Vila Varjão em 1991. Foto: SEDUH — Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação/DF

Diário de Luiza

uma história de peregrinação, despejos e recomeços

Cláudia Busato
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43 min readJun 10, 2019

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No fundo, apesar de sua variedade, a história de um herói é sempre uma jornada. Um herói sai de seu ambiente seguro para se aventurar em um mundo hostil e estranho. Pode ser uma jornada mesmo, uma viagem a um lugar real: um labirinto, floresta ou caverna, uma cidade estranha ou um país estrangeiro, um local novo que passa a ser a arena de seu conflito com o antagonista, com forças que o desafiam.

Mas existem tantas histórias que levam o herói para uma jornada interior, uma jornada da mente, do coração ou do espírito… C. Vogler (2006)

A história de Luiza Correia da Silva, nascida em 30 de novembro de 1968 em um povoado próximo à cidade de São João da Aliança (GO), é uma jornada e peregrinação para fugir da dor, da fome e de um infortunado destino, reservado àqueles que já nascem marcados pela miserabilidade do mundo. O ângulo de observação desta história, comum a tantas Marias, Luzias, Luizas convida o leitor a acompanhar o percurso da personagem. As regularidades do mito e as infinitas variações de um tema — como a “pobreza” — sob o escrutínio de inúmeras teses sociológicas, não raro ilustram e contextualizam análises estatísticas pontuais em um país de cartografia social tão marcada por desigualdades e necessidades diversas.

A história a seguir é fruto de uma escuta sensível e atenta às idiossincrasias da vida de Luiza , personagem central, sujeito único e singular. Os registros mnêmicos aqui narrados — antes puros fatos sem ordem e hierarquia claros, apagamentos, lapsos de memória, rasuras, borrões— se impõem pela emoção e a urgência de um sentido obtido no tempo, urdido pela palavra e/ou o discurso. Afinal, só se têm conhecimento das escrituras do vivido quando noticiados ou contados por alguém.

As memórias da perfilada deste diário assim como as da escritora negra e favelada Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, que este trabalho buscou compreender, fizeram de si “caderninhos” de uma vida. Vamos abri-los?

PACOTINHO. As tranças pendiam até a cintura. A voz de Luiza ecoava longe: “Um dia vou trabalhar mãe, para poder comprar bastante pacotinhos de arroz”. Os pacotinhos relembrados por Luiza pesavam 1 k e eram embalados em papel de embrulho. Um pacotinho fazia a alegria de muitos. Eram doze irmãos. Nem sempre vinha acompanhado de feijão. A “quirera” era um néctar para essas barrigas vazias. O sonho de cada dia.

LEITO TRISTE. Luiza, “filha de uma lavadeira”, como se auto-intitula quando contava cinco anos de idade viu o pai morto cair da rede em que fora enrolado, após um percurso delirante na charrete que acolheu o moribundo em sua última viagem. A marcha triste cerrado a dentro sob sol o que ardia, implacável, ansiava por auxílio médico. Não deu tempo. A morte chegou primeiro. Só e cega de um olho, a mãe da menina não tinha meios para permanecer no pedaço de chão onde moravam na fazenda dos patrões. Era o esposo quem ali trabalhou por anos e não a infortunada senhora e suas crianças. Luzia ou D. Losa, como era conhecida, decidiu, então, partir com os filhos para São João da Aliança(GO) cidade mais próxima e quiçá um bom lugar para se viver.

Chegaram. O dia ainda era claro.

Comovido com a situação da família retirante, o padre da paróquia local rapidamente mobilizou a comunidade local e juntou donativos de todo tipo (alimentos, cobertores, utensílios), a fim de prover aos desvalidos que o fitavam famintos e sem rumo uma sã acolhida. Foi um aceno de boas-vindas. Sem um teto para morar, ergueram uma barraca no centro da pequena cidade. Improvisado e frágil, o “abrigo” não duraria muitos dias.

Mas a fome torna opacos os semblantes, desorienta. Dali para a frente — sem endereço e sem trabalho — tornaram-se pedintes. Para ficarmos em uma metáfora demográfica em tempos de “milagre brasileiro”, diante de uma sociedade material e economicamente em ascensão, sobre a família numerosa e ressequida pela pobreza pesou estigma inglório de meninos e meninas pelados e de pés no chão.

BARRACO EM CHAMAS. O ruído vem de longe... Passos se transformam em ondas sonoras. Os braços dados formam um laço. Eram 26 braços atados pelo medo. Ali, sob a copa da noite escura, não havia calor. Só o gélido sereno da madrugada. Passaram a noite sob a copa do céu estrelado. Luiza e os irmãos fecharam os olhos e abriram de relance assustados. Na madrugada fria, o espólio material de 13 vidas sob um mesmo “teto” ardeu. Em poucas horas o tudo que tinham virou nada.

É que os homens da cidade — em sua maioria fazendeiros — incomodados com a viúva e a carreira de filhos atearam fogo na barraca. Os poucos pertences que tinham — como as roupas e as panelas de barro — perderam. Tinham que começar tudo outra vez. Do zero. Sem calor humano, sem lastro, sem conforto. Um desterramento que não tinha fim. Cama nunca existiu. Só as poucas cobertas obtidas com as doações que vieram da cidade de Formosa, Goiás, por intermédio do padre da comarca. Gesto piedoso.

A NUDEZ SOCIAL. A nudez social é um ultraje. Os doze filhos seguiram quase invisíveis. Dormiam no chão batido, nunca foram registrados com o sobrenome do pai. Poi não havia recursos para ostentar a posse de uma cidadania plena e de direito. Só mais tarde a mãe os registrou, sem pagar, como “mãe solteira”. A última insigne que lhe restava.

O fato de não ter um sapato nos pés causou em Luiza constrangimento irreparável. Nascia ali um sentimento que ela não conhecia: a vergonha.

Com a modernidade os excluídos não são identificados como diferentes, mas como não integrados ou não aptos ao regime do status quo, à máquina hegemônica legitimadora do capital em sua pior face. Ser um “descamisado” ou suportar o estigma inglório em tão pouca idade não era mesmo uma credencial animadora para começar a vida. Nas cidades pede-se sempre a prova de um estado ou condição, documento, o deciframento 3x4 de um rosto qualquer. Semioticamente, o grau zero de entropia (social) não permite distinções.

A admissão de um indivíduo na cidade exige antes de tudo regulação normativa. O adestramento das relações entre vizinhos e estranhos cujo ápice é a “evitação social”, termo este empregado por autores como Goffman, Plesnner, Simmel e Bauman (1997), dá-se até nas mais minúsculas cidadelas. Essa técnica social moderna dissolve o indivíduo em um composto homogêneo de rostos indiferentes e hostis, onde o estranho é o outro a ser evitado. Quando a terra vira território, o espaço social afetivo é esterilizado e passa ao regime do cognitivo. Este é o lugar do controle. Da administração. Um estranho artifício de socialização. Num espaço assim, demarcado, mapeado e segregador, o forasteiro, o que é de fora, assim como a sujeira e a feiúra, a pobreza, se opõem ao cosmos, à ordem e divisão das coisas. Ao chegarem em São João da Aliança, D. Losa, a pequena Luiza e os doze irmãos semearam sonhos. Colheram fel.

Não foi diferente no ambiente escolar. As coleguinhas da escola não entendiam por que a menina chegava descalça na asseada sala de aula. Não sabiam que para poder estudar Luiza “catava” e vendia esterco, pois com o dinheiro que juntava conseguia comprar os tão desejados “caderninhos” para estudar. Mas a menina de pés no chão abandonou cedo a sala de aula — e os caderninhos de sonhos.

Cartilha Caminho Suave. Fonte: Blog É da sua época

Nessa época a mãe fazia uma longa trança nos cabelos da menina e os amarrava com tirinhas de palha. Assim conferia maior densidade simbólica aos corpos seminus. No sertão não se cortavam os cabelos em meninas. A questão de gênero era bem demarcada nos confins de um Brasil rural e sem recursos, onde as práticas de embelezamento do mundo urbano e industrializado ainda não se faziam presentes.

