Da interação à experiência: o que os profissionais de UX podem aprender com o universo artístico

Joice Portes
Dialograma
Published in
8 min readFeb 24, 2021
Ação de experiential marketing ou live marketing: https://www.wilyglobal.com/7-genius-experiential-marketing-campaigns-leveraging-digital-technology/

Quer ouvir o nosso texto em vez de ler? É só clicar no player abaixo!

No meu trabalho, se o espectador não se propõe a fazer a experiência, a obra não existe.

Esse depoimento é de Lygia Clark, uma das mais importantes artistas do século XX, e certamente poderia ser usado por Don Norman em algum de seus livros sobre o desenho da experiência, não acham?

Bem, não é novidade para ninguém, ou quase ninguém, que entre o design e a arte há muitas convergências, assim como um mundo de distinções. Mas o convite que venho fazer por aqui não é sobre definir fronteiras, conceitos ou limites entre uma área e outra. A proposta é refletir sobre algumas palavras que compõem uma espécie de guarda-chuva vocabular, que é partilhado entre esses dois universos.

Experiência. Interação. Interatividade. Performance…

A busca por entender, conectar, comunicar em ação ou produto as necessidades do usuário é intrínseca ao pensamento da pessoa designer, tal como a organização das formas e recursos a fim de propor atravessamentos racionais e emocionais ao interlocutor sempre foi a busca daqueles que se comunicam através da arte.

Seja em uma pintura rupestre, numa nova forma de espremer laranja, na ópera Renascentista, na instalação em uma vitrine de loja, ou em uma solução para bloquear um cartão extraviado, ambas as áreas sempre estiveram com o pensamento centrado no humano, na interação com o outro, ao qual o fruto de suas comunicações se destinam.

Mesmo que assíncronas e desterritorializadas, essas interações, que são a relação entre o público e o espetáculo ou obra artística, ou mesmo entre o usuário e o produto ou serviço, não deixam de ser um processo de recepção e interação. Em outras palavras, por mais distantes ou em uma posição de inatividade que aparentem estar, os receptores sempre atribuem sentido e significados para essas relações.

Por mais que uma pessoa em 2021 não possa ter contato com Picasso para contar a ele sobre os resultados e significados de sua interação com Guernica, ou que eu lamente profundamente o fato de não existir Twitter em 1997 para compartilhar minha frustração com o desastre de usabilidade que levou à morte meu primeiro Tamagochi, estamos tratando de interações e experiências.

A pergunta que você provavelmente está fazendo a essa altura é: o que é que tem de novo nesse lance da experiência, então, cara pálida? E o que a arte tem a ver com isso?

Visual merchandising feito pelo artista plástico Salvador Dalí para uma loja em Nova York https://www.salvador-dali.org/en/artwork/catalogue-raisonne-sculpture/resized_imatge.php?obra=7feab9bd42ece411947100155d647f0b&imatge=0

Resgatando Lygia Clark, que eu mencionei lá no início, a ideia de levar a interatividade como critério absoluto de suas propostas começou a ganhar corpo no universo artístico a partir dos anos 1960. Lygia, juntamente com outros artistas que integravam o grupo Frente, foi uma das precursoras na pesquisa da experiência como o centro da criação aqui no Brasil.

A partir de movimentos desse tipo que rolaram ao redor do globo, foram surgindo nas décadas posteriores expressões artísticas que levaram essas premissas a camadas ainda mais complexas e inovadoras, como as performances, que romperam com a ideia de obra artística, trazendo a noção de evento, uma experiência que ocorre apenas no momento da interação com o outro.

Esse outro, então, não é mais visto como espectador. Passa a ser um cocriador nessa relação, uma vez que as obras eventos têm seu processo de criação e sua exibição ocorrendo simultaneamente, o que faz desse outro, portanto, um experimentador ativo no processo de criação enquanto ele ocorre.

“Túnel” (1973/2012 — tecido), criação de Lygia Clark que pôde ser experimentada pelo visitante na exposição “Lygia Clark: uma retrospectiva”.

A atriz e diretora sérvia Marina Abramović, um dos maiores nomes desse gênero, define a performance como

uma construção física e mental que o artista executa num determinado tempo e espaço, na frente de uma audiência. É [como] um diálogo de energia, em que plateia e artista constroem juntos a obra.

Esses movimentos artísticos foram respostas culturais às mudanças enfrentadas pela sociedade e afetaram também o universo corporativo e a maneira como serviços e produtos são criados e comercializados.

Em um mundo cada vez mais conectado, principalmente depois dos anos 2000, a partir dos quais houve uma maior distribuição de banda larga, a chegada da internet nos aparelhos de telefone e o acréscimo de funcionalidades que um aparelho de celular pode agregar para além de fazer ligações e enviar mensagem de texto, assistimos a uma democratização de acesso à informação.

O cidadão comum agora tem a sua disposição ferramentas com as quais também pode ser um produtor ativo de conteúdos. Qualquer pessoa com disponibilidade, acesso à internet e a um celular pode fazer um filme, gravar um EP, escrever um e-book, comentar e opinar sobre o cotidiano, e o mais importante, se conectar de maneira rápida com centenas de pessoas em alguns tweets, por exemplo, para tecer impressões sobre um produto ou se reunir em prol de um objetivo em comum.

