“Autossuficiência”, por Emerson — uma tradução livre

Escrita em 1841, Self-Reliance aborda questões que ainda são relevantes nos dias atuais, como a opressão da mente do indivíduo e a importância da auto-confiança.

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
43 min readMay 29, 2018

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“O olhar cai onde um raio de luz deveria incidir, para que pudesse ser testemunha de sua presença.”

O ensaio Self-Reliance, do filósofo americano Ralph Waldo Emerson é uma das maiores obras do movimento transcendentalista. Nele, Emerson reafirma um de seus temas mais recorrentes: a necessidade de cada pessoa de evitar a conformidade e falsas consistências e de seguir suas próprias intuições e idéias. Escrita em 1841, Self-Reliance aborda questões que ainda são presentes nos dias atuais e portanto relevante para inúmeras esferas de debate, desde o movimento feminista até os problemas de violação de privacidade por parte das grandes corporações. Como não encontrei nenhuma tradução moderna em português, tomei a liberdade de traduzir este ensaio, tentando manter o sentido da mensagem original deste que é um dos maiores filósofos do século XIX.

Autossuficiência

Ne te quaesiveris extra

“O homem é a sua própria estrela; e a alma, que pode torná-lo honesto e perfeito, comanda toda a luz, toda a influência, todo o destino. Nada lhe acontece cedo ou tarde demais. Os nossos atos são os nossos anjos, bons ou maus. São as nossas sombras do destino que caminham ao nosso lado.”

Outro dia li uns versos escritos por um pintor eminente, versos originais e nada convencionais. A alma sempre escuta uma advertência em versos deste tipo, seja qual for o tema. O sentimento que eles inspiram é mais valioso do que qualquer pensamento que eles possam conter. Acreditar em seu próprio pensamento, acreditar que o que é verdade para você, no fundo do seu coração, é verdade para todos os homens — isso é a genialidade. Expresse a sua convicção oculta e ela será de senso universal; pois o que é íntimo, no devido tempo torna-se concretizado — e o nosso pensamento original nos é reapresentado pelas trombetas do Juízo Final. Como a voz do espírito é familiar para cada um de nós, o maior mérito que atribuímos a Moisés, Platão e Milton não é de terem falado sobre reflexões de outras pessoas, mas é o de não terem se importado com livros e tradições e de terem falado sobre o que eles mesmos pensavam. As pessoas deveriam aprender a detectar e a observar o brilho de luz que, vindo de seu interior, atravessa sua mente, mais do que o brilho do céu de bardos e sábios. Contudo, o homem descarta sem aviso prévio este seu pensamento, pelo fato dele vir de si mesmo. Em toda obra de um gênio reconhecemos nossos próprios pensamentos rejeitados: eles voltam para nós com uma certa majestade alienada. As grandes obras de arte não nos oferecem uma lição mais impactante do que essa. Elas nos ensinam a obedecer e a escutar nossa intuição, nossa impressão espontânea com uma inflexibilidade bem humorada, mais ainda quando todas as vozes e opiniões exteriores estão do lado oposto. Caso contrário, amanhã um estranho dirá com um magistral bom senso exatamente o que sempre pensávamos e sentíamos e, envergonhados, seremos forçados a admitir nossa própria opinião vindo de outra pessoa.

Existe um momento na educação de todo homem no qual ele chega à conclusão de que a inveja é ignorância; que a imitação é suicídio; em que ele deve aceitar a si mesmo pelo que ele é, tanto no melhor como no pior; e que, apesar do universo ser cheio de bondade, nenhum grão de trigo chegará às suas mãos que não seja fruto do trabalho dedicado ao pedaço de terra que lhe foi dado para cultivar. O poder que reside nele é original por natureza e ninguém além dele mesmo sabe o que poderá fazer com ele — nem ele sabe, até experimentar. Não é por acaso que um certo rosto, uma certa personalidade ou um certo acontecimento lhe causam uma forte impressão, enquanto outros o deixam indiferente.