Luiza relata que, em sua região, as meninas usavam vestidos de cores claras ou de “chita” e tinham os cabelos compridos. Um universo estético prosaico e inocente. Livre dos excessos e de padrões midiáticos ostensivos desses que intoxicam até a infância mais pura.

A NOVA MORADA. O ano era 1975. Quando contava sete anos de idade Luiza saiu do interior goiano para viver em Brasília (DF), a reluzente Capital Federal. Cidade dos sonhos. Promessa de futuro. Mas o começo foi tropeço, foi farpa, foi medo. Renasceria anos mais tarde das cinzas. A mãe entregou a filha a um jovem casal que montava residência na nova Capital. A primeira visão — as luzes da cidade — deslumbrou-a e, ao mesmo tempo, assustou-a. O clarão foi sua primeira ação expectante. Luiza descreve o episódio como se diante de um evento sublime. Um choque.

“A cidade que eu pensei que eu entrava e que eu não conseguiria sair mais, né, porque de noite isso aqui é muito grande. Eu tive um medo de… meu Deus agora eu não vou poder mais ver os meus pais mais, né, porque tanta luz eu só via luz de noite, eu cheguei aqui à noite, né, só tinha luz e eu uma menina que não conhecia energia…”, conta Luiza.

A persistente luminosidade adquiriu uma dimensão pedagógica. Luiza não ficou inerte diante do luminoso espetáculo. Contíguo ao clarão o súbito entendimento do seu reverso, o escuro. O não-saber. O desconhecido. A terra estrangeira. A linguagem oculta. O negrume, então, uniu passado-presente-futuro. Boquiaberta, entreviu que o passado a carregava para trás , como a a ignorância; e que o futuro a cobraria sem trégua a pouca instrução. A baixa escolaridade exigiria resposta. Mas o cosmo social reduzido pela exclusão e o futuro negado realidade da qual — não se desprende facilmente de biografias “sem colchões de algodão” (JESUS, 2014). Ela não poderia cortar os fios atávicos de uma herança maculada por tantas perdas. O berço nativo em tenra idade desfigurado por despejos e separações havia deixado cicatrizes.

Correm paralelas as trajetórias de vida e as transições dos séculos. Na linha do tempo ou no espaço percorrido entre um ponto e outro sublevam-se sentidos que traduzem aos contemporâneos os humores da vida, os ônus e ganhos de toda escolha. E sorte.

A propósito dos vínculos entre passado e contemporaneidade, o filósofo italiano Giorgio Agamben, esclarece: “Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas o que significa ver as trevas, perceber o escuro? O que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz, ou quando fechamos os olhos? O que é o escuro que então vemos? Os neurofisiologistas nos dizem que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina e produzem aquela espécie particular de visão que chamamos escuro… [de modo que] o escuro é um produto da nossa retina. (…)”.

Perceber essa escuridão na claridade, portanto, é agir face ao novo não temendo sua obsolescência e rugosidade pregressas.

A discrepância entre a vida no interior e a vida na cidade grande revela o fosso entre o mundo prático do fazer e da proximidade com os entes da natureza e o saber tecnológico com suas técnicas de representação do mundo. O contato pela primeira vez com a eletricidade, o ferro elétrico, a televisão, o automóvel abriram para Luiza uma realidade de estranhezas e belezas irreversível. Ela lembra: “Outra coisa que eu fiquei abismada é que, na época, tinha um móvel [na sala] e tinha uma televisão em cima; e eu ficava todo o dia esperando aquelas pessoas saírem para comer, né, sair da televisão porque tinha um móvel e eu ficava esperando, porque eu não conhecia a televisão. Eu ficava esperando as pessoas da TV saírem… por que não vinham para dentro da casa comer né… Eu estou falando de não conhecer (…). Eu pensei que eles tinham que comer, né, porque eu não entendia”.

Na reluzente Brasília, a menina deveria trabalhar como doméstica por uma temporada que virariam anos. Ela lembra que pelos serviços prestados, no final de cada mês, receberia alimentos a serem entregues à mãe. O trabalho, sol a sol, tornou-se um símbolo de vida para a solitária garotinha.

Caro leitor, para uma compreensão em perspectiva desta narrativa cabe aqui o emprego do mito…

Hefestos, o deus da forja e habilidoso ferreiro, traduz essa energia transformadora, que permitiu o pacto severo e precoce de uma criança de sete anos com um ideário de adulto: o trabalho. Extraordinária condição que a levou para bem longe do sertão do atraso, do desespero e da morte. J. Chevalier e A. Gheerbrant dão a dimensão desse arco mítico:

Hefestos (Vulcano), filho de Zeus e de Hera, coxo, mal amado pelo pai e pela mãe, desposou a mais bela das deusa, Afrodite, que o traiu com Ares, seu irmão, e com inúmeros outros deuses e mortais. Foi amado por Cáris, a graça por excelência, e por muitas mulheres de grande beleza. Suas companhias sempre primaram por um grande charme. Mestre das artes do fogo, governa o mundo industrioso dos ferreiros, do ourives e dos operários. É visto soprando seu fogo e penando na sua bigorna, em que fabrica as armas dos deuses e dos heróis: escudos resplandescentes, jóias, broches, braceletes, colares para as deusas e as mais belas mortais, fechaduras secretas, trípodes rolantes, autômatos (…). O deus da metalurgia reina sobre os vulcões, que são as suas oficinas, nas quais trabalha com ajudantes, os Ciclopes. (…)

Se pagou o dom da ciência com a sua integridade física, segundo uma lei muitas vezes expressa nos mitos, compensou essa enfermidade com sucessos incomparáveis nas façanhas industriais e amorosas. Cultivou a habilidade em prejuízo da identidade, o saber fazer à custa do saber ser.

Luiza saiu de casa e, novamente, não lhe foi dada a oportunidade de estudar. Para lavar a louça na casa da família onde trabalhava — e que se tornou seu novo lar — a menina tinha que subir em um banquinho. Cozinhava, lavava a louça, esfregava o chão. Às vezes, desabafa, “eu dormia com as mãozinhas ainda ensaboadas”.

A menina de tranças foi para a terra distante, mas os irmãos não. Alguns permaneceram em São João da Aliança com a mãe, outros foram doados. Uma delas, a mais velha, Zilma, foi separada da família muito cedo. A primogênita nunca mais foi vista. “Foi muito dolorida para mim a dor da existência”, lembra a perfilada.

A reparação possível a tantas dores transformou-se em sua obstinação pelo trabalho, do qual Luiza nunca se separou. Se houve algum triunfo nesse chamado à aventura foi a satisfação experimentada pela menina quando pôde, finalmente, levar à mãe os prometidos “pacotinhos de arroz”.

A TRANÇA CORTADA. Um dia na nova morada na região do posto Colorado — uma conhecida localidade de Brasília que à época era um entreposto da produção dos mineradores do entorno — a senhora que a levou encontrou nos cabelos da criança ‘piolhos’. Então, talvez por asco, piedade ou ação profilática não teve dúvida nem dó: cortou à base da nuca a comprida trança de Luiza. Ela chorou. Essa era a única lembrança que tinha dos cuidados da mãe. O último fio que a ligava a suas memórias e foi literalmente ceifado. A doce intimidade que ela, silenciosamente, carregava consigo cessou. Longa como a trança de Luiza era saudade de sua mãe. A trança cortada significou afastar das cercanias de sua alma a força arquetípica da figura materna. Mas a menina cresceu, cortou o cordão umbilical e poucas vezes retornou ao interior e os restos do que ficou.

A cidade grande incorporou-se à vida destituída de Luiza. Fê-la marchar. E seguia para a frente. O corpo asfáltico impregnou-a. Era seu novo habitat. Em uma das poucas visitas que fez à mãe, esta teria lhe aconselhado: “case logo minha filha”. A jovem “ouviu” a mãe. Casou-se aos 15 anos com Mário, açougueiro e comerciante. Com o companheiro de muitas lutas, a moça do interior deu início à fase da superação (ou ressurreição, segundo Vogler). Mas os desafios, as provas, que se apresentaram ao casal não foram poucas.

