“Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”

Ana Claudia
BLOG DO LA
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4 min readOct 6, 2020

O tema sorteado pelos Leitores Anônimos para o mês de setembro foi DISTOPIA. Em agosto de 2018, quando sorteamos esse mesmo tema, fizemos a leitura de Senhor das Moscas, de William Golding, livro que, por unanimidade, foi classificado com 5 estrelas. Neste ano, com Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago (que recebeu quase 50% dos votos) a reação não foi diferente: o livro entrou para o TOP 5 de leituras favoritas do clube.

Em uma entrevista a respeito de Ensaio sobre a cegueira, José Saramago disse: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”.

Com uma narrativa construída a partir de um acontecimento específico — uma epidemia de “cegueira branca” — e um uso único da linguagem, Saramago ultrapassou seu objetivo. O romance, publicado em 1995, contribuiu para que o autor ganhasse o prêmio Nobel de Literatura três anos depois e fez com que a literatura em língua portuguesa ficasse mundialmente conhecida. O livro chegou a ganhar uma adaptação para filme no ano de 2008.

Todo esse sucesso alcançado por Ensaio sobre a cegueira não foi à toa. Saramago aborda, nesse romance, diversas questões que nos fazem refletir sobre o que caracteriza um ser humano: será que somos realmente civilizados, organizados e melhores que os outros animais? O que é, de fato, ESSENCIAL para nós? A violência é necessária para estabelecer relações de poder? Qual visão (isso não é um trocadilho) nossa sociedade tem da morte? O que o medo nos faz [deixar de] fazer?

Talvez não seja possível chegar a respostas conclusivas.

Ensaio sobre a cegueira é uma daquelas leituras que nos fazem refletir por dias — essa reflexão é potencializada pelo diálogo com outros leitores — e ficar com ainda mais perguntas. Algumas pessoas relataram, inclusive, que não conseguiam ler muitas páginas do livro de uma vez, pois não se trata de uma leitura leve.

Em nossa discussão, ressaltamos que a construção dos personagens e o fato de não terem nome demonstra que, diante de um abalo na estrutura social, o indivíduo perde sua importância, o status não mais importa; a questão é, agora, coletiva. Porém, ao mesmo tempo, o egoísmo se destaca: “na verdade, sentencia o narrador deste romance, ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra” (p. 169).

Observamos, também, que o papel das mulheres do livro é muito importante para a resolução de conflitos e a organização. Essas personagens são acometidas por duras violências e é necessário um olhar acurado e cuidadoso a este ponto. Contudo, são elas que arranjam forças e se sacrificam para mudar a situação. Além disso, toda a responsabilidade que a mulher do médico toma para si mostra que, talvez, o ditado “em terra de cego quem tem um olho é rei” nem faça tanto sentido assim.

Por fim, gostaria de ressaltar os múltiplos sentidos da CEGUEIRA e sua relação com [a falta de] valores como empatia e integridade. Essa é uma possível explicação para o fato a mulher do médico não perder a visão… (Por que procuramos explicações para tudo?)

Eleger um livro que aborda uma epidemia, em uma época em que lidamos com o Covid-19, foi uma atitude, no mínimo, corajosa, mas acredito que toda essa situação intensificou a experiência de leitura e a tornou ainda mais próxima da realidade. Enfim, a leitura de Ensaio sobre a cegueira, primeiro livro português do Leitores Anônimos, foi aclamada pelo clube e mostrou o quanto gostamos de distopias.

Nossa próxima discussão será no dia 08 de outubro, a respeito do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (eu não disse que gostávamos de distopias?).

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