Essa escultura em sua memória não existe sem uma harmonia pré-estabelecida. O olhar cai onde um raio de luz deveria incidir, para que pudesse ser testemunha de sua presença. Nós nos expressamos pela metade, e nos envergonhamos da idéia divina que cada um nós representa. Podemos dizer que a nossa própria idéia divina foi repartida de uma maneira correta e harmônica, a fim de ser fielmente transmitida, mas Deus não deixará o seu trabalho ser expressado por covardes. Uma pessoa se sente aliviada e feliz depois de ter posto seu coração em seu trabalho, quando deu o melhor de si, mas o que disse e fez de outra maneira não lhe trará paz. É uma libertação que não liberta. Nessa tentativa o seu gênio o abandona, não há musa que lhe sorria, não há invenção ou esperança.

Existe um momento na educação de todo homem no qual ele chega à conclusão de que a inveja é ignorância; que a imitação é suicídio.

Confie em si mesmo: cada coração vibra nessa corda de ferro. Aceite o lugar que a divina providência encontrou para ti, aceite a sociedade de seus contemporâneos e o encadeamento dos eventos que lhe trouxeram até aqui. Grandes homens sempre procederam assim e confiaram como crianças no gênio de sua época, e assim, revelaram sua percepção de que o que lhes era inteiramente digno de confiança residia em seu coração, manifestando-se pelas suas mãos e predominando em todo o seu ser. Mas agora, sendo homens, devemos aceitar com elevação o mesmo destino transcendente; que não sejamos fracos e enfermos em um canto protegido, ou covardes fugindo de uma revolução, mas guias, redentores e benfeitores, obedecendo ao Todo-Poderoso esforço, caminhando pelo Caos e pelas Trevas.

Que belas revelações a natureza nos concede sobre este tema, tanto no rosto como no comportamento das crianças, dos recém-nascidos e até mesmo dos brutos! Elas não têm esse espírito dividido e rebelde, essa desconfiança em relação a um sentimento devido à um cálculo de nossa mente que afirma que a força e os meios se opõem ao nosso propósito. Seus espíritos são intactos e inocentes, seus olhos ainda não foram conquistados e quando olhamos em suas faces nos sentimos desconcertados. A infância não obedece à ninguém: todos se conformam à ela e assim, uma única criança faz com que quatro ou cinco adultos a rodeiem, conversando e brincando com ela. Desta forma, Deus armou a juventude, a adolescência e a maturidade com sua própria atração e charme, tornando-os invejáveis e graciosos, e suas exigências não devem ser ignoradas se podem se afirmar como tal. Não pense que a juventude não possui força por não poder falar comigo ou contigo. Escute! Na sala ao lado a sua voz é suficientemente clara e enfática. Parece saber como falar com seus contemporâneos. Então, de forma tímida ou ousada, saberá como tornar nós, os mais velhos, desnecessários.

O desinteresse dos jovens que estão seguros de terem um jantar e que desprezariam até mesmo um lorde se tivessem de dizer ou fazer algo a fim de cativá-lo, é a atitude sã da natureza humana. Um jovem está para um salão como uma platéia está para uma sala de teatro; independente, sem responsabilidades, observando em seu canto as pessoas e os fatos que passam por ele, condenando-os e julgando-os baseado em seus méritos no modo rápido e antecipado dos jovens, estimando-os bons, maus, interessantes, tolos, eloquentes ou problemáticos. Ele nunca se incomoda com consequências ou interesses; ele profere uma opinião independente e genuína. É você que deve cortejá-lo: ele não o corteja. Contudo, o ser humano maduro está encarcerado pela sua própria consciência. Logo que age ou fale com esplendor, será uma pessoa comprometida e observada pela simpatia ou ódio de centenas de pessoas, cujos sentimentos terá então de levar em conta. Não há forma de esquecer isso. Ah, se ele pudesse retornar à sua neutralidade de argumentos! Portanto, aquele que consegue evitar todos os compromissos, e que depois de ter observado, observar novamente com a mesma inocência natural, imparcial, incorruptível e corajosa, deverá ser sempre formidável. Ele pronunciaria opiniões sobre todos os assuntos que, sendo considerados não como privadas, mas necessárias, penetrariam como dardos nos ouvidos das pessoas e as encheria de medo.