A escuta antecipada do tema do eu, a “aliança sonosférica” mãe-filho, a melodia cantada (in utero) da história de cada um de nós, esse pacto pré-subjetivo com um futuro previamente encenado tem papel determinante no enredamento das escolhas possíveis e também das emoções.

É singular a ontogênese dos espaços humanos. Peter Sloterdijk nos leva a especular sobre ela: “Na escuta aguçada, o ouvido realiza a primitiva ação do eu: e todos os posteriores ‘eu posso’, ‘eu quero’, ‘eu chego’ ligam-se necessariamente a esse primeiro impulso de vivacidade espontânea. Ao ouvir com atenção, o sujeito em formação abre-se e vai ao encontro de uma determinada atmosfera na qual percebe, com admirável clareza, aquilo que lhe diz respeito” . A voz melíflua de D. Losa foi um estímulo à felicidade. Um encorajamento auspicioso aos ouvidos da menina no início de sua jornada. A saga de Luiza dá provas da enigmática teoria.

NA INVASÃO. Em meados dos anos 1980 muda-se com o marido e a primeira filha e recém-nascida Gisele para uma região de invasões, o Varjão (DF). Foram tempos difíceis, ela conta. O cenário abrigava construções irregulares, conflitos entre os moradores e a administração regional, não contava com a assistência do governo (pavimentação, saneamento) e seus habitantes não tinham residências e direitos reconhecidos. O barraco levantado para abrigar a pequena família foi feito — e refeito — com“ripinhas” de aproximadamente trinta centímetros unidas, uma a uma, com pregos batidos à mão. E foi mais de uma vez ao chão.

Mas os acontecimentos proliferavam. Como já dito por Carolina Maria de Jesus, na obra Quarto de Despejo, “a favela é o quarto das surpresas…”. Nesse labiríntico espaço tudo pode acontecer. Lugar onde os eventos se sucedem sem qualquer mediação e direção. Em uma manhã de frio, Luiza abriu a porta de seu barraco. Ela exclama: “tinha um bebê na porta… tinha um bebê na porta… e eu recolhi ele”. A criança estava abrigada em um “paninho”, à sorte. Pensou em não pegar, os vizinhos falaram “chama a polícia!”. Mas, diante da criança em situação tão vulnerável e só, pensou: ‘Deus quis isso para mim. Vou ficar com ele”. Deu-lhe o nome do esposo, Mário Lins Borges Alves. O Junior, hoje, é um rapaz de vinte anos. Após o ocorrido não demorou muito para Luiza engravidar do segundo filho, o“da barriga”, era o Heric.

A SUPERAÇÃO. Luiza se emociona quando diz: “eu vim do nada, mas tenho tudo. Porque o tudo veio daí. Do nada veio a força para vencer. E ser. Eu tenho duas vidas e uma não renega a outra, porque ambas estão ligadas. Um lado sustenta o outro!”. A ambição e a coragem vieram com o sofrimento. Luiza aprendeu a cozinhar e conta que os patrões, Antonia Márcia (jornalista do Senado) e Ricardo do Monte Rosa (engenheiro civil) com quem até hoje convive e trabalha, incentivaram a zelosa doméstica e babá de suas duas filhas a fazer um curso de culinária no Senac-DF. Com os patrões aprendeu a preparar jantares finos. Ela domina o jogo das pratarias e dos cristais, as mesas bem compostas. “Eu tinha que aprender a combinar as coisas. As combinações. Carnes, vinhos. O arroz acompanha o quê… a feijoada e o churrasco”. Nesse ambiente foi observando revistas de gastronomia e de decoração, desenvolveu o paladar e o apuro estético das pessoas esclarecidas da cidade. Ela aprendeu rápido. Noções de etiqueta passaram a fazer parte do habitus citadino assimilado com determinação por Luiza, que demonstra orgulhar-se disso.

Ela tem um hobby. Adora arrumar a própria casa com objetos de adorno, — louças estilo inglês, tapeçarias, quadros, a mesinha de centro com uma bomboniere de vidro, jardim de inverno com a coleção de orquídeas. Frequenta um brechó chique no Lago Norte e se orgulha comprar algumas “pecinhas de arte” por lá de vez em quando. Foi Antonia Márcia quem incentivou a emigrada a tirar a carteira de motorista. Ajudou-a financeiramente até conseguir pagar com as economias o primeiro carro: um “gol quadrado”, reforçou. O incentivo dos patrões foi o passaporte para o salto qualitativo na vida de Luiza. Uma condição de vida melhor, capacitação profissional, ensinamentos, viagens. Até o mar ela viu. Se encantou com a “praia do francês”, em Alagoas. Reconhecimento por méritos. Ela retribui com dedicação e lealdade. E sabe o sentido exato da palavra deferência quando se refere ao casal benevolente. Um reconhecimento sem concessões egóicas, sem subterfúgios. Dona Antonia e seu Ricardo, como gosta de apresenta-los, ensinaram a Luiza o significado de dignidade.

Ela hoje vive hoje no bairro Itapoã (DF) e possui casa própria.

O MUNDO DOS JORNALISTAS. Se o arquétipo da guerreira (o Herói-Guerreiro, segundo Campbell) foi o impulso arcaico que inflou seu pensamento para longe da poeira sertaneja, das cinzas e borrões de um passado distante, o arquétipo alvissareiro, Arauto, que representa o auxílio no meio da travessia de um estranho ou amigo ajudou a embalar e colorir os devaneios da Luiza adulta e estabelecida na Capital, motivando e chamando o “herói” para a mudança.

Foram as jornalistas-patroas — arquétipo do Arauto — pessoas com quem ela passou a conviver, prestando serviços como faxineira, passadeira, cozinheira e babá, o suporte material e psicológico para a transformação da personagem. “Os jornalistas são pessoas que sabe escutar!” Luiza ergue a voz para contar: “eu trabalhei com a D. Zelinda, que era a chefe da Rede Globo, Isabel Raupp, que fazia o DF TV aqui em Brasília, a Cristina e aí depois eu cheguei a trabalhar com a Juliana Morrone”. E, continua, “tinha também uma senhora da Rede Globo a D. Inácia”. Estas mulheres ensinaram e indicaram à doméstica os caminhos para uma nova vida. Urbana. Tecnológica, até.

O processo civilizatório chegou até Luiza. Hoje ela faz compras no San’s Club de Brasília para suprir o Apart Hotel onde trabalha. Desloca-se com segurança pelas vias expressas da cidade. Mas, humilde nas pretensões e nos objetivos, ela sussurra quase em prece: “quanto mais eu aumento no financeiro, mais eu peço a Deus que me diminua… que eu não queira ser aquilo que eu não posso”. Ela se orgulha de ter trabalhado com pessoas importantes e influentes: “onde os ricos passou eu também passei. Com o meu coração e a minha humildade”.

O MELHOR LUGAR DO MUNDO É AQUI E AGORA. O sonhado futuro — a casa própria, a segurança, a esperança — está estampado no rosto de Luiza. Periodicamente ela visita São João da Aliança (GO), revê os irmãos, leva donativos aos que precisam mais. É a mãe de todos. Hoje é ela quem leva um “caminhão” de brinquedos, roupas e alimentos para doações no entorno da Capital. Tudo o que ela ganha a a mais leva para os que nada têm.

As etapas da heroína

Hoje “eu sou a Luiza guerreira e vitoriosa”. A expressão é a manifestação atual do mito de Hefestos. Armada da própria narrativa, Luiza suplanta o silêncio de seu passado triste. Mas não sem que lágrimas precipitem no rosto em mutação. Mas é justamente dando às emoções nomes e visibilidade que se constitui o imaginário singular desta jornada.

Gilbert Durand, pesquisador da Universidade de Grenoble (Fr), identifica dois regimes simbólicos na humanidade: o diurno e o noturno. O imaginário diurno distingue, binariamente, o bem e o mal, a subida e a descida, o claro e o escuro. Produz símbolos ascensionais (cetro, flecha, asa, anjo), espetaculares (luz, sol, ouro, o olhar, fogo, céu) e diairéticos (herói, espada). Segundo esta interpretação, a partir de uma atitude conflitual e antitética, as estruturas heróicas buscam vencer a morte e o devir. A história de Luiza aqui narrada apresenta esta urgência de transformação e superação do deus grego industrioso, Hefestos.

