Seria o UX Designer brasileiro um profissional “arrogante”?

Fausto Sposito
Dialograma
Published in
10 min readOct 28, 2020
Fonte: Freepik

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Não foram poucas as vezes em que ouvi de altos profissionais em empresas no Brasil: o Designer é intransigente; o Designer acha que sabe mais do que todo mundo; o Designer só olha o lado do usuário. Infelizmente, essa é a fama do UX Designer em algumas corporações brasileiras — principalmente nas que ainda se debatem para alçar essa disciplina ao posto de conhecimento estratégico em suas estruturas.

A ideia está tão arraigada em alguns círculos que confesso: já parei para refletir seriamente se procedia tal reputação. É evidente que existem pessoas convencidas em todas as funções — inclusive na de UX Designer. Mas como generalizar é dos erros mais básicos da metodologia de design, fica a pergunta: qual seria então a razão desta fama degradada? Por que o Designer é considerado um indivíduo arrogante em algumas equipes? Nos últimos dias, pensei um pouco sobre o tema e surgiram hipóteses. Divido aqui algumas de minhas principais suspeitas até o momento.

A Metodologia x O Senso Comum

Embora a vocação seja desejável para trilhar a carreira de UX Designer, o aprendizado é incontornável. Todo o conhecimento desse campo de estudo é fundamentado em conceitos teóricos estabelecidos ao longo dos anos e consolidados em meios próprios de difusão, como livros, teses, cursos, etc.

No entanto, por ser uma ciência centrada no outro (o usuário), o design busca nas pessoas a sua principal fonte de produção de conhecimento. Qualquer pessoa, todos nós. A usabilidade de um objeto ou de um aplicativo trata de questões comuns e muitas vezes inatas a todo ser humano. A língua falada, o texto escrito, a relação com as cores, com os sons, com as texturas, e uma infinidade de outros tópicos constituem a base do conhecimento almejado pelas pesquisas e estudos de UX.

Diferente dos conhecimentos mais técnicos, como códigos de programação e bases de dados, e por se tratarem de temas acessíveis a toda e qualquer pessoa, é esperado que todos se sintam à vontade para opinar sobre o desenho. Afinal, quem não é capaz de criticar um texto? Ou falar sobre sua palavra preferida para agrupar determinados conceitos? Ou ainda, discorrer sobre a cor mais adequada para um botão de navegação?

Contudo, a ciência por trás da “Experiência do Usuário” capacita especialmente o Designer como profissional responsável por equilibrar essa miríade de opiniões e chegar a decisões que contemplem, mesmo que minimamente, as necessidades de todos — levando sempre em conta o já apregoado Tripé de UX (USUÁRIO x NEGÓCIO x TECNOLOGIA).

Apesar disso, no dia a dia, o que vemos é que essa parte central da função do Designer é frequentemente transferida a outras instâncias e profissionais. Como todos são usuários em potencial e consideram sua própria opinião como a mais importante, é natural que aqueles que não dominem a técnica também se sintam habilitados a desenhar. O problema é que acabam por balizar suas decisões apenas em sua única e exclusiva visão de mundo.

O Designer pode até argumentar em defesa dos demais aspectos da metodologia, mas o mais comum é que esses decisores permaneçam com a sensação de que suas soluções são as mais sensatas e equilibradas. Pior: se indignam com a posição “intransigente” do Designer que, em linha com seus preceitos e conhecimentos, segue em busca de algum equilíbrio para a solução final.

Este fenômeno, aliás, não está restrito ao universo do UX Design. Em 2016, o Dicionário de Oxford classificou o termo “Pós-Verdade” como a palavra do ano. Veja a definição adotada pela publicação inglesa:

Post-truth (Pós-verdade): relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.

Persuadir e Ocupar Espaços

Na lista Skills Companies Need Most in 2020 divulgada pelo LinkedIn, o UX Design aparecia como a 5ª especialidade mais buscada pelas empresas na categoria Hard Skills. Essa colocação é tão reveladora da realidade contemporânea quanto as colocações da categoria Soft Skills apresentadas no mesmo estudo: 1ª Criatividade; 2ª Persuasão; 3ª Colaboração; 4ª Adaptabilidade; 5ª Inteligência Emocional.

Entendo que todos os profissionais devam se manter constantemente atentos a todas essas habilidades. Mas se existe uma fragilidade mais comum aos diversos Designers com os quais trabalhei no decorrer dos anos, essa seria a capacidade de persuasão. Convencer pela negociação e pela conversa será sempre muito mais trabalhoso e efetivo do que convencer pela força (hierarquia). É também inevitável.

