A Reforma Protestante e a doença do Facebook

A impressora de Gutenberg foi tão importante para a humanidade como a internet. Mas o que ela provocou não foi uma união global, mas sim a maior guerra que a Europa já vira até então. E a internet segue passos similares.

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
9 min readAug 5, 2018

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Batalha da Montanha Branca, 1620, no início da Guerra dos Trinta Anos. A maior guerra da história da Europa até então.

Em 1439, um ferreiro alemão de Mainz estava envolvido em um empreendimento focado no polimento de espelhos de metais (acreditava-se que estes metais eram capazes de capturar a luz divina de artefatos religiosos) para vender aos peregrinos que dirigiam-se a Aachen onde ocorreria uma exibição dos artefatos de Carlos Magno. Devido à uma enchente, o evento foi adiado em um ano, e os investidores daquele pequeno empreendimento ficaram preocupados. O ferreiro, Johannes Gutenberg, a fim de acalmar seus investidores, lhes assegurou com um pequeno projeto do qual ele estava trabalhando: demoraria onze anos para que este projeto fosse terminado.

Em 1450, Gutenberg imprimiu a sua primeira Bíblia (em latim) mas não foi a Bíblia de Gutenberg que mudaria o rumo da civilização ocidental. Sua impressora, altamente versátil e eficiente, difundiu-se em todos os grandes centros urbanos da Europa Ocidental: ao redor de 1500, cerca de um quinto das cidades alemãs, suíças, dinamarquesas e holandesas possuíam uma impressora do tipo¹.

A crescente popularidade desta fascinante revolução tecnológica permitiu que uma outra revolução acontecesse no início do século XVI: a Reforma Protestante. Sem Gutenberg, o monge Martinho Lutero teria sido apenas mais um herege a ser queimado pela Igreja. Inicialmente sendo contra diversos dogmas do catolicismo romano, principalmente o comércio de indulgências, Lutero resumiu suas discordâncias ao publicar as famosas 95 Teses em 1517. Aproveitando o surgimento da impressora, suas idéias já estavam espalhadas por toda Europa Germânica em 1521. Grande parte das cidades que adotaram o Protestantismo já possuíam pelo menos uma impressora em 1500 (é importante ressaltar que não havia um monopólio das impressoras e sim uma descentralização do poder de impressão). No século XVI, as impressoras alemãs produziram quase 5.000 edições dos trabalhos de Lutero e outros 3.000 projetos dos quais ele estava envolvido — sendo que 80% destes foram escritos em alemão, a língua popular, em oposição ao latim, a língua da elite clerical².

Martinho Lutero na Dieta de Worms, onde ele se recusou a se retratar por suas obras. Anton von Werner, 1877

Este é o fator crucial para entender a importância e as consequências da Reforma Protestante: a transição do pensamento religioso do latim para a língua popular. De uma hora para a outra, pessoas comuns passaram a ler e interpretar a Bíblia em seus idiomas nativos, sem depender da Igreja para exercer esta atividade. O conhecimento estava a um livro de distância dos cidadãos comuns e por consequência, o pensamento crítico evoluiu.

A secular Reforma Protestante

No livro The Square and the Tower, o historiador Niall Ferguson argumenta que uma consequência direta das regiões que aderiram ao Protestantismo foi um maior dinamismo econômico aliado ao secularismo. Segundo ele, a Reforma Protestante levou à uma maior realocação de recursos de atividades religiosas para atividades seculares. Terras e construções que pertenciam à Igreja passaram a ser utilizados para outros fins. Estudantes universitários perderam o interesse pela vida monástica e partiram para profissões mais práticas ou científicas.² Além disso, a disseminação da impressora fez com que o custo dos livros baixasse cerca de 90% ao longo do século XVI — algo muito similar à queda dos preços dos computadores pessoais nas últimas décadas.⁴

O florescimento do pensamento crítico aliado à diminuição do custo da informação, embora cruciais para movimentos importantes da história como a Revolução Científica, trouxeram uma consequência catastrófica para a Europa da Reforma Protestante. A capacidade de ler as obras cristãs nas línguas locais concebeu diferentes interpretações das Escrituras que passaram a disseminar-se por todo o continente. Assim, com o debate religioso sendo promovido de forma constante nos centros urbanos, nasceram diferentes grupos de diferentes nacionalidades que alegavam ter a interpretação correta dos ensinamentos de Cristo.