Altiva. Robusta. E falante. Essa é a imagem que se apresenta decorridos dias e semanas de relatos gravados e transubstanciados na duração da palavra escrita. Mas, no íntimo, Luiza pende entre dois mundos. “Tenho duas vidas e uma não renega a outra, porque as duas sustentam uma à outra”, diz pensativa.

Aos cinquenta e um anos de idade Luiza segue colando os pedaços de suas muitas existências. Como o obreiro mítico olimpiano, faz da própria vida uma obra. Foi a biografada a primeira a reconhecer-se digna de uma história contada. Um feliz recomeço.

QUARTO DE DESPEJO

Carolina Maria de Jesus, 1958, favela do Canindé. Fonte: Audalio Dantas/Folha de S. Paulo

Costurando pensamentos…

Duas mulheres. Duas histórias. Luiza e Carolina. Uma terceira voz ecoa entre sons e letras, memórias e apagamentos, chegadas e partidas, despejos e recomeços. Faço uma pausa… há uma quarta voz. Pensava acomodar-me no distanciamento resfriado do rigor científico, no aquilatado universo dos conceitos, mas não pude recusar-me ao chamado das ‘sereias’.

O canto das sereias não é somente um canto de sedução, explica o filósofo alemão, Peter Sloterdijk: “Que espécie de música é essa, que melodia, que ritmo, o que concede às sereias tanto poder sobre o ouvido dos mortais? (2016, p. 439)”. A “aliança sonosférica” entre o eu e o outro, o encantamento acústico [mãe-filho, que aconteceria antes mesmo do nascimento torna os indivíduos invisivelmente completados. Ou seja: todos já nascem orientados ou desorientados. Como uma escuta singular e definitiva, este evento pré-subjetivo abre para o sujeito a possibilidade do estabelecimento futuro dos vínculos afetivos, de dinâmicas inter-subjetivas e amorosas, as mais felizes e/ou as mais complexas e conflituosas.

Dito isso, o autor da trilogia Esferas 1— Bolhas (2016), completa: só nos alcançam as mensagens que queremos ouvir. Aquelas que têm uma ressonância familiar dentro de nós e que por isso são irrecusáveis.

E continua, “o que permanece misterioso é o fato de que elas [as sereias e o irresistível canto] não o conseguem apenas de vez em quando, no caso de um ou outro passante isolado, mas em relação a muitas vítimas diferentes, como se, para as sereias, a capacidade de infiltrar-se no ouvido dos homens que sonham consigo mesmos não fosse uma intuição que conduzisse acidentalmente a seu objetivo, mas uma técnica psicológica dominada com virtuosismo (Ibid., p. 443)”.

E que técnica exímia, arrebatadora, é essa? O canto dessas mulheres aladas ou com cauda de peixe canta o que o ouvido quer ouvir. Esta é a técnica salvífica ou mortal. É o próprio tom ou o som original do eu que arrasta o sujeito para o seu centro. Essa imagem sonora, diz Sloterdijk (2016, p. 449) “rompe com o tempo ordinário”. As sereias são “vozes melífluas” que regem o concerto interior do sujeito, buscando nessa ordem sutil um equilíbrio entre a paciência e a excitação. Entre o terror e a felicidade.

Eu (Cláudia)- Em que som estou? Nesse encontro textual de vozes e escrituras sou a escuta atenta. Ouço o canto das sereias-escritoras — com ou sem caneta e papel. Meus próprios passos me inseriram nessa escrita epifânica onde cheguei agora, pois herdei o gosto pela leitura através do som. Dialetos italianos soaram na infância como também vibraram longas e exatas as cordas do violão Di Giorgio, o preferido de meu avô materno.

Do lado italiano da família contam que à minha bisavó deram o nome Marina e que tinha lindo olhos azuis, pois nasceu em alto mar na travessia da Itália para o Brasil. O nome de minha avó, na mesma linhagem, não soou menos poético. Chamaram-lhe Aurora.

Relatam, ainda, que nos rincões inóspitos e inabitados do Rio Grande do Sul fim-de-século, Aurora e as irmãs não teciam. Não bordavam. Liam livros umas para as outras enquanto lenhavam. Carpiam. Plantavam.

Como terceira voz, escuta ou mediação de um diálogo entre tempos e paisagens topofílicas tensiono perfazer, aqui, um traçado ou cartografia afetiva que ligue de algum modo estas existências — Luiza, Carolina, Cláudia. Trata-se de escutas paralelas. Ora por meio da literatura, ora por meio de depoimentos. Ora pelo corpo marcado pela escrita (o de Carolina), ora como emoções misturadas ao pó e ao vento (o de Luiza).

Será pela poesia o caminho para um instante perpétuo? Uma afinação feliz? A história humana luta pela escuta humana, lembra Sloterdijk (2016). Quem é digno de ser ouvido? A quem o Olimpo reserva uma escuta privilegiada? Quem pode dar ao pensamento asas? E quem teria a prerrogativa de ser biografado?

Se me foi dado o dom de “pairar em dupla” com o outro — com Luizas, Carolinas - há que deslindar as linhas tortas, restaurar a dor das feridas, dar forma ao esquecimento, abraçando destinos estranhos e tornando-os próximos. Uma fraterna semiose a reunir e tentar a sutura desses esparsos ‘pedaços de mim’. Esquecimentos do outro. Destroços, ossos, átomos, tudo, todos os elementos de mundo podem virar palavra. O que RE-UNE é a palavra.

CLIQUE AQUI PARA ACESSAR O VÍDEO: https://www.youtube.com/watch?v=hfaxifSCVcc

Carolina Maria de Jesus catava ferros, metais, papéis e os vendia em troca de alimentos nas cercanias da extinta favela do Canindé, à beira do rio Tietê, na portentosa e fria capital paulistana nos idos dos anos 1950/60. Alma sensível. Alma dura. Paradoxalmente, o lixo, do que Carolina e os três filhos sobreviveram por anos, reciclava os pensamentos, as intuições poéticas, a visão política lúcida e crítica, as ironias inesperadas, a sagacidade, a reflexão, a moral extemporânea da escritora de envergadura internacional.

Não há texto que suplante tamanha tensão criadora — “potência”, como diz Raffaella Fernandez, pós-doutoranda no Programa Avançado de Cultura Contemporânea e do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ e atual responsável pelo legado literário da autora — capaz de gerar no mais adverso ambiente, como na favela paulistana descrita pela escritora-catadora, entendimentos mais sóbrios do que sombrios sobre a beleza e o onírico em tempos de escritas rasas e rápidas. No diário de Carolina os males e desentendimentos, os conflitos humanos, a fealdade, podem ser lidos e interpretados na ordem reversa. Acompanhe outras revelações sobre a autora de Quarto de Despejo em entrevista de Raffaella Fernandez ao suplemento cultural Pernambuco .

Carolina vive em dois mundos. O mundo das coisas, dos restos, dos dejetos, da degradação, da carência, do esquecimento (lethé); e o mundo das letras, do jogo dos sentidos, do espaço aberto pela palavra, da beleza, da memória (alethéia). A escuta afinada do mundo fez dela uma escritora poeta e não apenas mais uma catadora disputando com outros infortunados o lixo da cidade.

Dialogismos sobre restos, afetos e palavras

Carolina- Na favela “tem nobresa na pobresa”. A “favela é o colchão de algodão dos ricos”.

Cláudia- O despejo de Carolina é o despejo da cidade. A violência social. O abandono pelo poder público. O luxo e o lixo da cidade indistintos. A favela dissuade, “amortece”, a hipocrisia social, a ausência do Estado e os baixos instintos do ser humano.

