diário do céu #2 / relato sobre a dor

Bárbara Ariola
diário do céu
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4 min readMay 22, 2018

nos últimos tempos adquiri um hábito de contar quantas partes do meu corpo estão doendo ou quantas estão incômodas. agora, por exemplo, sinto uma dor estranha e misteriosa na parte lombar próxima ao rim e minha rinite está bem chata, coriza, coceira etc. teve um dia que contei dor na coluna, dor no estômago, dor de cabeça e nariz irritado. isso parece exagero pra algumas pessoas, mas na minha vida é um tanto comum.

levando a dor pra tomar sol

sempre fui meio capenga de saúde, pronto socorro é cotidiano, médicos um ritual, remédios constantes, algumas internações na conta, doenças com nomes estranhos e poéticos — tipo púrpura, um dia posso escrever só sobre ela — , mas nunca fiquei no bico da morte ou ao menos fiquei, mas me livrei rapidamente.

passei os últimos dois anos com a saúde mais estável e regular (isso significa que não houve tantos prontos-socorro, mas tive pneumonia, por exemplo), porém convivi cuidando da saúde de outras pessoas. a minha mãe também sempre teve enxaqueca, cálculo renal e tendinite. minha falecida avó, diabetes. e meu avô teve nevralgia no trigênio, uma doença que o fazia ter uma dor constante e insuportável no rosto.

meu pai conta (mesmo esse avô sendo o pai de minha mãe) que nenhum médico conseguia solução pra ele. na verdade, a solução seria desligar o nervo responsável pelo corpo sentir as dores. e a dor é sintoma de que algo está errado, então minha avó não gostava da ideia, tinha medo. um médico — que meu avô chama de anjo — conseguiu uma solução que foi desligar uma parada lá nos nervos, mas não completamente. deu certo, hoje ela está curado desse mal que o puniu por anos.

tem gente que mal pega gripe, nunca foi internado, nem quebrou um braço. eu acho esquisito já que vivi esse roteiro hipocondríaco na vida. e as vezes me pergunto porque tanta chagas em volta de mim. aliás, o meu bisavô, pai do meu vô, morreu da doença de chagas. mas agora, imagine, se desligássemos esse nervo que nos dá dor. e de repente vivemos alheios aos processos do corpo.

imagine, mais além, não sentir dor de coisa nenhuma. de amor, de raiva, de perda. ser meio cérebro de psicopata, sem sentimento, sem atravessamento. eu cheguei nesse pensamento hoje, mas confesso que ontem eu estava sentindo tanta dor e esperando ela passar pra poder trabalhar. até que cansei de esperar e fui trabalhar com dor mesmo assim. de repente, eu até gostei da ideia. não gostei de sentir dor, gostei da ideia de sentir dor. porque, de alguma forma assim, eu estava tão viva e meu corpo me comunicava algo. e eu meio que dizia pra ele “calma, já marquei médico pra semana que vem. vamos pegar os exames. vou fazer um chá pra você.” e ele obviamente continuava me dizendo “aaaaaaaaaaaa, tem algo de errado neste seu estômagooooooooooo, dor dor dor dor dor, venha olhaaaaaaaaaaaaar”, e eu respondia “eu sei que eu comi tudo que prende o intestino: banana, tapioca, mas você precisa mandar essa merda embora de mim”, e ele continuava irritado. acontece. tive que esperar o processo do corpo, tomei chá de hortelã a noite, hoje o estômago tá melhor até a hora do almoço, quando ele volta a doer.

a dor é meio que a experiência da vida. a gente não veio na vida pra sentir dor, mas se o corpo foi formatado pra sentir dor, a gente não devia odiar totalmente essa ideia, né? a dor é o limite. quando dói é melhor pausar ou melhor explorar aquele lugar. cada um com seus limites.

e eu que me sento numa cadeira desconfortável, agora no fim deste texto, já estou com a coluna doendo também. o frio congela os ossos. eu adoro a ideia de ter ossos, tão coisa de Saturno, aquela coisa que não decompõe e vive pra sempre me deixa viajando na maionese.

de repente me sinto um tanto afortunada por ter algumas dores que me atropelaram. lógico que seria melhor ter sido atleta, será? o fato de estar viva me torna menos capenga. além disso, conheço gente que adoece e parece que foi atropelada por um rolo compressor. eu já fui pra vida entre um vômito e outro, peguei metrô com febre, passei 4 dias internadas sem visita. essa ideia de calejamento me seduz de alguma forma. chegou o ponto que isso não me dá medo. eu sei sobreviver, de alguma forma, tirar sarro disso.

lamento só não ter conhecido métodos naturais antes, ou não beber tanta água quanto bebo hoje. mas agora já faço isso, e espero um dia poder viver sem dor meio que acolhendo essa coisa ingrata porém necessária que é a doença. doença, minha, de passagem. faz aprender o que a gente precisa, vai embora. minha reza é mais forte e poderosa.

a natureza tira tudo que põe. e é mais ou menos isso.

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Bárbara Ariola
diário do céu

sapatão historiadora da arte, antropóloga e astróloga. saturada por palavras a serem ditas, mitos a serem escutados, perspectivas a serem compreendidas.