Carta para Rami

Juliana Sbrito
BLOG DO LA
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6 min readJul 31, 2022
Photo by Jose Pedro Santos on Unsplash

Quem nunca leu um livro e desejou conversar com as personagens ou com o escritor ou escritora da obra? Depois de ler Nikeche: uma história de poligamia (2002), da autora moçambicana Paulina Chiziane, me senti impelida a escrever uma carta para Rami, a protagonista. Havia muito a falar; por isso, não poupei caracteres.

Olá, Rami, minha irmã.

Foi Paulina quem nos apresentou, passei alguns dias na sua cabeça e no seu coração e gostaria de te dizer umas palavras. Sinto que nos conhecemos há muito tempo.

Você é uma mulher que busca respostas, que pensa e sente. Está numa ótima idade para colher o fruto do que plantou até aqui, para descobrir coisas novas, para ter prazer e se sentir ainda mais potente como mulher. Sei que nessa fase da vida já perdeu muitas ilusões e pode confrontar os malefícios das idealizações dos relacionamentos românticos e ser livre para decidir. Você é uma mulher sedenta e tem olhos aguçados para buscar entender de quem é a responsabilidade dos fracassos e êxitos amorosos. Nada disso é fácil e isento de traumas. Viver é isso mesmo.

Muitas vezes você só pôde contar com seu espelho, único companheiro que refletia aquilo que você via e não reconhecia: quem é essa com olhos molhados, de corpo mais pesado e lento? Quem é essa outra que insisto em ainda querer ver jovem, aquela que me aponta as contradições e tenta despir as máscaras que a sociedade me impõe? Quem é essa que não sou e nunca serei? Quem é essa que não tem aquilo que as outras têm? As outras, sempre idealizadas e que também, assim como tu, Rami, são apenas sobreviventes de um jogo de cartas marcadas que não criamos as regras. São essas mulheres que doravante se chamarão rivais? Elas são as culpadas de teu infortúnio? Será mesmo? Em quem buscar amparo, entendimento? Também quero conhecê-las, Rami. Também quero me conhecer e saber mais dos diferentes mundos que nos habitam.

Percorrendo a escrita lírica de Paulina, vou contigo, Rami, a lugares diversos. Penetro lá longe, de norte a sul, onde só se encontram os velhos conselhos: “acostuma-te ao teu papel de serviçal, para isso tu foste bela um dia, para isso tu foste criada, para ser alicerce da Grande Instituição Família. Por ela e para ela, aceita ser objeto e servir de joelhos, é uma honra que muitas cobiçam em toda parte e em todas as camadas sociais. Comer migalhas é melhor que a fome perpétua e a solidão. Para isso vai para a escola do amor e sexo aprender como prender o teu homem, ele é o que semeia, ele é o que gera. Dele deve esperar teu sustento e proteção”. Uma mulher que pensa, como tu, Rami, ri das palavras sábias do patriarcado, sabe que és tu mesma que sustenta a todos com teu trabalho incessante, tu és a terra, a natureza, aquela que protege e sara as feridas, alimenta, ensina as crianças, conta histórias e prepara as melhores partes do cozido, que eles arrebatam para si desde tempos imemoriais. Se reservam o direito ao melhor para que possam gozar do privilégio, do incenso constante, das honras, das graças da sociedade, como eternos meninos aventureiros, sem as quais eles pensam não ter lugar e função. Pobres meninos desamparados e mimados! Será que é mais fácil ter a permissão para não crescer nunca? Que prisão terrível deve ser essa. Talvez por isso gerem os conflitos e as guerras, uma velha brincadeira de ser grande. Nós também os ensinamos a ser assim.

Rami, você nos lembra que há entre nós aquelas que se consolam com a ilusão de ao menos serem mães de seus companheiros. Mãe é sagrada, tem poder no clã, todos precisam da mãe, não é? Rio contigo e choro contigo, Rami, o luto por tua tia, morta pelo capricho e ingratidão daquele que nem merece ser nomeado. Como tantas de nós, ela perdeu a vida por um detalhe insignificante. Choro por aquelas que se mutilam, ou são mutiladas, pelas meninas que não são ensinadas sobre o amor-próprio. Não foi essa a escola que muitas de nós frequentou e ainda frequentará? Nesse instante as academias e salas de cirurgia plástica estão lotadas, quantas mulheres não acordarão? Essa cultura alimenta entre nós o consumo ansioso por procedimentos estéticos, prometendo a eterna juventude, anunciando um lugar seguro para nos abrigar, o da aceitação e reconhecimento se formos capazes de seguir fielmente e sem questionar as regras do jogo.