O que sucedeu à Reforma Protestante não foi uma mudança harmoniosa do Cristianismo, mas a fragmentação e a polarização do mesmo até que o inevitável conflito entre pontos de vista diferentes realmente acontecesse. Levaria cerca de 120 anos de turbulência e o maior conflito da história européia até então para que o continente voltasse a ter uma relativa paz na questão religiosa, mas nada comparado ao cenário da era pré-impressora: a Igreja Católica havia perdido muita influência nos países germânicos.

Gutenberg foi o primeiro Steve Jobs

A impressora de Gutenberg e sua relação com a Reforma Protestante é o único marco histórico capaz de ser comparado com o surgimento da internet e sua relação com o contexto geopolítico atual. A rede mundial de computadores, assim como a impressora, permitiu que a população em geral tivesse acesso à informação de uma forma mais rápida, barata e descentralizada. Com o conhecimento nas palmas de suas mãos, as pessoas passaram a interagir-se umas com as outras, promovendo a busca por mais conhecimento. A concepção da Wikipédia talvez seja o ápice desta busca por parte da humanidade: pessoas de diferentes regiões do planeta se unindo para criar a maior base descentralizada de conhecimento já vista.

Primeiras impressoras de madeira, desenho de 1568. Elas produziam até 240 impressões por hora.

Assim como o acesso às obras religiosas em suas línguas locais permitiu que os europeus do século XVI passassem a questionar o poder da Igreja Católica, é visível que o cidadão do Terceiro Milênio alavancou o poder da internet para questionar o poder da instituição mais poderosa dos dias atuais: o Estado. O movimento Occupy Wall Street e a Primavera Árabe no início da década e os protestos do Brasil contra políticas do governo em 2013 e 2014 são exemplos de movimentos populares que nasceram na internet. Porém, é importante lembrar que na Reforma Protestante, uma maior disseminação do pensamento crítico e do debate promoveu não uma harmonia intelectual, mas sim uma fragmentação ideológica.

Estou escrevendo este artigo no mesmo dia em que Jair Bolsonaro, então candidato à Presidência da República do Brasil, anunciou como candidato à vice o General Hamilton Mourão. A reação dos membros das mídias sociais à este anúncio foi igualmente rápida e intensa. Para qualquer um que frequenta estas mídias, é visível como esta fragmentação ideológica não só prejudica qualquer esperança de progresso de nosso país mas também cria uma insegurança tremenda para qualquer um interessado em ingressar no debate.

Se trinta anos atrás o espectro político público resumia-se à direita e à esquerda, hoje existe uma pluralidade de movimentos em cada quadrante do Diagrama Político de Nolan que possuem muito mais força do que tinham no passado. Da mesma maneira que diferentes denominações religiosas nasceram da Reforma Protestante, estamos vendo diferentes movimentos políticos nascerem na internet com poderes de influência equiparáveis ou até maiores que os dos antigos partidos políticos.

Birds of a feather flock together

“Pássaros de uma mesma pena voam juntos” é a tradução literal da famosa expressão inglesa birds of a feather flock together. A internet, assim como a impressora, introduziu um mecanismo de disseminação de informação que, entre benefícios inimagináveis, permitiu que diferentes pessoas encontrassem outras com uma certa afinidade ideológica e que fossem expostas às ideologias contrárias.

O ressurgimento do movimento liberal-libertário brasileiro nesta década, por exemplo, só poderia ter acontecido na internet por três motivos singulares: o acesso de forma gratuita a muitas obras de autores de cunho liberal como Mises e Hayek; um meio para pessoas que se identificam como liberais pudessem interagir-se com outros liberais; e uma exposição frequente a informações que reforçassem esta linha de pensamento.