As pessoas deveriam aprender a detectar e a observar o brilho de luz que, vindo de seu interior, atravessa sua mente, mais do que o brilho do céu de bardos e sábios. Contudo, o homem descarta sem aviso prévio este seu pensamento, pelo fato dele vir de si mesmo.

Estas são as vozes que escutamos na solidão, mas que se tornam fracas e inaudíveis assim que adentramos no mundo. A sociedade, por todos os lados, conspira contra a virilidade de cada um dos seus membros. A sociedade é uma empresa de capital social cujos membros concordam em retirar a liberdade e cultura daquele que come, a fim de melhor garantir o pão de cada um de seus membros. A virtude mais requisitada é a conformidade, a submissão. A sociedade sente repulsa pela autoconfiança. Ela não ama realidades e nem criadores, mas sim, nomes e costumes.

Aquele que deseja ser um homem deverá ser um inconformista. Aquele que deseja colher louros imortais não deve ser impedido em nome de alguma bondade, mas deverá examinar se isto é, realmente, bondade. Nada é sagrado em definitivo, a não ser a integridade da nossa própria mente. Perdoe a si mesmo e receberás a aprovação do mundo. Lembro-me de uma resposta que, quando jovem, quis dar a um ilustre conselheiro que tinha o hábito de me importunar com as boas e velhas doutrinas da Igreja. Quando lhe disse “O que tenho a ver com a santidade das tradições se vivo plenamente de acordo com minhas intuições, se vivo a partir de meu interior?” Meu amigo sugeriu: “Mas esses impulsos podem vir de um plano inferior e não superior.” Respondi então: “Não me parece ser o caso, mas se sou filho do Demônio, viverei de acordo com o Demônio.” Não há nenhuma lei sagrada que não é de minha natureza. O bem e o mal são apenas designações que rapidamente podem ser transferidos para isto ou aquilo; o certo é tudo aquilo que concorda com minha constituição, errado é tudo que se opõe à ela. Na presença de qualquer oposição, um ser humano deve se comportar como se tudo, exceto ele próprio, fosse apenas nominal e efêmero.

Eu me envergonho quando penso na facilidade com que nos rendemos à distintivos, insígnias, nomes, à importância das sociedades e das instituições mortas. Qualquer indivíduo decente e que sabe se expressar bem me afeta e me comove muito mais do que o que é considerado como certo. Eu deveria me levantar de forma íntegra e falar a verdade crua em qualquer circunstância. Se a maldade e a vaidade se vestem de filantropia, deveríamos aceitá-las? Se um devoto fanático abraçar a causa generosa do Abolicionismo e vier até mim com suas últimas notícias de Barbados, porque não lhe diria: “Ame o teu filho, ame o teu lenhador; seja modesto e amável; e não disfarce tua ambição dura e cruel com essa ternura incrível por escravos que vivem a milhares de quilômetros de distância. O teu amor pelo que está longe não passa pelo desprezo pelo que está perto”. Tal reação seria dura e deselegante, mas a verdade é mais bela do que um falso amor.

Tua bondade deve ter uma certa pureza — caso contrário, não é bondade. A doutrina do ódio deve ser pregada como a oposição à doutrina do amor quando esta só choraminga e lamenta. Quando ouço o chamado de meu gênio, fujo de meu pai e de minha mãe, de minha mulher e de meu irmão. Na porta de minha casa, eu escreveria “Capricho”. Espero que seja algo melhor do que capricho, mas não podemos passar o dia inteiro em explicações. Não espere que eu explique o porquê que procuro ou rejeito certas companhias. Também não me diga, como um bom homem fez hoje, de minha obrigação de melhorar as condições de todos os pobres. Por acaso são meus pobres? Digo a você, tolo filantropo, que de má vontade dou o dólar, o centavo, à estas pessoas que não me pertencem e a quem eu não pertenço. Existe uma classe de pessoas que, por ter tanta afinidade espiritual, sinto-me comprometido com elas e por elas eu iria à prisão se necessário; mas não à sua miscelânea de caridades populares, sua educação na faculdade de tolos, a construção de capelas que acabarão tão inúteis como muitas hoje se encontram; suas esmolas para bêbados e suas mil Sociedades de Socorro — embora confesso envergonhado que às vezes eu sucumbo e dou o dólar, mas este é um dólar perverso que, aos poucos, terei a valentia de reter.

