24 de Maio de 2020 — Morosidade

Tauá Chuá
Diários de Quarentena
3 min readMay 25, 2020

Choveu forte durante toda a madrugada, com direito a trovões e vento uivando alto. Fazia mais de dois meses que não chovia uma gota. Os gatos dormiram aninhados no meu cobertor a noite toda.

Ontem amanheceu um dia bonito, sai do quarto e atravessei o quintal, sentindo uma brisa fresquinha, caiam folhas pequenas por todo gramado do quintal e os gatos se espreguiçavam lentamente me seguindo para dentro da casa principal. O dia estava absurdamente iluminado e com um certo tom de sépia, como uma foto bem antiga.

Tomei o Omeprazol e passei o café com uma pitadinha de canela, eu não tinha pão e nem nada tipicamente matinal, então fui tomar uma xícara de café na varanda enquanto pensava, fui anotando as tarefas que eu poderia me dar durante o dia na minha agenda física, e em seguida entrei no twitter e um colega da faculdade de química lamentava a morte de um amigo, pouquíssimas horas depois descobri quem era.

Eu moro em uma casa linda alugada, com outros estudantes, e antes de morarmos aqui outros estudantes moravam aqui desse mesmo jeito. Este rapaz, que morreu subitamente hoje, era uma dessas pessoas, vi uma foto dele sentado no sofá no meio da sala em que eu estou agora ao lado de um outro rapaz que eu namorei anos antes e fiquei com a cabeça vazia flutuando pelos tijolinhos a vista da parede da sala na imagem. Não tive coragem de buscar mais informações sobre a morte, fiquei o dia todo ausente das redes sociais evitando qualquer notícia sobre.

Ele é a segunda pessoa jovem, que eu conheço, que já morou aqui e que morreu de um jeito absurdo. A outra era uma amiga minha, que morreu na véspera de natal de 2018 em uma tromba d’água de uma cachoeira. Quando me contaram achei que era mentira ou que havia algo errado, mas ai vi uma foto dela em reportagens noticiando o acidente e que haviam achado o corpo dela. Na foto, ela estava arrumada pra ir a uma festa, ao fundo a nossa sala de jantar. Tudo absurdamente mórbido e banal.

Comi umas bolachas doces com mais café e depois tomei o primeiro comprimido da nova dose de Venlafaxina, a dose que era o objetivo do meu psiquiatra pra mim, já fazia alguns dias que eu vinha tomando essa dose, mas em combinação de dois comprimidos da dose anterior. Eu estava curiosa, rompi o lacre e vi que o comprimido era cor de laranja bem vibrante. Laranja é minha cor favorita e eu não tenho quase nada dessa cor, agora eu tenho o antidepressivo laranja.

O dia foi passando, li muitas páginas de um livro de contos sem entusiasmo, tentei fazer receitas que deram errado e acabei com pão de batata improvisado e bolo com especiarias, ambos muito bons, mas fora do programado. Criei expectativas e imaginei cenários hipotéticos de futuro.

Fui dormir cedo por puro tédio, acordei algumas vezes ao longo da madrugada preocupada com milhares de coisas, conferi se a fruteira estava fora do alcance do Gambá que frequenta e rouba nossa casa (deixei ovos crus pra ele na grama, pra evitar o roubo), separei briga entre os gatos por uma caixa de papelão, reli conversas que tive ao longo do dia, anotei ideias de tarefas, tive um monte de sonhos irritantes.

O dia de hoje foi parecido com o de ontem, mas hoje eu consegui estudar um pouco e aquietar um pouco os meus pensamentos, mas sigo bastante pessimista e irritada, aguardando ansiosamente um horário aceitável para tentar dormir.

Ps: o Gambá comeu os ovos, ele fez um furo na casca e sorveu o interior. Ficou tudo limpinho e ele não entrou em casa pra roubar o lixo ou a ração dos gatos. Eu gosto de resolver conflitos de forma gentil.

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Tauá Chuá
Diários de Quarentena

Amarga, vibrando os pensamentos, odiando cada letra escrita, mas persistindo.