As pessoas, enquanto usuários e consumidores, passaram a ter mais canais e espaços para expressar e compartilhar seus sentimentos e opiniões com desconhecidos.

“Diários da Pandemia”, projeto realizado pela Preface e bronze na categoria Design da Experiência do Usuário no Brasil Design Award 2020. : https://brasildesignaward.com.br/premiados/diarios-da-pandemia-2/

Também tiveram acesso a outras fontes de informação que não somente aquelas fornecidas em canais institucionais e ou por meio de publicidade, como informações sobre produtos e serviços, e também em relação às políticas ambientais, trabalhistas e éticas das empresas. Como diz aquela máxima, informação é poder. O jogo virou, e as impressões dos clientes em relação à marca tornaram-se essenciais para a reputação e faturamento das empresas.

Surge, assim, a era da Economia da Experiência. Esse termo foi criado por Joseph Pine e ganhou popularidade depois de uma palestra dele para o TEDx chamada “What Consumers Want (“O que os consumidores querem”); com ela, também se popularizaram as consultorias de live marketing, e as áreas de Customer Experience e User Experience.

“Cosmococa 5 Hendrix War” (1973), de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida. Fonte: https://www.inhotim.org.br/blog/mais-tocadas-inhotim/

A grande descoberta nesse momento, então, foi que pouco adiantava investir na mais avançada tecnologia, elaborar um produto super incrementado ou tampouco fazer um alto investimento em campanhas publicitárias se o seu cliente tem que esperar uma eternidade na fila do atendimento humano para resolver algo que ele poderia fazer rapidamente em uma plataforma de autosserviço, ou se o usuário tem que fazer um esforço gigantesco para conseguir encontrar um botão de ação ao usar um aplicativo, e até mesmo se as informações que ele recebe sobre um serviço são confusas, extremamente técnicas e complicadas sem nenhuma necessidade.

Nesse contexto, o papel do design e a forma de pensar do designer são fundamentais, pois temos a missão de apresentar uma visão holística de todos momentos e pontos dessa jornada de interação a partir do lugar do usuário: seus desejos, dificuldades e necessidades, principalmente em jornadas de produtos ou serviços de interfaces digitais.

Assim como na realização da performance, cada interação do usuário é também um evento único, cujo valor é construído no espaço-tempo da duração de interação daquele fluxo.

Portanto, pouco importa se ontem e antes de ontem a experiência tenha sido boa, se a de hoje foi terrível. Certamente será essa última a que o usuário vai guardar na memória, esse será o valor que prevalecerá. É como se você fosse assistir a um show e, no final da terceira música, ele fosse interrompido por falta de energia no gerador. Fica pior se for um show que você esperou por meses para assistir e ainda deu o valor de um rim pelo ingresso.

Agora, imagine se seu carro quebrou em uma rodovia às 3 horas da manhã. A cobertura do seu seguro é ótima, mas e se na hora de interagir com o atendimento digital você tivesse que ouvir 8 opções e mais de 3 menus para chegar à opção “solicitar um guincho agora”? Pois é…

Por um lado, diferentemente dos artistas, temos o compromisso de exercer, através de ferramentas de usabilidade, arquitetura da informação e acessibilidade, o papel de mediadores dessas interações, garantindo nesse processo a ponte mais adequada entre a emissão e a recepção, traduzindo de maneira clara, técnica e objetiva as informações de intenção, cenário e ação.

Por outro, espera-se do profissional de UX design que ele seja maestro no processo de criar produtos que entreguem experiências significativas e relevantes para o usuário. É da alçada do UX design, então, também planejar e o organizar meticulosamente o desenho de “uma instalação”, ou mesmo arranjar os elementos no palco para essa jornada de interação, de forma que, além de atingir o objetivo esperado, também haja espaço para os navegantes desses barcos sentirem-se como cocriadores, mergulhando nos túneis da interface e atribuindo sentido e significado ao longo do percurso.

Sobre esse segundo aspecto, podemos tomar emprestado o saber do universo das artes, e, assim como o artista Hélio Oiticica fez na criação de seus parangolés, desenhar jornadas e interfaces para além de sua finalidade técnica. Na era da realidade aumentada, das Alexas e dos bancos digitais, já não basta ser apenas eficaz, é preciso metaforizar, poetizar. É somente nesse processo de respostas a estímulos e sensações externas acionadas durante o processo de interação que, além do objetivo, a jornada ganha também significado, sentido e, principalmente, valor.

E para nos inspirar e ajudar nessa seara, que ferramenta melhor que a arte, que na filosofia de John Dewey é definida como a indústria extraordinariamente consciente de seu próprio significado?

O Parangolé, de Oiticica, é uma junção de tecidos coloridos que as pessoas vestem e dançam, como se trouxessem movimento às cores. Fonte: https://www.culturagenial.com/helio-oiticica-obras-compreender-trajetoria/

Curtiu o texto? Quer trocar uma ideia sobre design conversacional? É só mandar um e-mail pra redacao.xd@mutant.com.br. Se ficou a fim de trabalhar com a gente, aí é só entrar aqui. E segue também o nosso Medium pra saber quando tem texto novo!

--

--

Joice Portes
Dialograma

Tauriana, cientista social e produtora cultural.Comida, praia, amigos e uns tarô. Feministynha, metida a escrevinhar sobre o que observo e penso do mundo.