As virtudes são, na estimativa popular, as exceções e não as regras. Há o ser humano e suas virtudes. Como exemplo de coragem ou caridade, as pessoas fazem o que elas chamam de uma boa ação, da mesma forma que pagariam uma multa para redimir sua ausência diária em uma reunião. Suas obras são feitas como uma apologia ou expiação por viver no mundo — como os inválidos e os loucos por receberem refeições regulares. Suas virtudes são penitências. Eu não quero me redimir de nada, quero viver. Minha vida é para mim mesmo e não para exibição. Preferiria muito mais se fosse sem graça, mas genuína e honrada do que se fosse reluzente e oscilante. Gostaria que fosse doce e sã, e que não precisasse de dietas e sangrias. Exijo por uma evidência primária de sua veracidade como homem, mas nego suas ações como resposta. Eu sei que, para mim, não há diferença se de fato realizo ou evito aquelas ações que são reconhecidas como superiores. Não posso pagar por um privilégio se tenho um direito intrínseco. Por mais escassos e desprezíveis que sejam meus dons, eu existo verdadeiramente e não preciso de um segundo testemunho para minha própria convicção ou a dos meus amigos.

“A infância não obedece à ninguém: todos se conformam à ela e assim, uma única criança faz com que quatro ou cinco adultos a rodeiem, conversando e brincando com ela.”

O que eu devo fazer é tudo que me interessa, não o que as pessoas pensam. Essa regra, igualmente árdua na vida diária como na vida intelectual, deve servir como a completa distinção entre grandeza e mediocridade. É a regra mais difícil, porque sempre aparecem aqueles que pensam saber qual é o seu dever mais do que você mesmo. É fácil viver no mundo seguindo as opiniões do próprio mundo; é fácil viver na solidão seguindo a sua própria opinião; mas o grande homem é aquele que, no meio da multidão, mantém com perfeita cordialidade a independência da solidão.

Conformar-se com costumes que se tornaram obsoletos para você é o que dispersa a sua força. Isto faz você perder seu tempo e ofusca a impressão do seu caráter. Se manténs uma igreja morta, se contribuis a uma Sociedade Bíblica morta, se votas em um grande partido, seja a favor ou contra o governo, que sirvas a mesa como os anfitriões normais — por trás de todas essas telas tenho dificuldade de detectar a pessoa que és de verdade. E, obviamente, muita força é retirada de sua vida autêntica. Mas faça o seu trabalho e poderei te conhecer. Faça o seu trabalho, e te fortalecerás. Um homem deve considerar que este jogo da condescendência é como o da cabra-cega. Se sei qual a seita que pertences, posso antecipar seu argumento. Escuto um pregador anunciar que o tema de seu sermão é a conveniência de uma das instituições de sua igreja. Por acaso não sei que é incapaz de proferir uma palavra nova, espontânea? Por acaso não sei que, com toda sua ostentação de examinar os fundamentos de sua instituição, ele não o fará? Por acaso não sei que está comprometido consigo mesmo para ver somente um lado — o lado permitido — não como homem, mas como padre paroquial? Ele é um advogado contratado e esses ares de tribunal são as mais vazias das simulações. Bem, a maioria das pessoas têm vendado seus olhos com um ou outro lenço, e apegam-se a alguma dessas comunidades de opinião. Essa conformidade as tornam autoras de não poucas mentiras, mas de absolutamente todas elas. Suas verdades universais não são totalmente verdadeiras. Seus “dois” não são o “dois” verdadeiro, seus “quatro” não são o “quatro” verdadeiro; e assim, cada uma de suas palavras nos aflige, e não sabemos por onde começar para corrigi-las. No meio tempo a natureza não tarda em nos vestir com o uniforme de presidiário do partido do qual aderimos. Chegamos a usar um único tipo de cara e corpo e vamos adquirindo gradualmente a mais gentil e estúpida expressão. Existe uma experiência particularmente humilhante que não deixa de esgotar-se na história em geral; me refiro ao “tolo semblante do louvor”, o sorriso forçado que usamos como resposta, quando estamos em um lugar e nos sentimos incômodos escutando uma conversa que não nos interessa. Os músculos, que não se movem espontaneamente, mas sim por uma vontade usurpadora, travam no contorno do rosto na mais desagradável das sensações.

