A infinitude do jogo da vida

Existem dois tipos de jogos. Jogos finitos e jogos infinitos. Neste artigo, falo sobre como a mentalidade do jogo infinito é essencial para a vida.

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
9 min readJul 20, 2018

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Photo by Val Vesa on Unsplash

Cerca de dez anos após o início da Guerra do Vietnã, os líderes norte-vietnamitas perceberam que suas forças não iriam sustentar as perdas impostas pelos americanos de forma indefinida e que teriam que vencer a guerra na base do tudo ou nada. Em janeiro de 1968, o exército do Vietnã do Norte e os vietcongues lançaram a Ofensiva do Tet contra o Vietnã do Sul e os Estados Unidos, uma série de ataques simultâneos surpresas contra uma variedade de centros de comandos civis e militares das Forças Aliadas. Os americanos perderiam semanas e recursos preciosos para reconquistar as bases perdidas para os norte-vietnamitas. No fim, as forças do sul não somente derrotaram cada um desses ataques, mas também inflingiram perdas significativas no exército do norte. A Ofensiva do Tet pode ter sido um desastre militar para o Vietnã do Norte, mas ela provou-se essencial para a sua vitória na Guerra do Vietnã. O otimismo dos americanos de que a guerra estava perto do fim provou-se errôneo e a opinião pública logo pesou contra a presença dos Estados Unidos no Sudeste Asiático.

O Vietnã do Norte estava disputando o jogo infinito. O objetivo da Ofensiva do Tet não era derrotar o inimigo, mas sim exauri-lo.

Existem dois tipos de jogos. Jogos finitos e jogos infinitos. Jogos finitos são os mais comuns e os mais fáceis de identificar: possuem ganhadores e perdedores. As regras do jogo são conhecidas por ambas as partes, elas determinam os limites do jogo, tanto no tempo — hora e duração do jogo — quanto no espaço — local do jogo, assim como os critérios que irão definir o vencedor e o perdedor.

O futebol é um exemplo de jogo finito. Isto é, ele possui um conjunto de regras que define os limites do jogo, tanto no espaço — no campo de futebol — como no tempo — dois tempos de 45 minutos — assim como um conjunto de regras que determinam o vencedor e o perdedor do jogo. Aquele time que conseguir marcar mais gols que o oponente dentro dessas fronteiras pré-definidas é considerado o vencedor daquele jogo e é reconhecido como tal pelo perdedor e pelos espectadores. Nada garante que o vencedor de um jogo seja o melhor time entre os dois, visto que um resultado distinto pode ocorrer no próximo jogo, em locais e momentos diferentes. Obviamente, melhores jogadores tendem a vencer mais partidas em contextos diferentes no longo prazo, mas o resultado de um jogo não mensura a qualidade intrínseca do jogador, mas sim a habilidade do jogador em ser melhor que o oponente naquelas circunstâncias. Um exemplo disso são as inúmeras histórias de zebras no esporte: jogadores ou times considerados como inferiores em relação ao adversário, mas que provaram ser melhores do que o oponente naquelas circunstâncias, pré-definidas ou aleatórias, do jogo.

Jogos infinitos no entanto, não possuem vencedores ou perdedores. Qualquer um pode participar de um jogo infinito e seus jogadores deixam de jogar apenas quando seus recursos acabam. Jogadores infinitos possuem apenas um único propósito: manter a continuidade do jogo. A vida em si é um jogo infinito. Ninguém pode efetivamente vencer a vida, mas sim sobreviver à ela. O jogo infinito da vida contudo, é constituído de alguns jogos finitos ao longo dela. Vencedores desses jogos são recompensados por títulos ou prêmios que são reconhecidos pelos outros jogadores como pertencentes à estes vencedores. Alguns desses prêmios oferecem ao vencedor uma melhor chance de continuar disputando o jogo infinito. Uma região rica em petróleo disputada em uma guerra garante ao vencedor uma maior fonte de um recurso tão essencial para a civilização. Um prêmio de loteria proporciona ao ganhador uma maior capacidade de adquirir recursos que podem prolongar a sua própria vida.

