Você tem depressão? Nossa, mas nem parece

É que eu sou uma deprimida extremamente funcional

Alessandra Nahra
diário da viagem pra dentro
7 min readSep 1, 2022

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se divertindo, pegando onda, vendo por do sol

Foi mais ou menos essa conversa que eu tive esses dias com a diretora do produto em que eu trabalho. Eu tenho falado sobre isso (que eu estou em uma crise depressiva) para algumas pessoas da firma sempre que há uma oportunidade. Antes eu achava que isso não era algo que eu deveria abrir no trabalho, mas daí algumas colegas começaram a compartilhar que sofriam de depressão e eu achei que deveria fazer o mesmo com outras mulheres/pessoas com quem eu tenho relações mais próximas. (Ainda que eu não saiba exatamente por que fazer isso. O que eu quero com esse compartilhar).

Alguém que vê meus posts no Instagram talvez possa pensar a mesma coisa que a diretora: como assim deprimida, essa guria tá sempre fazendo mil coisas, se divertindo, pegando onda, vendo por do sol, dançando. Então, é que eu sou uma deprimida extremamente funcional. Eu desafio a imagem clássica do deprimido que não consegue levantar da cama. Eu levanto da cama às 4 da manhã pra ir surfar. Nos dias que não surfo eu corro, e aí acordo um pouco mais tarde, umas 5:30/6h. Levanto e tenho um monte de coisa pra fazer: escovar os dentes e lavar a cara, tomar água, meditar, encher os potes dos gatos, fazer café, varrer a cozinha, levar o cachorro pra fazer cocô, cortar frutas pra comer antes do esporte do dia. Daí eu sento na sala e fico em silêncio olhando a rua escura e tomando café por uns 15 minutos (dia de surf) ou quase uma hora (dia de corrida). Daí eu saio pra fazer os esportes. Depois no resto do dia eu trabalho. E em algum momento eu faço alongamentos. E todas as demais lidas domésticas. Com algumas variações, é basicamente isso durante a semana. No sábado, além de correr ou surfar eu faço duas horas de aula de forró. No domingo eu geralmente pego onda também. E depois eu morro. Às vezes eu ainda tô morta na segunda. E começa tudo de novo. (Eu costumo dar umas dormidas no meio do dia. Além do cansaço físico, às vezes eu tenho insônia. Acordo no meio da madrugada e posso demorar pra dormir de novo. E meu horário de levantar permanece inalterado, então às vezes acabo dormindo tempo insuficiente durante a noite).

Mas então, o que significa na prática uma crise depressiva?

É difícil de explicar, porque são sentimentos nada objetivos. É como se fosse uma sensação de desistência. Mas, como se vê pelo parágrafo acima, não é uma desistência concreta. É uma desistência da psiquê — da alma, se preferir. Uma desistência existencial. Uma desistência de existir, não no sentido físico (não quero me matar), mas no sentido filosófico. A sensação na base disso é um grande "pra quê?". Pra que eu tô fazendo isso. Isso: levantando da cama. Isso: tudo que eu faço pra me manter viva. Pra que eu existo?

(como se precisasse ter um motivo pra existir. eu sei, é idiota, é irracional, é contra tudo que eu achei que eu achava da vida, mas é)

(e não é um pensamento. não tem raciocínio. porque se fosse racional, eu sei a resposta do pra que existo: pra fazer as coisas que eu gosto, no mínimo. mas não é racional, então não tem argumentos que possam ser contrapostos a essa pergunta)

E essa sensação eu sinto no corpo. A sensação física é de VAZIO. Um buraco. Um oco. Um amargo. Um nada. Uma escuridão. O corpo desistindo. (nos piores momentos da depressão eu tinha medo de desabar no meio da rua, que nem um saco vazio que não para em pé)

Então às vezes eu acordo às 4 da manhã sentindo isso. É horrível. Mas o que que eu faço? As coisas tudo que eu faço de manhã, conforme relatado aí em cima. Uma por uma, em sequência. Ou seja, eu tô sentindo esse vazio oco amargo e eu continuo fazendo o que eu tenho que fazer.

Por que eu continuo fazendo as coisas se por dentro eu desisti de existir? Porque qual é a alternativa, mano? Se eu não fizer, vai ser pior.

