9 de Junho de 2020 — Abusos

Tauá Chuá
Diários de Quarentena
8 min readJun 16, 2020

Faz uns dias que venho ensaiando de escrever sobre isso, porque é um assunto difícil, especialmente de começar, porque

eu vou falar sobre abuso,

e quando é sobre mim eu sempre fico meio cheia de dedos, mas bem… Depois de ter tido o meu corpo violado há um ano e meio atrás eu entendi que não adiantava mais fugir desse assunto, mesmo tendo ficado todo esse tempo ao redor sem tocá-lo de fato.

Logo no início da quarentena, a Fiona Apple, que é uma cantora que eu gosto muito desde a infância, lançou uma disco novo após quase 10 anos sem nenhuma novidade, eu venho consumindo-o como se ele realmente pudesse me alimentar, e isso me reconectou com muitas coisas da minha insanidade e que eu vinha sentindo falta.

Que difícil organizar as ideias… Já posso concluir qual vai ser o ritmo desse texto, ele vai ser lento e vai dar muita volta, então vamos com bastante calma, certo?

Mesmo tendo uma graduação pra cuidar, um monte de assunto de medicina pra estudar, venho aproveitando o efeito do antidepressivo, que me possibilitou, finalmente após 4 anos de completa incapacidade, me concentrar e manter o foco por alguns minutos ininterruptamente, pra ler coisas por prazer pura e simplesmente. Semana passada comecei e terminei 2 livros e um deles é um livro de poemas, relativamente famosinho entre as feministas, que se chama “Outros jeitos de usar a boca”, da Rupi Kaur, li ele todo em três horas durante uma manhã, e pra minha surpresa, apesar de ser um bestseller, ele é realmente muito bom (fica ai a recomendação). Mas, bem, esse é um livro que abarca temas como infância, abuso, amor, relacionamentos e crescimento, tudo dentro de uma visão feminina e feminista, e eu encontrei o seguinte poema, que é a real introdução desse texto que estou tentando começar:

“o estupro vai te rasgar ao meio mas não vai ser o seu fim’” — Rupi Kaur

Essa frase, pra mim, é um passo além na discussão sobre abuso sexual, e outras violências de gênero também. Não sei vocês, mas dentro do meu nicho de discussão feminista a gente ficou muito tempo descobrindo e ensinando sobre o que é violência e sobre como a maior parte das mulheres (ou todas) já passou por algum tipo de violência de gênero (dentro de um espectro amplo e com significados e consequências individuais muito diversos), e nesse muito tempo dessa quebra de paradigma de se descobrir vitima e de poder combater os estigmas e a cultura que propaga e normaliza a violência, houve muito crescimento, sem sombra de duvida, mas eu ainda me sentia empacada pessoalmente.

Essa frase, foi revolucionaria em mim, porque ela fala do depois. E sempre foi surpreendente pra mim, como a gente continua vivendo mesmo depois de tudo, mas como eu sentia que era um errado pensar que “tudo ficaria bem” depois de um estupro.

Eu escrevo desde jovem e escrevia muito mais do que hoje quando era adolescente, na verdade. E lembro que um dos romances que eu comecei a escrever, em certo momento, era sobre uma jovem que se suicidava para se vingar de um rapaz que gostava dela e que não aceitava suas recusas e a estuprava. Só esse enredo já renderia umas boas sessões de análise e outras tantas discussões sobre o uso crônico de violência (principalmente sexual) contra personagens femininas como recurso narrativo para torná-la “interessante/forte” em uma trama, em produções culturais (especialmente cinema e literatura); e também poderia fazer um largo discurso sobre a falácia da “friendzone”. Mas o ponto que eu quero destacar aqui, é que a adolescente que eu fui não se imaginava capaz de continuar vivendo após ter seu corpo violado.