Perceba como a mentalidade do Vietnã do Norte nos últimos anos da guerra não era em efetivamente vencer a batalha contra os Estados Unidos, mas sim sobreviver à ela.

As limitações da mentalidade do jogo finito

Escola, faculdade, emprego, casamento, família, aposentadoria. Para muitos, essa é a cronologia da vida a ser percorrida. É comum ouvirmos sobre pessoas bem-sucedidas que conquistam esses objetivos de vida e sobre o perigo de não alcançarmos esses fins. Observe como a vida é tratada como uma série de marcos ou jogos a serem alcançados, conquistados, exibidos como troféus para as outras pessoas e logo dados como completos. Essa é a mentalidade dos jogos finitos. Desde cedo fomos educados a encarar a vida como uma série de jogos finitos (e não como um jogo infinito constituído de jogos finitos), criados para serem ganhos, para termos as recompensas instantâneas da vitória e sem qualquer necessidade de manutenção dos recursos que proporcionaram a própria vitória. Um exemplo prático disso é a escola.

O sistema educacional vigente consiste em uma série de jogos finitos: matérias e testes estandardizados. Esses jogos, inicialmente concebidos como uma maneira de verificar se o aluno adquiriu o conhecimento durante as aulas, acabam por não mensurar conhecimento em si, mas sim a capacidade do jogador de enfrentar o jogo do teste naquele exato momento e local. Nada garante que fora das circunstâncias da prova o jogador saiba aplicar o conhecimento adquirido. A cultura dos testes estandardizados não promove o aprendizado de um conteúdo, mas sim o desejo e a mentalidade de vencê-lo. As informações adquiridas para um teste são tão prontamente descartadas após a vitória do jogo pelo simples fato de termos que enfrentar o próximo jogo e isso segue de forma sucessiva até a graduação, quando o graduado obtém o diploma com o único propósito de exibi-lo como troféu e usá-lo como tíquete de entrada para o próximo jogo da vida, o do mercado de trabalho.

Soldados do Vietnã do Sul defendendo Saigon em 1968 na Batalha de Saigon.

Ao estimularmos a mentalidade do jogo finito, não somente encorajamos uma atitude de consumo-descarte dos recursos no qual não há qualquer incentivo para a manutenção dos próprios recursos, mas também inibimos a capacidade das pessoas de pensarem ou agirem fora do conjunto de regras estabelecidas pelo establishment: elas deixam de agir e passam somente a reagir às regras. Por exemplo, cronogramas escolares impostos aos alunos os impedem de aprender conteúdos fora da grade que podem ser altamente relevantes e úteis. A mentalidade do jogo finito é incapaz de questionar a validade das regras do próprio jogo e as aceita porque “é assim que o mundo funciona.” Assim, jogadores finitos otimizam suas vidas de acordo com as regras dos jogos finitos que eles estão disputando e acabam pulando desesperadamente de jogo em jogo, atrás das recompensas instantâneas que cada jogo traz.

Jogadores infinitos engajam em jogos finitos por necessidade. Eles entendem que para manter a continuidade do jogo da vida é necessário passar por boa parte dos jogos finitos que o mundo exige das pessoas. A diferença é que eles reconhecem que a vida em si é um tipo diferente de jogo. Existem uma série de desafios a serem enfrentados para garantir a perpetuidade da vida — sendo que alguns deles não seguem à risca as regras de alguns jogos finitos. É a partir da mentalidade dos jogos infinitos que as regras são modificadas. A teoria da relatividade restrita que Einstein concebeu enquanto trabalhava em um agência de correios ilustra isso perfeitamente: um trabalho de mentalidade de jogo infinito sendo feito em um ambiente de jogos finitos.

O Mal surge dos jogos finitos

A insustentabilidade da mentalidade do jogo finito reside na ansiedade em ganhar todos os jogos finitos com a esperança de que eles deixem de existir: o cenário perfeito, sem problemas ou preocupações, no qual o jogo infinito da vida não contém mais nenhum jogo finito. Sob uma perspectiva evolutiva, é compreensível a tendência humana para desejar o fim dos jogos finitos. Considerando que estamos sempre preocupados em garantir a próxima refeição para a sobrevivência, um cenário onde os recursos são abundantes, onde o jogo infinito não é mais um jogo, apenas um passatempo, é muito atraente.