Lá pelas tantas do fazer eu me distraio e a sensação se dissipa (geralmente quando eu entro no mar e começo a surfar, ou no meio da corrida quando fico repleta de oxigênio e endorfina). (Depois o vazio volta. Logo, ou no outro dia, ou não volta por uns dias). Se eu não levantar e não for surfar/correr, a chance de eu me distrair do vazio oco amargo diminui muito. É pior não fazer. E não fazer tem um limite. Eu vou precisar levantar da cama, no matter what. Pra começar, os gatos vão pular em cima de mim até eu encher os pratos deles. Eu preciso fazer xixi, cagar, comer. Daqui a pouco vou ter que sair da cama de qualquer jeito. Tem limite o não fazer de quem não quer desistir da vida física. E vai ser pior eu deixar chegar nesse limite, então eu levanto e faço, mesmo sentindo o buraco amargo oco. (Eu sei que tem gente que tem depressão e que simplesmente não CONSEGUE levantar da cama. Eu sei que tenho sorte). E tem as coisas que eu GOSTO de fazer, né. E que depressão nenhuma me tira o gosto de fazê-las. Então eu QUERO fazê-las. E esse é um bom motivo pra levantar. Elas são, basicamente mas não unicamente:

  • pegar onda
  • correr
  • dançar
  • ler
  • afofar meus bichos
  • dormir (mas essa eu não preciso acordar pra fazer)

Estou consciente de que fazer essas coisas todas desse jeito que tô fazendo, quase sem descanso, é meio que medicar a dor. Meio como tomar uma droga: um entorpecente. Eu uso essa atividade toda para não pensar. Idêntico a quem usa álcool, ou comida, ou compras.

É a terceira vez que escrevo sobre depressão aqui. É difícil. Porque é difícil explicar. É difícil entender. Mas escrever me ajuda a entender, então faz dias que ando organizando esse texto na minha cabeça. Na verdade, eu acho que quando sinto vontade de escrever é porque comecei a entender.

Na primeira vez que escrevi sobre depressão eu tinha uma receita pra curá-la. Eu achava que era bem fácil e muito simples, era só tomar remédio. Era uma época que eu tinha várias certezas.

Hoje eu acho que a depressão não tem cura. (Mas, veja bem, eu não sou médica. Consulte sempre um médico). Eu acho que depressão não é um negócio que nem dor de cabeça, que tu toma um remédio e passa. Eu já tomei remédio pra depressão, e aliviou a crise, talvez até tenha feito a crise passar, mas não curou a depressão. Porque eu acho que depressão não é algo que seja passível de cura, porque eu acho que depressão é um aspecto da existência de certas pessoas, é uma coisa que eu sou também, assim como sou alegre de vez em quando, engraçada de vez em quando, inteligente de vez em quando, chata muitas vezes, eu às vezes sou deprimida. É uma das Alessandras que existem. Como é que vou extirpar uma parte de quem eu sou?

As crises depressivas podem durar muitos meses. Dentro das crises depressivas tem épocas (dias, semanas) melhores, outras piores. Mesmo quando tenho dias, semanas, bons, não dá pra decretar: pronto, terminou a crise. Nada é linear na vida. A gente dá voltas. Vai, volta, uns passos pra frente, outros pra trás, assim vai.

Então às vezes eu acordo com um buraco oco amargo por dentro. Mas às vezes não. As vezes eu acordo alegre. Isso significa que passou a crise de depressão? Provavelmente não. São movimentos dentro de ciclos. Dias, semanas, meses. Não dá pra dizer quando é o fim, ou o começo.

Pensar assim é bom porque elimina a necessidade de busca de uma solução. Não tem resolução. Não vai chegar um dia em que nunca mais vou ter depressão. Talvez isso que eu chamo de crise depressiva seja apenas uma fase da vida, a lua nova, a maré baixa — parte da condição humana. E a condição humana não tem cura.

O que determina se vou acordar no buraco amargo oco ou alegre ou neutra?

Eu tenho algum controle sobre isso? Tem a ver com circunstâncias externas? Eu penso muito sobre isso. Minhas condições objetivas de vida são excelentes. Eu tenho um bom emprego no qual ganho bem e não me incomodo muito. Não tenho nenhum problema sério, não perdi nenhum familiar ou amigo para a Covid, não tenho grandes preocupações. Objetivamente, eu não tenho nenhum motivo para acordar em buracos ocos vazios amargos.

Por outro lado, vivemos num tempo difícil. Emergência climática, desigualdade social, pobreza extrema, governo genocida com um projeto de extermínio de tudo que não seja a cara deles. A Terra sofre. Coletivamente, a gente vai mal. O sofrimento é parte da condição humana. E nós somos um coletivo. Não tem como não sofrer quando o coletivo sofre. Talvez depressão seja isso: sentir a dor da Terra e de tudo nela — gente, bicho, árvore, floresta, oceano — que sofre.

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Alessandra Nahra
diário da viagem pra dentro

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.