19 de Junho de 2020 — Apanhando

Tauá Chuá
Diários de Quarentena
4 min readJun 20, 2020

Ontem tive a primeira aula de um estágio novo, uma aula um pouco fora de contexto, mas que aconteceu sem maiores problemas. No fim, a professora pediu desculpas pelas dificuldades das aulas virtuais e deu um relato sobre funcionamento do hospital, nada demais, mas eu tive uma puta crise de choro, me senti muito desesperada. Ela disse que tava com saudade de ter alunos no hospital, de poder raciocinar medicina e não só reagir a intercorrências constantes, que a equipe tá toda muito tensa e hostil por causa do estresse, que é bom dar essas aulas mesmo a distância pra poder falar de outros assuntos além de covid, que os casos aumentaram muito nas duas últimas semanas, e finalizou falando que o Pronto Socorro todo a partir de hoje tá em “isolamento aerosol” porque não tem mais leito então os pacientes com corona ou suspeita estão ficando em macas lá, que todo dia sai briga e alguém chorando…

Daí eu fiquei imaginando os corredores do hospital todos vazios e escuros que nem fica durante os plantões noturnos e que às vezes eram tão sombrios, pensei nas coitadas das enfermeiras dando patada em todo mundo por estarem sobrecarregadas até o talo, com medo por serem as mais a frente dos atendimentos, no desespero que a equipe deve estar sentindo de não saber onde enfiar paciente, de ver colegas afastados por contaminação e até internados. Como deve ser ruim chorar por baixo de toda aquela roupa do EPI (proteção), deve ficar tudo embaçado e não dá sequer pra enxugar os olhos com ela, ou receber um abraço no fim do expediente. Como deve ser horrível chegar em casa depois de ver tanta desgraça e não poder chorar no colo de ninguém por medo de transmitir algo às pessoas que ama.

Tudo isso dói muito, dói como se torcessem o meu coração dentro do peito.

E a perspectiva de que essa não vai ser a última pandemia que a nossa geração vai presenciar, e que a gente perdeu todas as oportunidades de passar por esse momento de um jeito organizado e não se foder tanto, por pura incompetência e irresponsabilidade dos órgãos públicos. A partir de agora nada mais vai evitar a catástrofe, mas a população ainda não assimilou que tá a própria sorte, que o Estado abandonou todos nós a deriva pra morrer.

Há duas semanas atrás o governo do Estado de São Paulo permitiu a abertura e retomada gradual das atividades, exatamente no mesmo dia em que meus colegas de classe comunicaram no nosso grupo que todas as vagas do Hospital Universitário (tanto UTI, quanto enfermaria) estavam ocupadas. Alguns dias depois houve o comunicado de que todas as vagas municipais também estavam ocupadas, inclusive as de hospitais de campanha. E notícias e mais notícias de que o comércio do centro da cidade estava lotado.

Hoje, como se não fosse absolutamente previsível, a prefeitura anunciou que os casos aumentaram muito e decretou novamente o fechamento do comercio. Daqui uma semana vai tudo estar um completo caos.

Enquanto isso, meus colegas de turma estão fazendo votação pra escolher os professores homenageados da nossa formatura… Estão preocupados com quando vai ser a prova de residência… Angustiados porque a gente precisa voltar a ter estágio presencial senão não vamos ter carga horária suficiente para nos formarmos a tempo esse ano… Eu interpreto isso como despersonalização, uma tentativa de manter a cabeça ocupada com uma ilusão de futuro inexistente pra não encarar a realidade porque não há outra explicação razoável pra mim. Os professores não estão conseguindo organizar um cronograma de uma semana com aulas de 2h por dia, imagina só organizar um estágio presencial em um hospital totalmente caótico e com necessidades muito mais urgentes nesse momento.

Rodam uns boatos alucinógenos de que cancelariam nosso ano letivo, ou de que a gente ia se formar agora em junho pra tapar buraco onde fosse necessário. O boato mais atual é de q a gente voltará a ter atividade presencial no hospital em Agosto. Me diz como?! Com que EPI que não existe nem pras pessoas essenciais ao serviço?

Hoje os residentes do hospital emitiram uma carta aberta denunciando as cargas horárias abusivas e desorganização do serviço. Outra colega trouxe um relato similar ao da professora ao grupo e eu finalmente senti que talvez agora a ficha deles comece a cair um pouquinho.

Cada dia que passa é um desafio a não “trancar” o semestre e eu não sinto que pros outros alunos isso sequer passa pela cabeça, e isso me assusta muito.

Ontem e hoje alternei entre ter crises de choro de quase gritar os pulmões pra fora, com tentativas desesperadas de dormir ficando com a cabeça embaixo da coberta até dormir ou sufocar. Tenho me sentido mais sozinha do que nunca. Tenho apenas mais três comprimidos de antidepressivo e esqueci de marcar consulta de retorno com meu psiquiatra, não sei o que vou dizer pra ele sobre o último ajuste de dose, pois eu não faço a menor ideia se eu estou ou não bem, mas também não acho que dê pra ficar muito melhor nessas condições insalubres de existir.

Fora tudo isso que eu já falei, e a situação política nacional que mais parece um picadeiro, passei três dias com dor de garganta, febre baixa e me sentindo abandonada no mundo. Tive que ir ao posto de saúde dos alunos e consegui pegar o antibiótico gratuitamente. Ao todo, tive apenas um dia feliz essa semana, um dia sem dor no corpo e sem nenhum sofrimento me nocauteando a cada segundo, mas não foi hoje.

Hoje me dediquei em arranjar uma manga madura e decidi que vou me permitir andar de bicicleta no bairro de vez em quando.

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Tauá Chuá
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Amarga, vibrando os pensamentos, odiando cada letra escrita, mas persistindo.