Pelo inconformismo o mundo te chicoteia com seu descontentamento e portanto uma pessoa deve saber como apreciar uma cara amarga. Os espectadores olham-na com desconfiança na rua ou nos salões de festas. Se esta aversão tem origem no desdém e na resistência como dessa mesma pessoa, ela bem que poderia voltar à sua casa com um triste semblante, mas as caras amargas da multidão, bem como suas caras amáveis, não possuem uma razão profunda, são colocadas e retiradas segundo a direção do vento e segundo as manchetes de jornais. Mas o descontentamento da multidão é mais intimidador do que o do senado ou da academia. Para um homem resoluto que conhece o mundo, é muito fácil tolerar a ira das classes mais cultas. Tal ira é decente e prudente, porque são tímidos, e porque eles mesmos são vulneráveis. Mas quando a indignação das pessoas é adicionada à sua ira irracional, quando os ignorantes e os pobres são provocados, quando a força bruta e ilógica que repousa na base da sociedade é forçada a rugir e devastar, é necessário o hábito da nobreza e da religião para tratá-la divinamente como uma ninharia sem preocupação.

Nossa consistência é outro terror que nos amedronta de nossa confiança pessoal; uma reverência por nossas atitudes ou palavras passadas, porque os olhos dos outros não possuem mais informações para computar nossa órbita do que nossas atitudes passadas, e nós relutamos em decepcioná-los.

Mas por que deve manter-se vigilante? Por que arrastar este cadáver de sua memória, por medo de contradizer algo que disseste em algum lugar público? Suponha que você deva contradizer a si mesmo, qual seria o problema? Parece que nunca confiar somente em sua memória é uma regra sábia, muito menos em assuntos que requeiram pura memória, mas é melhor trazer o passado para o presente e julgá-lo com seus milhares de olhos e viver sempre em um novo dia. Em sua metafísica, negaste a personalidade à Divindade: mas quando chegarem os movimentos devotos da alma, deixe-se levar por eles, com sua alma e coração, mas que vistam Deus com forma e cor. Abandone suas teorias, como José abandonou sua túnica nas mãos da meretriz e escapou.

Uma consistência tola é o bicho-papão de pequenas mentes, adorada por estadistas, filósofos e teólogos. Com consistência, uma grande alma não tem nada para fazer. Se for o caso, é melhor que se importe com sua sombra na parede. Diga hoje o que você pensa com palavras firmes e amanhã fale o que pensas amanhã em palavras firmes novamente, mesmo que contradiga tudo o que falasse hoje. — “Ah, mas com certeza você será mal compreendido.” — É tão ruim assim, ser incompreendido? Pitágoras foi incompreendido, e também Sócrates, e Jesus, e Lutero, e Copérnico, e Galileu e Newton e qualquer outro espírito puro e sábio que tenha encarnado. Ser grande é ser mal compreendido.

Suponho que nenhum homem possa violar sua natureza. Todos os ímpetos de sua vontade são arredondados na lei de seu ser, como as irregularidades dos Andes e dos Himalaias são insignificantes para a curva do globo. Não importa como você o avalia e o julga. O caráter é como um acróstico ou uma estrofe Alexandrina; — seja qual for a forma da leitura, de trás para frente, de frente para trás, continuará tendo o mesmo sentido. Nessa agradável e penitente vida no bosque que Deus me concedeu, permita-me registrar diariamente meu pensamento sincero sem retrospecção ou exploração, e, sem dúvida, será simétrico, mesmo que não seja meu propósito e mesmo que não o veja. Meu livro teria o aroma de pinos e o som dos insetos. A andorinha em minha janela costuraria palha que leva em seu bico em meu enredo. Nós passamos por quem somos. Nosso caráter fala mais alto do que uma simples vontade. As pessoas imaginam que comunicam suas virtudes ou vícios somente por ações evidentes e não vêem que as virtudes ou os vícios são exalados a cada instante.