Luiza- Quando a família saiu da roça e foi para São João da Aliança (GO) “o padre da Igreja doou um plástico, uma lona, para a minha mãe… eu estava como se diz né ‘na lona’… esperança de que no meio de uma cidade e só pedindo as coisas né… eu não conhecia casa de plástico. “Colocaram fogo naquela barraca com todas as coisas que tinha dentro”. “A minha casa na roça era de palha. Para mim todas as casas eram assim de palha”.

Cláudia- Lares destituídos. Despossuídos. Despejos.

1955, 16 de julho

Carolina- “Cheguei em casa, fiz o almoço para os dois meninos. Arroz, feijão e carne. E vou sair para catar papel. Deixei as crianças. Recomendei-lhes para brincar no quintal e não sair na rua, porque os péssimos vizinhos que eu tenho não dão socego aos meus filhos”.

“Quando eu chegar na favela vou encontrar novidades. Talvez a D. Rosa ou a indolente Maria dos Anjos brigaram com meus filhos”.

Cláudia- Os maus vizinhos não dão trégua. Bisbilhotam, fustigam, acusam, agridem-se uns aos outros. A vida na favela é o inferno na terra.

Carolina se queixa da quebra da harmonia. E diz: “tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer saber! A linguagem delas é como os pés de galinha. Tudo espalha”.

Contraponto: “O nervoso interior que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquece-me. Li um conto”.

Luiza- “Eu não conheço meus vizinhos. É da porta de casa para dentro”.

“Em Itapoã (DF) existe a rua da Morte. E tem a rua da Paz”.

Cláudia- O abrupto, a bílis da favela, deforma. Ofende e fere. Na paisagem das metrópoles a imagem da favela é o punctum — as imagens fétidas, a aspereza social, o grotesco, a feiúra. Pois o obtuso, o anguloso, expõe as vísceras da miséria. Por consequência, “toda aspereza, toda saliência brusca e todo ângulo agudo contradizem em sumo grau a ideia de beleza” (HAN, 2016, p. 29). Mas, o que é a beleza?

1955, 19 de julho

Carolina- “Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência”.

Cláudia- Carolina tem clara consciência da ignorância ao seu redor. Ofensas, desrespeito, invasão de privacidade, crendices, ignorância, preconceito. Mas ela sabia que não adiantava reagir. Tão tépida como a noite é a estagnação moral e social. A desigualdade só produz exploração e medo. Inclusive no microcosmo da favela. Apesar do barulho da favela Carolina cuida dos filhos, cata entulhos em troca por alimentos. Pacientemente, carrega na cintura uma das crianças e o saco de latas na cabeça.

Luiza- a menina caminhava léguas até o rio para pegar água. Carregava a lata na cabeça e um dos irmãos “acachado ao lado”, conta.

1955, 21 de julho

— Dá para a sua mãe.

Carolina- “Duas meninas lhe chamava papai! Eu conheço-o de vista. Já falei com ele na farmácia quando levei a Vera para tomar injeção contra resfriado. Ele seguio. Eu olhei o dinheiro que ele deu a Vera. Cem cruzeiros! Em poucos minutos o boato circulou… E pensei ma eficiência da língua humana para transmitir uma notícia”.

“Liguei o rádio (…). Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Manuseio um livro”. “O livro é a maior invenção do homem”.

“Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto de ficar sozinha.
E lendo”.

Cláudia- A escritora parece dominar várias linguagens, a popular, a da cultura de massa e a linguagem culta. Ela ouve radionovela, lê jornais, revistas, livros. Carolina mostra a força do boato na favela. A língua afiada corta fundo como faca amolada. O boca a boca é um dos meios de comunicação mais antigos e se reinventa hoje, em rede, com as fakenews.

Peripatética Carolina…

Cláudia- Talvez Carolina andasse pelas ruas para não se ocupar do lixo das esquinas, em meio aos falatórios, ocupações mesquinhas e descuidos inaceitáveis com a língua.

Luiza- “Adoro os jornalistas. O jornalista sabe escutar o outro”. Em Brasília as minhas patroas me davam revistas. Eu gostava daquelas histórias de amor que tinha nas revistas. Com fotos e contando uma história [são as fotonovelas]”.

1958,13 de maio

Carolina- “E assim no dia 13 de maio eu lutava contra a escravatura atual — a fome!”

Cláudia- A cozinha de Carolina: ossos, meia cabeça de porco, pão.

Luiza- “A minha passava a gordura da galinha nos nossos cabelos… ela fabricava o produto”

Cláudia- O cosmético de D. Losa: gordura de galinha sem sal para cabelos.

1958,15 de maio

Carolina- “A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido (…)”.

Cláudia- No diário de Carolina é frequente a fricção entre mundo e poesia. Fabulando com os elementos da natureza, com os dejetos e pedaços de que materiais diversos, ou seja, entre os entes em geral, Carolina revela o erotomagnetismo entre as coisas. A propósito do trecho acima, quando a autora sonha com um vestido estrelado, se o semiólogo francês Roland Barthes tivesse tido contato com ele reconheceria o que chamou de “vestuário escrito” na obra Sistema da Moda . “Se a revista nos diz que os estampados têm triunfado nas corridas de cavalos, podemos, pessoalmente, tentar artificialmente a comutação (…) e verificar, por exemplo, que a passagem dos estampados para os tecidos lisos provoca uma passagem das corridas para os garden-parties (uma festa em um lugar aberto), em resumo, uma variação do vestuário faz-se fatalmente acompanhar de uma variação do mundo e vice-versa” (BARTHES, 1999, P. 34). Mas o “vestuário real” e Carolina é descrito por ela como sujo e cheirando mal.

Luiza- “O figurino da menina Luiza é os pezinhos no chão né e o vestidinho de chita (…) e umas roupinhas de algodões que a minha avó tecia no tear e depois costurava à mão”. E “sapatos não tinha né… raramente tinha um chinelo né”. Mas “quando muito pequenos era sem roupa mesmo”.

Cláudia- A compreensão estética de Luiza acompanha o devir da vida. Poucas vezes abre-se espaço para a poesia em uma rotina de rudezas. O filósofo sul coreano Byung-Chul em A Salvação do Belo comenta que se Burke “eleva o liso a traço essencial do belo” (2016, p. 29). Quis dizer com isso que o áspero, o rugoso, o rude, enfeia a beleza nas coisas. No vestuário de Luiza não aparece o feio, mas a pobreza de detalhes, a simplicidade do algodão e da chita, a palha de milho para amarrar os cabelos. Chega-se quase a um grau zero de ornamentos. Tão minimalista e entrópico como a nudez.

1958, 16 de maio

Carolina- “Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer.

… Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? Um leito em Campos do Jordão[estância procurada por tuberculosos na época]. E quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.

Luiza- “Às vezes quando a minha mãe trabalhava em alguma casa ela voltava e preparava uma comida, colocava em um prato só para todos [os filhos] e saía de perto. Não sobrava para ela…”.

Cláudia- A fome realmente escraviza. É uma experiência inapelável. Na melhor das hipóteses, o riso a suplanta ou suspende sem se ter qualquer certeza de que ela não vai voltar.

1958, 18 de maio

Escatologias e bestiários…

Cláudia- Uma variedade de animais comparece na escrita febril de Carolina. Estão ali não apenas por requinte de estilo — Umberto Eco (2007), na obra História da Feiúra, fala das feras desmesuradas da estética hispérica — , mas como veículo moral de um universo de comportamentos desregrados e declinantes em comunidades miseráveis. São alegorias quase escatológicas.

Gilbert Durand (1997) reflete sobre o simbolismo animal em As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Para o autor, bestiários conotam valorizações tanto negativas, como é o caso dos répteis, ratos e pássaros noturnos; quanto positivas, como ocorre com a pomba, o cordeiro e animais domésticos em geral. Assim, assimilam-se aos sentimentos humanos a animação da disposição animal. Uma dessas primitivas manifestações é o formigamento o fervilhar, a agitação desordenada. Formigas, gafanhotos, larvas, girinos agitam-se. É a multiplicidade que agita-se. Assim também são os dias na favela, conta Carolina.

Carolina- “… Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganância e ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados”.

1958, 19 de maio

Carolina- “Deixo o leito às cinco horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. (…) O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer”.