Quem é esse Tony, o “seu Tony” que decide com quem e como quer ficar? Aquele que faz filhos como um rato e não cuida de nenhum? Aquele que só consegue estar bem vivenciando o melhor dos relacionamentos, o descanso, o cuidado, o prazer de um corpo novo e jovem, as surpresas e desafios de novas relações ao sabor do próprio desejo? E, lá no secreto, nem sabe, ou finge não saber, que, quando anda, pisa e esmaga todos à sua volta. Não consegue ser nem pai, nem marido, nem amante. Como deve ser triste, vazio e doloroso ser Tony. Minha raiva me impediu de chorar por ele, mas reconheço que ele também sofre.

Uma mulher que pensa e busca é uma mulher que consegue olhar para além do seu umbigo, reconhecer que as causas de seus problemas não são meramente individuais, estão mergulhadas na cultura. Uma mulher que pensa e sente é uma mulher que acolhe, exatamente quando reconhece e iguala suas dores às de tantas outras, é alguém que sabe ouvir. Uma mulher que não se conforma tenta encontrar saídas, é capaz de entender e aceitar que as outras mulheres são suas irmãs.

Uma mulher que pensa, sente e age, mesmo que a princípio ainda adestrada, só queria a conciliação, apazigua e tenta pacificar a si e aos outros, mas que, ao navegar pelas contradições da vida, se reconhece como ser que deseja e de repente se permite. Também quer se sentir viva, aceita enfim receber, pela primeira vez, como uma profecia anunciando que haverá outras vezes em que seu corpo e alma poderão ser abraçados exatamente como é, e será muito bom. Que libertação!

Uma mulher que batalha, ajuda, prospera e divide, multiplica, percebe que não é sua função a responsabilidade de tomar decisão pelos outros. Fêmea, faz o retorno ao jardim do Éden. Adão e a Serpente, cara a cara. Dessa vez não aceitará a responsabilidade pela expulsão do paraíso, Adão terá que se movimentar, terá que assumir seus atos e desejos. Mas ele ainda é criança, quer voltar para o ventre da mãe, tem medo de sentir dor e encarar sua pequenez. Adão não aprendeu a dialogar, não é capaz de abrir seu coração. Diz sem dizer, mente para si e para os outros, porque aprendeu desde sempre a se afirmar como senhor. No entanto, ele também sofre, não consegue aproveitar os momentos e o que vem depois do gozo, a convivência e a responsabilidade afetiva sobre as pessoas que ele toca. Essa lição aprendeste desde cedo, não foi, Rami? Há quanto tempo carregas o mundo, minha Rami?

Julieta, Luísa, Saly, Mauá e Eva são outras faces de si e de Moçambique, do mundo todo. Mulheres práticas que aprenderam a tirar vantagem do sistema, sobreviventes. Elas também sofrem, elas também, em movimento constante, aprendem contigo como é importante ter independência, conquistar um lugar de fala e não apenas de sussurros e gemidos, para poder decidir, saber que há opções, romper com a falsa ideia de que nada melhor nos aguarda, que não podemos transitar em outros mundos e criar outros caminhos. O mundo é tão vasto e diverso. Ainda bem.

Rami, liderar é bom, não é? Imagina gastar essa energia em seus próprios projetos e ter retorno. Viver em relações de reciprocidade. Se nada disso está dado, ao menos, Rami, em tua cabeça, caminhando pelo bordado da Paulina Chiziane, avançamos, não é Rami?

Agradece por mim a Paulina por acender uma fogueira e se sentar aqui comigo nesses dias em que andei ocupada com o livro dela. Você não tem noção de como fiquei contente quando ela ganhou o Prêmio Camões, maior honraria para autores e autoras da Língua Portuguesa. Diz para ela que fiquei ainda mais orgulhosa quando soube que ela foi militante na juventude pela independência de seu país, Moçambique. Soube que ela atua na Cruz Vermelha e na ONU pelos Direitos da Mulher. Ela é uma exímia contadora de histórias, mulher preta e milenar, nossa ancestral contemporânea. Diz para ela que também estamos lutando por aqui, para que as mulheres de nosso país tenham a liberdade de existir sem perigos constantes.

Agradece por mim a Paulina, diz que mandei lembranças e que também estou por aqui recolhendo histórias para fazer o meu próprio bordado.

Abraços fraternos daqui da Bahia, em 30 de julho de 2022.

Juliana Brito

Capa do livro Niketche — uma história de poligamia, de Paulina Chiziane, publicado pela editora Companhia das Letras.

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Juliana Sbrito
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Coordena o Clube de Leitura Um Dedin de Prosa e Poesia e a Biblioteca Comunitária Donaraça. Não dissocia o ato de ler da pulsão pela escrita.