Fonte: LinkedIn

Com suas esteiras atoladas de projetos, muitos designers acabam abrindo mão de tentar negociar e convencer seus pares pelo conhecimento que possuem. E se colocam numa encruzilhada: aceitar uma solução inferior ou levantar a voz brigando pela solução que acreditam ser a mais adequada.

Aceitar uma solução inferior, na maioria das vezes, significa se resignar e deixar que outros façam seu trabalho. “Brigar” pela solução mais adequada implica outras consequências, como desgaste com o time e posicionamentos arrogantes. Por isso, a importância de buscar outras vias.

Aprender técnicas de persuasão, de negociação, de construção coletiva de soluções. Essas práticas são elementares nas metodologias de UX Design. Acredito genuinamente que esse tipo de habilidade contribui para diminuir consideravelmente essa percepção negativa e até a resistência em relação ao trabalho do Designer.

Do lado das empresas, vale o mesmo. De nada adianta o UX Designer estar pronto para negociar, se os demais integrantes do time querem encerrar rapidamente a discussão.

O temor, quando entra na equação da negociação, acerta em cheio a Experiência do Usuário.

As equipes mais horizontais têm uma enorme tendência a chegar em soluções honestamente equilibradas. Ironicamente e por ser essencialmente uma questão cultural, deve partir de cima, dos altos níveis hierárquicos, essa abertura ao diálogo. Os executivos precisam atuar para fomentar a troca saudável de ideias em suas equipes. O ambiente para negociação deve ser favorável em todos os níveis de uma companhia para que o UX Designer consiga chegar a boas soluções.

Em corporações que dão essa abertura, o Designer não deve se esquivar de ocupar os espaços. Circular pela empresa, agir nos flancos, entender quais problemas são oportunidades para sua atuação. É nítida a valorização dada à Experiência do Usuário em equipes que passam a confiar nos profissionais da área. O profissional de UX, pela natureza de seu trabalho, possui todas as condições para liderar processos de construção de soluções em equipes multidisciplinares — e é importante que ele exerça essa possibilidade e assuma essa posição.

Representatividade em Nível Executivo

Quando penso em um Designer arrogante e intransigente, o primeiro nome que me vem à cabeça é Steve Jobs. Existem diversas ponderações que devem ser feitas em relação a seu comportamento profissional e ao atual fetiche em torno da Apple, mas é impossível contestar a genialidade do trabalho realizado por ele naquela empresa.

Steve Jobs é, sem dúvida, um dos pioneiros da aplicação de metodologias de UX em ambientes digitais. E por ter percebido com certa antecedência o valor dessas técnicas e também por estar inserido em um meio dominado por programadores (tecnologia) e investidores (negócio), ele recorreu à força e não ao conhecimento para provocar algumas revoluções nessa indústria.

Embora sua forma de atuar vá frontalmente de encontro às sugestões do tópico anterior, é importante pontuar os nítidos benefícios que uma corporação obtém quando adota um certo grau de intransigência em relação à Experiência do Usuário.

São diversos os relatos de reuniões em que Jobs travava embates homéricos com os responsáveis pelas vendas e até com os responsáveis pelo desenvolvimento técnico dos produtos, justamente para que atendessem às necessidades do usuário final. Acontece que Jobs, além de fundador, foi por muitos anos o CEO da Apple e, portanto, última instância decisória na empresa.

Forçando a Experiência do Usuário como fator elementar e preponderante no processo criativo da companhia, provocou uma ruptura na forma como nos relacionamos com dispositivos eletrônicos e lançou produtos intensamente desejados. Mais: contribuiu para criar nos consumidores a consciência de que são os produtos que devem se adaptar aos humanos e não os humanos aos produtos.

Hoje em dia, boa parte das empresas mais valiosas do mundo, como Google e Microsoft, seguiram a Apple nesse entendimento de que o usuário deve ser o principal fator na construção de um produto. A tecnologia deve servir o usuário. O negócio deve servir ao usuário*.

Em empresas estrangeiras, inclusive, começa a se tornar comum a figura do CDO (Chief Design Officer) ou do DEO (Design Executive Officer), que contribui para levar a Experiência do Usuário aos níveis decisórios estratégicos e a permear toda a estrutura da companhia com essa disciplina.

Cenário Brasileiro

Mas e no Brasil? Por que estamos tão distantes de ver surgir uma Apple brasileira? É claro que existem inúmeros problemas conjunturais que respondem a essa pergunta. Mas também é inegável que o setor empresarial brasileiro se planeja focado no curto prazo. Até pelas inúmeras crises econômicas de nossa história, os ganhos de longo prazo são, por vezes, considerados arriscados demais.