O grande ponto é que esse cenário é uma utopia. Jogos finitos fazem parte do ciclo sem fim da Mãe Natureza e a exaustão dos recursos com o inútil propósito de ganhar todos os jogos finitos só irá tornar a derrota final ainda mais dolorida. Querer a vitória de todos os jogos é querer derrotar a infinitude e as aleatoriedades da Natureza e do Tempo. É a partir da mentalidade do jogo finito que o fascismo e o comunismo nasceram. Os nazistas e os bolcheviques culpavam os problemas de suas sociedades em uma parcela específica da população. A “solução” para eles era óbvia sob uma perspectiva dos jogos finitos: o extermínio daqueles responsáveis pela miséria de suas épocas resultaria em um mundo perfeito — até que outro problema surgisse, e algum outro tipo de jogo finito fosse criado pelo Líder Supremo, e assim de forma sucessiva até que a humanidade inteira fosse exterminada.

Discursos políticos que apontam um responsável pelos problemas da sociedade e que almejam o extermínio destes supostos vilões são um desserviço ao mundo. É de fato um problema que estes discursos tenham se tornado tão frequentes nos últimos anos, em ambos os lados do espectro político, após as catástrofes que o fascismo e o comunismo proporcionaram no século XX.

É curioso que o sistema democrático, algo tão venerável por nossa cultura, presente em boa parte dos países do Ocidente, também induz uma mentalidade de jogos finitos na governança da nação. Poucos políticos ou partidos de fato possuem uma mentalidade de preservação à longo prazo da sociedade. A democracia exige uma mentalidade de jogos finitos para aqueles que desejam manter-se no poder: cada ciclo eleitoral é um jogo a ser disputado, vencido e exibido como um troféu para a próxima eleição.

A filosofia do infinito

Em uma sociedade cada vez mais secular como a nossa, ressaltar pontos positivos das religiões pode ser considerado como heresia pela parte mais agnóstica da sociedade. O progresso tecnológico tem resolvido questões que antes eram consideradas como tabu pelas sociedades mais religiosas. É inegável que vivemos de uma maneira muito mais confortável do que meio milênio atrás, muito em parte pelo incrível florescimento da era industrial. Mas acredito que não podemos desconsiderar por completo os ensinamentos das grandes religiões do mundo.

O Cristianismo, por exemplo, é fascinante justamente por incorporar a mentalidade do jogo infinito em sua teologia. Amar por amar e não para conquistar algo para si, fazer o bem pelo bem em si, e não por algum objetivo secundário a ser conquistado, praticar o perdão no lugar da crítica e do desejo do extermínio podem parecer noções óbvias para nós, mas são óbvias precisamente por dois mil anos da cultura cristã. Acredito que estes ensinamentos, uma pequena amostra de uma filosofia completamente baseada no jogo infinito, são muito difíceis para os seres humanos absorverem por completo. Basta ver a quantidade de falsos filantropos e de pessoas incapazes de perdoar o menor dos erros ao nosso redor. É propriamente pela incapacidade de boa parte dos seres humanos de querer preservar o jogo infinito que vejo o valor moral da religião na vida das pessoas.

Muitos dirão que a ciência irá substituir a religião até mesmo no campo moral. Eu particularmente sou cético quanto à isso. Algumas partes da ciência têm se mostrado cada vez mais adeptas à mentalidade do jogo finito, na esperança de que as novas tecnologias como inteligência artificial resolvam boa parte dos nossos problemas. Talvez seja realmente possível que o progresso tecnológico nos proporcione uma melhor capacidade de abordar os jogos finitos, mas é importante lembrar que eles nunca poderão ser vencidos por completo.

A vida foi criada milhões de anos antes do primeiro ser humano nascer, e provavelmente irá perdurar por muito mais tempo do que nós e em nenhum momento ela foi fácil. Mais uma vez, a vida não existe para ser vencida. A mentalidade do jogo infinito é extremamente necessária em nosso caminho para uma sociedade mais evoluída.

Para mais detalhes sobre jogos finitos e infinitos, recomendo o excelente livro Jogos Finitos e Infinitos de James Carse.

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