos tu também ia inventar teorias mirabolantes. Porque não pode fucking ser só uma dor, pra nada, sem motivo nenhum, sem razão de ser. TEM que ser um negócio significativo, com sentido e quiçá propósito. Não pode ser por nada que eu passo, todo mês, por momentos em que só o que consigo pensar é "como eu vou conseguir existir nas próximas horas? como eu vou conseguir ser eu nas próximas horas?".

esse texto não tem conclusão porque não há conclusão sobre a minha enxaqueca. mas esse insight foi bom, eu nunca tinha chegado aqui antes. e pra mim isso é mais uma prova de que eu tô certa e a enxaqueca é um símbolo.

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Alessandra Nahra
diário da viagem pra dentro

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.