A utopia de Mark Zuckerberg de criar uma harmoniosa comunidade global através do Facebook vai contra tudo o que a História nos ensina. As guerras religiosas que a Reforma Protestante provocou foram apenas a primeira amostra de que as pessoas, embora possam se comportar de maneiras similares, possuem pontos de vistas completamente diferentes e antagônicos sobre o mundo e que quanto mais elas interagissem umas com as outras, mais tensão ocorrerá. O sonho de mais paz e amor nas redes sociais é válido em face à enorme quantidade de preconceito e ódio sendo alastrado na internet, mas este sonho é também impossível sem um árduo esforço de auto-reflexão: é muito mais fácil criticar do que perdoar.

A escravidão da internet

A grande diferença da revolução da impressora para a revolução da internet porém, não é na complexidade da tecnologia em si, mas na centralização da tecnologia. Ao contrário da descentralização do poder de impressão na Europa do século XVI, é inquestionável que grandes empresas como Facebook e Google dominam o meio de transmissão de informação na internet: mais da metade dos usuários do Facebook o utilizam como fonte de notícias. O recente escândalo sobre como a empresa Cambridge Analytica utilizou o Facebook como um meio para disseminar propagandas e notícias falsas a fim de impulsionar a campanha presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos só mostra o quão poderosa esta ferramenta é.

Embora cada usuário tenha o poder de compartilhar (quase) toda informação que quiser nestas plataformas, são elas que decidem o que vamos ver — sendo que boa parte do que vemos são anúncios. Isto talvez seja o mais preocupante. A máxima de que se um serviço é gratuito, o usuário é o produto aplica-se perfeitamente neste caso. As redes sociais podem ser gratuitas, mas em contra partida, os usuários cedem suas informações pessoais para ter um acesso teoricamente ilimitado e gratuito à enorme quantidade de informações da internet. Esta troca ocorre sem percebermos que nossas informações pessoais estão sendo utilizadas para determinar o que vemos e a maneira da qual utilizamos a internet: a nossa liberdade virtual não passa de uma ilusão. Estas plataformas não estão interessadas em promover a disseminação de conteúdo de qualidade, mas sim em manter o usuário preso na própria plataforma.

Mesmo assim, o argumento do acesso ilimitado e gratuito ao conteúdo da internet acaba por ser atraente o suficiente para que cedamos nossas informações. Contudo, é importante ressaltar que não existe nada gratuito neste mundo: sempre haverão custos de oportunidade e de transações envolvidos, a questão está em perceber quais são estes custos.

Refeições servidas em viagens de avião por exemplo, são um exemplo de algo visto como “gratuito” mas que impõe um custo enorme ao longo prazo: nossa própria saúde. Uma única refeição de avião pode não fazer mal para nosso corpo, mas imagine se estas refeições nos fossem servidas de forma “gratuita” todos os dias: certamente sentiríamos uma mudança negativa em nosso bem-estar.

Portanto, não é porque algo foi colocado à nossa frente de forma “gratuita” que devemos consumi-la sem uma análise prévia. No entanto é exatamente desta maneira que estamos tratando a internet hoje. Consumimos quase tudo que está nela pelo simples fato de ser “gratuito”, sem perceber que estamos sacrificando coisas valiosas como relações pessoais, saúde física, mental e intelectual. Vídeos de gatinhos no YouTube podem ser uma diversão inocente e gratuita mas pare para pensar quanto tempo você sacrificou (o custo de oportunidade) com vídeos inocentes e gratuitos. O fato é que estas empresas encorajam este tipo de atitude porque são esses tipos de conteúdos inocentes e gratuitos que acabam por manter o usuário na própria plataforma.

O fato é que o seu tempo tem um valor intrínseco infinitamente maior do que testes do BuzzFeed e discussões banais na internet. Precisamos rever a maneira com que tratamos este meio de transmissão de informação, ou então teremos consequências piores do que o caos social que sucedeu a Reforma Protestante.

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¹ Dittmar, ‘Information Technology and Economic Change’.

² Pettegree, Brand Luther, 334.

³ Cantoni, Dittmat and Yuchtman, ‘Reformation and Reallocation’.

⁴ Dittmar, ‘Welfare Impact of a New Good’.

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