Parte do meu fascínio sobre a Fiona Apple era o fato de ela falar abertamente e em muitas músicas sobre o abuso que ela sofreu na infância, e eu ficava abismada como ela era uma mulher forte e extremamente sentimental (intensa) apesar disso tudo. Pra mim, a vida dela era um paradoxo, e eu temia que coisas ruins acontecessem com ela ou que ela em algum momento descobrisse que o único jeito possível era morrer.

E quem diria que eu passaria por isso tantas vezes, não é mesmo?

Mas nenhuma dessas tantas vezes foi como eu imaginava e como o imaginário coletivo sustenta, que é aquele velho clichê de “estupro baseado em penetração forçada com violência e ameaça física (de preferencia com armamento) por um homem estranho a noite em um beco escuro”.

E demorou tanto tempo pra eu me dar conta… Eu comecei a ler teoria feminista durante o ensino médio, e sempre fui a pessoa que “aponta” cenas de violência pra amigas, que dava suporte e incentivava denuncia e cuidados. Mas eu demorei muito tempo pra olhar as coisas que se passavam na minha própria vida e dizer “olha, isso aqui é abuso também, senhorita” e ainda mais tempo pra assumir e muito mais pra fazer algo sobre isso.

O primeiro foi o rapaz com quem eu perdi a virgindade e que achava aceitável eu “aguentar um pouquinho de dor porque estava quase gozando assim”, mesmo eu estando profundamente incomodada com aquela posição; que não se importava em meter em mim sem lubrificação alguma; que achava ok eu sangrar numa relação anal e não me informar e nem parar de meter mesmo assim; que mentia pra mim sobre sua lealdade e uso de preservativo em relações com outras mulheres; que dizia “sentir nojo” de mim e me fazer sentir obrigada a remover todos os meus pelos se eu quisesse que ele “me chupasse” e nunca o fez mesmo assim; que nunca teve a menor consideração por saber se eu sentia algum prazer naquilo. Esse ainda foi relativamente fácil de perceber porque era uma relação absolutamente abusiva e violenta ao meu corpo.

Mas, foi nesse caso que eu encontrei o primeiro entrave, quando eu senti necessidade de dizer pra ele que ele era um bosta e que eu nunca mais sairia com ele, ele se fez totalmente de desentendido e eu sai como louca nessa conversa, mesmo estando coberta de razão e de apoio de amigas. Foi ali que eu percebi que ele nunca entenderia o que ele fez pra mim. Foi ali que eu entendi que nunca haveria forma de ele se sentir realmente mal pelo que me fez. E foi uma experiência de encontro com a frustração tão intensa que ate hoje ela me desce atravessada pela garganta.

O segundo relato que eu quero deixar aqui, é mais recente e é difícil explicar isso, porque não quero expor ninguém. Também se trata de um abuso prolongado por um rapaz que namorei por muito tempo. E que um ano depois do término comigo, por intimidação e absoluto desrespeito ao fato de eu ter dito que não queria transar, me estuprou. Não, não houve violência física (apenas psicológica), da mesma forma que eu não ofereci mais resistência além do fato de dizer que não queria. Minha mente estava focada em sair dali com a menor quantidade de dor e sofrimento físico (obrigando o uso de preservativo, relaxando os músculos pra não me machucar localmente, evitando que ele me batesse, por exemplo), porque enquanto tudo isso acontecia eu estava plenamente consciente do nome daquilo: “estupro” e isso me fez perceber quantas vezes durante nossa longa relação nosso sexo foi muito parecido com isso, de forma que eu também duvido muito que ele (assim como o outro cara) entendam o que eles fizeram. E eu até mesmo não acredito que ambos tenham tido a intenção de me fazer mal, eles só estavam muito mais interessados no bem deles e eu era um mero objeto ali que eles achavam amar.

Agora veja bem, não estou dizendo que eles não tem culpa do que fizeram, de forma alguma. Mas eu também acho que a “culpa” não é só deles, eu acho que toda vez que uma mulher tem o seu corpo violado, não é só um homem que fez isso, mas toda a sociedade e cultura patriarcal.