“O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome”.

“Os favelados comem quando arranjam o que comer. Todas as famílias que residem na favela tem filhos. Aqui residia uma espanhola Dona Maria Puerta. Ela comprou um terreno e começou a economisar para fazer a casa. Quando terminou a construção da casa os filhos estavam fracos do pulmão. E são oito crianças”.

… “Havia pessoas que nos visitava e dizia:

—Credo, para viver em um lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo”.

Cláudia- Anoitece e o pensamento de Carolina salta dos subterrâneos para os espetáculos noturnos. É irresistível. Como não compor com ela novas metáforas e alegorias? Pode-se dizer que a favela é caleidoscópica com seus excessos de miudezas. Suas multiplicidades. E sons ruidosos. No jogo vertiginoso de peças que não se encaixam; e a São Paulo que nunca descansa um carrocel. Roger Callois na definição de jogo fala dos jogos de vertigem (Ilinx), além dos jogos de azar (Alea), de competição (Agon) e de imitação (Mimicry). O Ilinx está representado em brincadeiras como o peão, o rodar das crianças até tontear, o carrocel, o toboggan, os bailes de máscaras, as acrobacias, alcoolismo, drogas, entre outros. A busca da vertigem “consiste numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à consciência lúcida um voluptuoso pânico” (1990, p. 43).

Carolina- “Eu dirigi para a rua Asdrúbal Nascimento. Eu não sei andar à noite. A fusão das luzes desviam-me do roteiro. Preciso ir perguntando. Eu gosto da noite só para contemplar as estrelas sintilantes, ler e escrever. Durante a noite há mais silêncio”.

“… As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.

1958, 20 de maio

Cláudia- Na favela Carolina economiza nos sorrisos; Luiza fecha o cenho.

Carolina- “… Eu não preocupo-me com os homens delas [refere-se às mulheres da favela]. Se fazem bailes eu não compareço porque não gosto de dançar. Só interfiro-me nas brigas onde prevejo um crime. Não sei a origem desta antipatia por mim. Com os homens e as mulheres eu tenho um olhar duro e frio. O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças”.

Luiza- “Em Itapoã (DF) existe a rua da morte e a rua da paz. Eu não me relaciono com vizinhos. Eles passam aqui na minha porta e me cumprimentam. Eu sempre devolvo um sorriso, mas distante. Eles me respeitam… (…) Essa aí da casa da frente tem um filho que é presidiário. (…) Os meus eu prendo em casa”.

1958, 21 de maio

Cláudia- A favela é um celeiro de notícias…

Carolina- “Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer… Havia um pretinho bonitinho. Ela ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem deve catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom Jardim. No lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me:

— Leva, Carolina. Dá para comer.

Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros roídos pelos ratos. E disse-me que não. Que há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz tão fertil igual ao meu. Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da existencia infausta dos marginais.

No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguem procurou saber seu nome. Marginal não tem nome”.

1958, 27 de maio

Cláudia- Cardápio do dia: restos de comida e ossos. A fome tonteia. É Ilinx...

Carolina- “A tontura da fome é pior do que a do alcool. (…) Mas a comida no estômago é como combustível nas máquinas”.

“E eu que antes via o céu, as árvores, as aves tudo amarelo”.

Cláudia- Carolina percebe que a comida aviva os sentidos.

1958, 28 de maio

Cláudia- A favela é a novela da cidade grande…

Carolina- “Tem barracões de meretrizes que praticam suas cenas amorosas na presença das crianças”.

1958, 30 de maio

Cláudia- Já foi dito que a favela do Canindé ficou conhecida como a “Veneza paulistana”, pois enchia de água e alguns barracos boiavam quando o rio Tietê transbordava.

Carolina- “Chegaram novas pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar tão sem atração. Um lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho”.

1958, 1 de junho

Para todos os humanos viventes o anjo não procura: ele encontra.

Cláudia- Enaltecimento às mães. Luiza e Carolina reconhecem nas respectivas genitoras a “função de membrana”. Sobre anjos, gêmeos e duplos Peter Sloterdijk (2016) comenta: “O quinto elemento estrutural do microcosmo são as funções de membrana que desde o início fazem parte do acompanhante. Enquanto complemento originário, este elemento é responsável tanto pela formação e abertura do espaço [vital], como por sua conservação e seu fechamento. Nessa medida, ‘ventura e infelicidade do sujeito’ dependem inteiramente da qualidade da membrana psíquica que ao mesmo tempo faculta e lhe veda o acesso ao mundo. O gêmeo é como uma eclusa através da qual se realiza o metabolismo entre o sujeito e o mundo. O grau de sua abertura determina a seca ou a inundação. Se a membrana do acompanhante não é porosa o bastante para deixar passar volumes crescentes de mundo, ela pode se tornar uma prisão para o sujeito, separando-o do chamado mundo exterior ou, melhor dizendo, das esferas extrassimbióticas. Se o acompanhante, ao contrário, é perdido muito cedo em consequência de um incidente traumático, se permanece por muito tempo indiferente ou ausente, o sujeito sofre um choque de abertura e tomba “para fora” no êxtase maligno da angústia de aniquilação, dando-se conta de um exterior exosférico no qual ele próprio não se suporta” (2016, p. 399/400).

Carolina- “Minha mãe era muito boa. Queria que eu estudasse”.

Cláudia- Em entrevista a filha de Carolina, Vera, conta que em dias de chuva e alagamento a mãe carregava nas costas os dois meninos e os levava para a escola nadando. A preocupação de Carolina com os filhos, a consciência da escolha uterina pelos rebentos é um murmúrio permanente e gentil a soprar nos ouvidos das crianças.

Luiza- A mãe de Luiza não pôde colocar os filhos no ensino formal. Com cinco anos de idade a menininha de trança nos cabelos catava esterco e vendia para uma senhora muito boa, dona de uma horta que dava gosto de ver. O dinheiro deste primeiro trabalho a mãe empregava com rigor. Comprava alimentos e, caso sobrasse, para os ‘caderninhos’ da escola. Para compensar a tristeza da mãe por não poder mantê-los nos bancos escolares, Luiza fingia ler as “figuras” da cartilha; pensava consigo que lia a história e que compreendia. Ela inventava enredos incríveis para a mãe, que ria junto com ela. Acreditava propiciar àquela tão sábia e maternal figura um momento de felicidade.

1958, 7 de junho

Carolina- “Tem pessoas que aos sábados vão dançar . Eu não danço. Acho bobagem ficar rodando pra aqui, pra ali. Eu já rodo tanto para arranjar dinheiro para comer”.

Cláudia- É possível perceber na problematização de Carolina um traço(psicológico) estóico. Para a catadora o recolhimento da escrita é seu único prazer. Nesta atitude severa o riso e a brincadeira se subscrevem ao exercício da razão. Mas pensadores contemporâneos como Bauman, Cyrulnik, Callois, Huizinga, Wittegenstein, ente outros, localizam o jogar em outra categoria. Brincar, rodar, dançar não são ações produtivas, objetivas ou úteis; são ações inúteis — são, como disse o poeta curitibano Paulo Leminsky, os “inutensílios” da cultura. Para Bauman, “do ponto de vista de todos os passatempos solenes, ‘sérios’, não de brincadeira, com que a vida que visa a sobrevivência se acha pontuada, o jogo é gratuito. Não serve a nenhum propósito sensato” (1997, p. 194).

Quando Carolina diz, “eu não danço”, fica evidente o esvaziamento do símbolo. Ela não pôde ao longo de uma vida em desassossego, no alvoroço da favela e na luta diária por um prato de comida nutrir os afetos e, com isso, representar a dor. Nem todo trauma pode ser representado. Carolina não pôde se tornar resiliente. O círculo “fora” não se abriu. Não se formou em tono dela uma roda humana. Humanizadora.