Assim, a tendência em diversas empresas no país é que as disciplinas que preconizam estudos, pesquisas e desenvolvimento acabem sendo moldadas para atender prazos e resultados de um ambiente imediatista.

O UX Designer, por consequência, passa a atuar cada vez mais como executor e cada vez menos como estrategista. Como essa mentalidade diverge em muito da metodologia difundida em livros e cursos sobre o tema, é compreensível que o Designer se frustre e, em alguns casos, entre em conflitos com as demais especialidades do time.

Por esse mesmo motivo, vemos tão poucos Designers alçados a cargos estratégicos em corporações brasileiras. O resultado é que, ao contrário da Apple de Steve Jobs, predominam no Brasil as empresas geridas por indivíduos oriundos das áreas de negócio e, mais recentemente, por profissionais das áreas técnicas.

Devemos ter esperança para o UX no Brasil?

Sim, existem exceções e oportunidades no Brasil. Muitas delas, em empresas que já nasceram com princípios de UX em seu core (Ex.: NuBank) ou que já possuíam uma cultura interna que facilitou a incorporação e a priorização da Experiência do Usuário em seus modelos de negócio (Ex.: Magazine Luiza). São frequentes os elogios e a admiração externalizados pelos clientes dessas marcas.**

Mas é importante refletir: tendo em vista os inúmeros exemplos estrangeiros de cuidados com o consumidor e, principalmente, os exemplos na lista de companhias mais valiosas do mundo, não estariam essas iniciativas brasileiras apenas cumprindo com o mínimo esperado delas? Empresas que não priorizam a Experiência do Usuário não estariam em dívida com as pessoas que as sustentam?

Acredito que, em nossa realidade atual, este seja um ponto determinante para entender se um Designer está sendo “arrogante” ou se está apenas se esforçando para oferecer a melhor experiência possível aos usuários. Enfim, se está apenas executando a tarefa para a qual foi contratado.

Aqui na Mutant, por exemplo, se investe pesado em apostas que ainda estão longe de dar retorno financeiro — um bom sinal de pensamento de longo prazo. Os princípios de UX Design estão presentes desde a fundação e o usuário é peça central de nossa metodologia — bons exemplos de uma cultura interna favorável ao UX. Ainda assim, o time de Design trabalha diariamente (e muito!) para garantir que a metodologia e os processos sejam sempre respeitados e seguidos em sua plenitude, e que permeiem todas as etapas, da venda à produção e entrega de nossos produtos.

O UX Designer, por essência e formação, deve atuar durante todo o processo como um facilitador, um mediador que considera a posição de todos os envolvidos para chegar à solução mais equilibrada possível. Mas para que isso seja factível, é preciso levar em conta os 4 fatores mencionados no texto e aqui resumidos:

1) Respeitar a especialidade e o conhecimento específico de cada indivíduo em equipes multidisciplinares e em trabalhos verdadeiramente cooperativos;

2) Criar um ambiente tolerante, favorável ao debate de ideias e aberto à negociação;

3) Formar Executivos e C-Levels “Designers”, bancando um certo grau de “intransigência” em nome do usuário;

4) Construir uma visão de longo prazo e uma cultura que possibilite o trabalho de estudo e pesquisa antes das soluções.

Enquanto esses fatores não se tornam realidade, o mais provável é que os altos níveis hierárquicos de algumas empresas brasileiras sigam vendo o profissional de UX como um indivíduo simplesmente “arrogante”e o Brasil, por sua vez, seguirá distante de ver nascer uma empresa tão valiosa e tão adorada por seus clientes quanto a Apple é por seus fiéis usuários e investidores.

*Esse trecho deve ser analisado sob a luz das recentes críticas ao processo de UX Design como as apresentadas no filme The Social Dilemma (Netflix) — mas isso é tema para outro artigo.

**Importante pontuar que a primazia do UX Design muitas vezes não ecoa internamente em outras áreas das corporações. Magazine Luiza e Nubank, recentemente, estiverem envolvidos em discussões acaloradas justamente pelas visões opostas que adotam em seus processos de seleção de pessoas. Existe uma enorme tendência de que os cuidados com o usuário final se estendam também aos colaboradores dessas empresas. O mais provável é que, no futuro, o People Experience seja tão relevante quanto o User Experience para determinar quão admirada é uma empresa e quão valiosa é sua marca.

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Fausto Sposito
Dialograma

Content strategist with extensive background on Multimedia Storytelling, Dialog Design and Conversational Interfaces.