Eu demorei um mês para ter coragem de falar sobre isso com meu atual companheiro na época, não porque eu não confiasse nele, mas porque eu precisava organizar o acontecimento pra mim também antes de conseguir explicar isso pra alguém. Demorei muito tempo também pra falar disso com amigas e outras pessoas, mas não porque eu não quisesse, mas porque eu sempre ficava em duvida de qual informação dar e quão profundamente eu deveria falar daquilo pra não estragar a conversa ou não fazer mal a alguma outra pessoa com o assunto, e essa ainda é uma preocupação real e presente inclusive neste momento em que escrevo.

Durante esta quarentena, eu revi os acontecimentos numa sessão de análise e foi interessante pra mim como eu havia suprimido certos pontos da historia tantas vezes que até pra mim era difícil reconstruir e pensar a respeito profundamente. E doeu, e ainda está doendo ter reconstruído aquilo, mas pelo menos deixou um pouco de ser um bicho-papão embaixo da minha cama, mas um monstro com o qual eu posso bater um papo às vezes, e que na maior parte das vezes é intimidador e cruel, mas que está lá no mesmo lugar e não sai de lá, sem minha autorização, com tanta frequência quanto antes. Às vezes é bom olhar um pouco pra gente e cuidar das nossas dores.

Eu tive também, na mesma semana da terapia, uma aula por videoconferência de ginecologia sobre abuso sexual e direitos sexuais e reprodutivos, que foi incrivelmente boa, muito sensível e reflexiva, mas a minha cabeça queria falar de mim mesma, mas ali não era o momento, então eu fiquei contemplativa e inquieta dentro de mim mesma, me perguntando se eu deveria falar sobre isso com a professora ou não. Eu ainda tenho muita dificuldade com a figura “médico” mesmo quando ela é acolhedora e compartilha visões e práticas que eu admiro. Eu ainda não me sinto médica enquanto classe e isso é um conflito extenso, que não cabe nesse texto.

Mas uma coisa que sempre bateu forte em mim todas as vezes que eu falei sobre a minha experiência foi o medo de “ser vista” como vitima, mesmo tendo-o sido, porque pra minha adolescente, não havia nada a frente no futuro de uma vitima, porque o mais sagrado dela havia sido tirado, algo que eu nem sei nomear direito. Eu demorei tantos anos de amadurecimento pra entender que a autonomia do corpo é algo muito mais complexo que isso, e só agora eu entendo, parcialmente, que existe muita coisa além do sofrimento. Existe a comunidade, o suporte, a força e a resiliência. Resiliência é uma palavrinha da moda, mas que vem a calhar, ela significa na física dos materiais, a capacidade de um corpo/material de voltar ao estado anterior após ser deformado, até onde me lembro. Resiliência é a capacidade de mesmo após algo terrível acontecer com você, você continuar vivendo, mas não como antes nesse caso, porque a gente nunca mais é a mesma (e isso não é ruim também). É difícil enquanto sociedade não pensar em uma mulher que foi estuprada como uma coitada ou como uma sobrevivente porque essa visão também é irmã da construção do estuprador como um cara violento e estranho que te ataca em um beco escuro, e bem, eu não sou nenhuma das duas coisas (nem coitada e nem sobrevivente) e meus violentadores não são desconhecidos ameaçadores, nem de perto a história bate, e geralmente não bate mesmo. E fica esse vazio na discussão, esse monte de mulheres sem entender como viver vivendo todos os dias.

Eu senti que fui toda esfarelada e que eu ainda estou vendo quais farelos eu vou reaproveitar e qual formato eu quero ter, as vezes é como se eu estivesse vivendo provisoriamente, mas já faz tanto tempo que parece que o provisório é o definitivo em alguns dias. E assim como qualquer pessoa, eu também estou em constante aperfeiçoamento, e isso não é só pelos abusos, mas pela condição humana mesmo.

E é assustador mesmo, mas pelo menos eu tenho o privilégio de ter ciência disso.

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Tauá Chuá
Diários de Quarentena

Amarga, vibrando os pensamentos, odiando cada letra escrita, mas persistindo.