A propósito do conceito de resiliência, em O Murmúrio dos Fantasmas o autor, médico e etólogo Boris Cyrulnik analisa dezenas de relatos sobre situações resilientes e não resilientes. Há um, exemplar, que fala da importância das marcas biológicas ou pré-linguísticas na estruturação das emoções do indivíduo. O médico explica que um déficit emocional, uma determinada sensibilidade ou machucado na alma pode ser o gatilho para sucessivas metamorfoses e superações. Mas adverte que sem um contexto cultural favorável, que oportunize a representação da dor, não é possível estabilizar a primeira privação afetiva. A função dos símbolos da cultura é operar essa substituição de sinais.

Para apresentar o efeito resiliente de uma brincadeira de roda, Cyrulnik (2005) conta uma história: Bruno foi abandonado em um orfanato pela mãe solteira no Canadá. Tinha um comportamento, um estereotipado ritual, de “agitar” as mãos e girá-las no ar. Após anos de solidão e a privação sensorial que o tornaram frio para a sociabilidade e as rotinas amorosas, uma oportunidade única abriu-se à sua frente. Uma freira bondosa(que podemos chamar aqui de tutora de resiliência) reuniu as crianças em círculo e, a cada momento, uma menina ou menino tinha que escolher alguém para dançar. A surpresa é que Bruno foi logo chamado por uma menina em meio a outras crianças. “Ele parecia anestesiado pela escolha inacreditável” (2005, p. 14). Como um símbolo vivo, uma brincadeira pode ser reparadora. Quando a menina disse ‘Eu prefiro o Bruno’… “ele não escutou mais nada do resto da canção, pois seu mundo acabava de ser iluminado por uma grande luz, uma alegria imensa, uma dilatação que lhe dava uma sensação espantosa de leveza. Girou como um louco com a menina e depois, esquecendo-se de reintegrar-se à roda, correu para se esconder sob sua cama, incrivelmente feliz. Então, alguém podia amá-lo!”(2005, p. 14).

Representar a dor é uma ação resiliente. E a qualidade das representações depende dos vínculos, negativos ou positivos. Os espaços sociais estéticos, segundo Bauman (1997), podem prover a psique individual e os ambientes desses símbolos ou imagens restauradoras, por exemplo, através dos jogos e brincadeiras. Mas, “com estranhos só se pode ter divertimento se já se assegurou sua estranheza”, explica o sociólogo polonês (1997, p.193). Ou seja, é somente quando o espaço social cognitivo da cidade oferece essa segurança, quando se torna espaço administrado, normatizado e policiado “é que pode-se deslanchar o gozo estético” (Id.).

Luiza- “Eu corri… eu corri muito… corri léguas atrás daquele ônibus com aquelas coisas lindas… e uma mulher lá dentro que foi tocada me jogo um saco…um saco que tinha mesinha, cadeirinhas… eu nunca tinha tido uma boneca”. Luiza é resiliente. Soube receber as “dádivas”. Ela correu atrás de seu futuro. Ergueu aos mãos para receber do alto… de ônibus e de Kombis… os brinquedos, roupas e objetos para a casa que lhes faltou no começo da vida.

1958, 11 de junho

Cláudia- Talvez a poesia salve Carolina. A resiliência se oferece como um sopro nos seus ouvidos. Um cálido murmúrio.

Carolina- “Eu deixei o leito às três da manhã porque quando a gente perde o sono começa a pensar nas miserias que nos rodeia. (…) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando e que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela”.

“Será que não posso ter felicidade na favela?…”

Anos depois ela responde a indagação em Onde estais felicidade?

1958, 15 de junho

Cláudia- A favela expõe as próprias vísceras.

Carolina- “… aqui na favela tem um quadro de foot-bol- O Rubro Negro. As camisas são pretas e vermelhas. O fundador é o Almir Castilho. O quadro não é conhecido pelo público, mas já é conhecido pela policia. A dois anos atrás o quadro foi jogar na Penha e brigaram com o quadro adversario e a briga transformou-se em conflito. Com a intervenção da policia os briguentos renderam-se. E havia um morto e varios feridos. Não houve prisões. Mas abriram inquerito. Cada um teve que pagar dois mil cruzeiros ao advogado”.

Cláudia- Nem a brincadeira persevera nas comunidades marginais. A quadra animada pelo jogo de futebol transformou-se em ringue. A análise surpreende. A visão dos fatos da catadora é complexa e faz o leitor depreender que lá, onde animais e homens se confundem, é reduzido o nível de civilidade.

1958, 22 de junho

A festa dos miseráveis…

Carolina- “Deixei o leito às cinco horas, preparando as crianças para ir na festa da rua Javaés (…) Dei comida para a Vera. O João não quis a minha comida. Disse:

— Eu vou comer lá na festa. A comida de lá deve ser melhor do que a da senhora.

Ele não gosta e festa. Mas se ele sabe que vai ter comida é o primeiro a insistir e faz questão de levar a sacola. (…) Passei na D. Julita para dizer-lhe que nós íamos numa festa. Pensei: deve ser banquete porque São Luiz Rei de França quando convidava o povo para comer preparava um banquete. Tomei o bonde. O dinheiro não dava. cheguei lá as 2 horas. A fila estava enorme. Podia ter umas 3 mil pessoas. Quando eles vieram nos convidar os favelados ficaram contentes. Os que não ganhou cartão ficou chorando e dizendo que não tinha sorte. Percebi que povo da favela gosta de ganhar esmolas. Puzeram umas tabuas na calçada e forraram com jornais e puzeram os pães em cima. Ouvi uma mulher dizer:

— Não é ruim ser pobre.

Todos usava roupas humildes. Alguns calçados outros descalços. Apareceu um preto alto e gordo como se fosse descendente de elefante. Falava para todos ouvir.

— Eu não sou deputado. Sou simplesmente amigo do povo humilde”.

Carolina- “Não simpatizei com o tal Zuza. Falta qualquer coisa naquele homem, para ele ser um homem completo. Ele notando a impaciência do povo, dizia:

— Espera! Vocês estão mortos de fome?

Vi uma mulher grávida desmaiar. O Zuza deu uns pães para as mulheres, e mandou elas erguer os pães para o ar, para ser fotografadas. Os carros e os ônibus da CMTC encontrava dificuldades para percorrer a rua devido as crianças que atravessavam a rua de um lado para outro. A qualquer instante eu esperava um atropelamento. Alguns reclamava:

— Se eu soubesse que era só ão, eu não vinha.

O senhor Zuza mandou dois violeiros tocar e apareceu um palhaço. Que festa sem graça.

Era domingo e o povo ficou expantado quando viu os indigentes superlotar ônibus Bom Retiro. (…). Tinha uma mulher com crianças que vieram de Santos e ganhou só um pão e um saquinho de bala e uma regua escolar que estava escrito Lembrança do Deputado Paulo Teixeira de Camargo”.

Cláudia- O inglório banquete era, na verdade, uma empreita de marketing político de péssimo gosto. Zombaria, escárnio. Uma festa para miseráveis com pão, palhaço e violeiros. Os “bem-feitores” eram noivos doaram o que sobrou da cerimônia. O povo da favela desconfiou. E foi foi chamado pelos organizadores do evento de “quadrúpedes”.

1958, 8 de julho

Quando a religião produz visões opostas…

Carolina- “Eu estava indisposta, deitei cedo. Despertei com a algazarra que fazia na rua. (…) A Leila deu seu show. E os seus gritos não deixou os vizinhos dormir. As quatro comecei escrever. Quando eu desperto custo a adormecer. Fico pensando atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario mínimo, aí eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras”.

Cláudia- Carolina parece avessa a cultos, rezas e procissões. Prefere ler.

Luiza- “Eu falo com Deus né. Eu peço para ele me vigiar” (…) Quando eu estou trabalhando e alguém, meu patrão recebe alguém em casa, eu não fico ouvindo, eu rezo”.

Cláudia- Religiosa e piedosa, Luiza pratica a leitura da Bíblia. O livro sagrado fica em um pequeno altar num ponto discreto da sala de estar. Em vários momentos, em sua narrativa, a palavra Deus está presente.

1958, 22 de julho

Carolina- “Saí pensando na minha vida infausta. Já faz duas semanas que eu não lavo roupa por falta de sabão. As camas estão sujas que dá até nojo.

