7 de Maio de 2020 — Privilégios

Tauá Chuá
Diários de Quarentena
3 min readMay 23, 2020

Há dois dias eu disse que estava com medo de morrer, que estava sentindo uma profunda necessidade de dizer sentimentalidades e aproveitar cada minuto como o ultimo, e não soou como uma adolescente boba, nem casual como nos meus pensamentos, a minha voz tinha um peso muito maior do que o que eu planejara, eu não estava dizendo aquilo apenas para ele, mas eu também ouvi com meus ouvidos a minha voz. E ela tinha uma dor que eu não havia notado antes.

Eu realmente estava com medo de morrer e não havia tomado a dimensão do que isso significava ate que eu mesma tivesse dito em voz alta. E é como se, as minhas cordas vocais, o meu corpo também estivesse com medo, afinal, meu corpo também sabia o que estava acontecendo, apesar do meu cérebro estar se negando a pensar a respeito, o meu corpo sentia independente disso, e ele também é parte de mim apesar de nos fragmentarmos as vezes.
Foi ali, no medo assumido que eu me reuni em todos os pedaços que se repeliam.

Ele tomou meu rosto entre suas mãos e disse firme com os olhos nos meus, muitas vezes, que isso não estava nem em cogitação, que eu não iria morrer. E nasceram novos antagonismos tencionando o meu novo eu reunido em direções opostas querendo partir-se novamente. O medo de morrer e a ansiedade de estar viva em cada molécula do meu corpo, coabitando de mãos amarradas.

Estou vivendo com a expectativa constante de ser convocada para trabalhar no hospital durante a pandemia. O que vai acontecer apenas quando o total caos for instalado, já que eu nem diploma de médica tenho ainda e os estudantes serão os últimos a serem chamados aparentemente. Ao mesmo tempo em que a rotina tem sido doce, em que tenho estabelecido meus horários e meus afazeres com bastante tolerância. Até demais, na verdade, já que faz duas semanas que não consigo estudar e que escrevo isso com muita dificuldade. Meu cérebro tem estado disperso, excessivo e autocentrado.

Tenho perdido as aulas online, um pouco por desinteresse e ainda mais pela desatenção. Eu queria que a graduação tivesse desaparecido, tenho tido constante vontade de apenas fingir que ela não existe e viver numa doce mediocridade baseada numa rotina lenta e prazerosa, voltada exclusivamente em viver o melhor possível enquanto for possível. Acordo, alimento os gatos e cuido das necessidades de atenção deles, rego as plantas e converso com elas sobre o sol e a fertilidade do solo, cuido da composteira e fico maravilhada com o quão pouco lixo tenho produzido, leio algum texto por lazer, tento estudar minimamente, cochilo com algum gato preguiçoso na rede da varanda, almoço tarde, falo com meus amigos a distancia e aguardo o dia acabar sem pressa, e ele acaba tão rápido que é quase inacreditável o quanto se fazer feliz consegue ocupar um dia inteiro. Fico preocupada com a distopia que será a continuidade da quarentena por muito mais tempo e principalmente o fim da pandemia e o retorno a “normalidade” e a impossibilidade de tomar um café da manhã com pão quente fermentado ao longo da madrugada, isso é um privilégio enorme e que acontece aqui apenas em um piscar de olhos da nossa existência. Eu nunca me senti tão sortuda e amedrontada ao mesmo tempo.

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Tauá Chuá
Diários de Quarentena

Amarga, vibrando os pensamentos, odiando cada letra escrita, mas persistindo.