… Não fiquei revoltada com a observação do homem desconhecido referindo-se a minha sujeira. Creio que devo andar com um cartas nas costas.

Se estou suja é porque não tenho sabão”.

Cláudia- Discurso visual publicitário . Lógica do cartaz. Silogismos. Se Carolina tivesse vivido até os dias de hoje veria os “homens-cartaz” que andam pelas ruas de São Paulo anunciando compra e venda de ouro. crédito fácil, etc.

1958, 31 de julho

Carolina- “Hoje eu não estou nervosa. Estou triste. Porque eu penso as coisas de um jeito e corre de outro”.

Cláudia- Carolina sai par catar papel. Não encontra. Ela “gira” pela cidade para conseguir dinheiro. Passa no frigorífico e pega ossos, vasculha o lixo. A vida sem planejamento, sem previsão, tonteia. O giro, como visto no texto de Callois, é vertigem.

Carolina- Estou indecisa, sem saber o que fazer, porque não suporto permanecer no barracão limpo como está. Casa que não tem lume no fogo fica tão triste! As panelas fervendo no fogo também serve de adorno. Enfeita um lar”.

Cláudia- A ausência de estímulos, desorienta. A baixa entropia é morte do sistema. Não há nada para combinar.

1958, 14 de agosto

Carolina- “Fui até o depósito, ganhei 15 cruzeiros. Passei no sapateiro para mandar ele consertar os sapatos da Vera. Fiquei percorrendo as ruas. Estava nervosa, porque estava com pouco dinheiro, e amanhã é feriado. Uma senhora que regressava da feira disse-me para eu ir buscar papeis na rua Porto Seguro, no predio da esquina, 4 andar, 44.

(…) Pedi ao jornaleiro para ajudar-me a colocar o saco nas costas, que o dia que eu estivesse limpa eu lhe dava um abraço. Ele sorriu e disse-me:

“Então já sei que vou morrer sem receber o teu abraço, porque você nunca está limpa”.

Catar, vender, catar, vender…

Cláudia- O texto cinematográfico de Carolina faz ver. A favela é moto perpétuo. Tudo volta para o mesmo ponto. Repetição. A vida de Carolina é circular. Quando ela indaga se sua vida vai um dia mudar, o leitor percebe o movimento pendular de seu pensamento que quer avançar, mas a realidade a que está submetida não deixa entrever uma saída. A favela é um labirinto.

Carolina- “Tem dia que eu invejo a vida das aves”.

Luiza- “eu corri… eu corri atrás daquele ônibus”. A vida de Luiza é correr. Correu sempre para conseguir de algum jeito o que não tinha com facilidade. Ela corre para o trabalho. Não descansa. A vida de Luiza é uma reta sem fim.

1958, 20 de agosto

A má estética da cozinha…

Carolina- “Cheguei no ponto final do Canindé. Passei na COAP para comprar arroz. O mais barato, o que já está velho e com gosto de terra”.

Luiza- “O arroz que a gente comia, quando tinha, era quirera. Era quirera que chamava… eu me lembro desse nome”.

1958, 2 de setembro

Comportamento: pouca disciplina ou euforia?

Carolina- “No Play Boy [playground) que o Adhemar pois aqui para as crianças, a noite são os marmanjos que brincam. O Bobo fazia tanto barulho que deturpava o espetáculo. Os favelados pizam no fio elétrico que liga a maquina. A maquina desligava. Os proprios favelados falam que os favelados não tem iducação. Pensei: vou escrever.

1958, 28 de outubro

Reprimendas morais…

Carolina- “A prostituição é a derrota moral de uma mulher”.

Cláudia- Carolina tem uma moral rígida. Ela reprova os relacionamentos extraconjugais. Ela cita as mulheres que traem os esposos. Sabe-se que ela teve um avô terno e bom conselheiro. Talvez na formação clássica de Carolina não coubessem os desvios da favela.

1958, 8 de novembro

Carolina amarra diálogo franco com o par amoroso, Sr Manoel:

— “E você não é preta?

— “Eu sou. Mas eu queria ser dessas negras escandalosas para bater e rasgar as tuas roupas.

… Quando ele passa uns dias sem vir aqui, eu fico lhe chingando. Falo: quando ele chegar eu quero expancar-lhe e jogar água. Quando ele chega eu fico sem ação”.

Cláudia- Carolina é elegante. Contém as emoções. Sabe que fúria não traz felicidade. Mas mostra que sabe lidar muito bem com os esterótipos.

1958, 31 de dezembro

Mais uma imagem da favela…

Carolina- “Eu tenho uma vida confusa igual um quebra-cabeça”.

Cláudia- Carolina narra longamente o flerte com um cigano, o Raimundo, que passava pela favela. É das poucas pessoas que se aproximaram desse personagem outsider, errante e mal visto por comunidades estabelecidas. Foi atração fatal. Mas ela não cedeu à sedução morena do homem com seus galanteios e a boa conversa. A alma confusa aludida na frase procura responder sensatamente aos eventos indóceis da favela. As brigas. As traições. Os xingamentos. A fome. A morte.

1959, 11 de janeiro

Carolina- “Parece que este cigano quer hospedar-se no meu coração.”

Cláudia- Carolina exibe profunda sabedoria sobre o amor.

1959, 29 de junho

Carolina- “O céu está maravilhoso. Azul claro e com nuvens brancas esparsas. “Os balões com suas cores variadas percorrem o espaço. As crianças ficam agitadas quando um balão vem desprendendo-se. Como é lindo o dia de São Pedro”.

1959, 18 de julho

Carolina- “Quem escreve gosta de coisas bonitas. Eu só encontro tristezas e lamentos”.

As duas falas, a de 29 de junho e a de 18 de julho, mostram de ângulos diferentes a dualidade do mundo para Carolina. A feiúra e a beleza. O realismo e o onírico. Carolina faz poesia com resíduos. Emula com as letras para reduzir os infortúnios do presente. Como dito pela pesquisadora e responsável pelo legado intelectual de Carolina Maria de Jesus, Raffaella Fernandez, a catadora de papel faz reciclagem com tudo o que encontra: coisas, palavras,papéis, ossos, sangue, vento, estrelas, pensamento. Em Carolina catar e catalogar viram sinônimos. O mundo ficou mais complexo com Carolina. Há muito a ser recuperado. De mundo. De texto. Como diria o filósofo existencialista alemão Martim Heidegger, dasein… a palavra abre um espaço.

Luiza não conheceu Carolina. Mas eu as vi juntas, repetindo uma história que não é novidade. O mesmo caminho. Tantos cenários, tantas dores e amores. Outras linhas e mais palavras. Nunca nos faltem… mulheres pretas ou brancas percorrendo esse mesmo caminho. O da escritura. Odoyá!

Outra voz, como já dito nesse interregno quase poético, se faz ouvir aqui . É a de Raffaella Fernandez, doutora em Teoria e História da Literatura pela Unicamp, que fez da tese recentemente defendida o livro “A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus”. Saiba o que traz a especialista sobre os manuscritos de mais de 5 mil páginas da escritora mineira de Sacramento.

Capa de A Poética de Resíduos de Carolina Maria de Jesus

Entrevista com Raffaella Fernandez

1. Qual a atualidade de Carolina Maria de Jesus?

2. A favela é o quarto de despejo da cidade grande. Esse lugar da feiúra, dos dejetos, do descarte, dos restos do mundo e destino dos desvalidos tem beleza?

3. O barulho da favela, seu dia-a-dia, o alarido, o fervor dos cultos, as músicas dos “nortistas”, os gritos e xingamentos, que se contrapõem ao interior balsâmico de Carolina, essa tensão, seria o húmus de sua poesia?

4. Academicamente falando, que poesia emergiu nos escritos de Carolina? Qual a sua classificação?

5. Como pensar a díade MEMÓRIA x ESQUECIMENTO na obra Quarto de Despejo?

6. Carolina Maria de Jesus é uma espécie de “antena social”, um alerta, uma mídia natural do Brasil. Qual o papel da literatura na política ou que relação e que efeitos as duas instâncias — a política e a literária — têm uma sobre a outra?

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