Um acordo eventualmente será feito entre qualquer variedade de atitudes, e cada uma delas será natural e honesta em seu momento. Sendo provenientes de uma única vontade, as atitudes serão harmoniosas, mesmo que pareçam completamente distintas. Essa diversidade é visível apenas a pouca distância, ou por um breve pensamento. Uma tendência as une. A viagem do melhor navio é uma linha ziguezague composta por centenas de curvas. Observe a linha a uma distância suficiente e verás que ela se endireita à uma tendência média. Sua atitude genuína se explica sozinha e irá explicar suas outras atitudes genuínas. Sua conformidade não explica nada. Aja individualmente e o que você já tenha feito individualmente irá se justificar para você agora. A grandeza apela ao futuro. Se posso ser suficientemente firme hoje para fazer o que é justo e ainda desdenhar os olhares, devo ter feito tanta justiça antes para me defender agora. Seja como for, aja de forma justa hoje. As aparências devem sempre ser desdenhadas, sempre poderás agir de tal forma. A força do caráter é acumulativa. Todos os dias de virtude do passado insinuam sua saúde de hoje. O que compõe a majestade dos heróis do senado e do campo de batalha, que tanto despertam nossa imaginação? O apoio da consciência de uma cadeia de grandes dias de virtude e de vitórias. Juntas, elas iluminam o ator que segue adiante. É como se uma legião de anjos o cuidassem. É isso que dá um estrondo à voz de Chatham, e a dignidade ao porte de Washington e a América aos olhos de Adão. Veneramos a honra porque ela não é efêmera. Ela sempre será uma virtude antiga. A veneramos hoje porque ela não é de hoje. Nós a amamos e a prestamos homenagens não porque é uma armadilha para o nosso amor e homenagem, mas sim porque ela depende apenas de si mesma, deriva de si mesma e assim, é de uma antiga e imaculada linhagem, mesmo que seja manifestada em um jovem.

“Uma consistência tola é o bicho-papão de pequenas mentes, adorada por estadistas, filósofos e teólogos. Com consistência, uma grande alma não tem nada para fazer.”

Espero que estes sejam os últimos dias que tenhamos de escutar sobre conformidade e consistência. Que essas palavras sejam ridicularizadas de agora em diante. Ao invés de um gongo para o jantar, que escutemos o sibilo das flautas de Esparta. Que não nos curvemos ou nos desculpemos novamente. Um grande homem está vindo à minha casa para comer. Não desejo agradá-lo; desejo que ele deseje agradar-me. Serei um pilar para a humanidade e embora a deseje como gentil, a prefiro como verdadeira. Que afrontemos e reprimamos a uniforme mediocridade e o miserável contentamento dos tempos, que joguemos na cara dos costumes, do comércio e dos serviços o fato que constitui o desfecho de toda a história, que existe um grande Ator e Pensador responsável trabalhando em todo lugar onde um ser humano trabalha; que uma pessoa verdadeira e autêntica não pertence a nenhum outro momento e lugar, mas que é sim o centro de todas as coisas. Onde ela está, a natureza está. Ela o mensura, mensura a todos nós e a todos os eventos. Ordinariamente, todos os membros da sociedade nos lembram de alguma outra coisa, ou de alguma outra pessoa. Caráter e a existência real não nos lembram de nada mais; tomam o lugar da criação completa. O homem deve trabalhar para que seja indiferente a todas as circunstâncias. Todo homem autêntico é uma causa, um país e uma era; ele requer infinitos lugares e momentos para realizar seus projetos e desígnios; e a posterioridade parece seguir os seus passos como um procissão de fregueses. Nasce César e temos o Império Romano por séculos depois. Nasce Cristo e milhões de mentes crescem e abrem caminho para o seu gênio, por ser confundido pela virtude e pelo potencial da humanidade. Uma instituição é a sombra estendida de um único homem; como o Monasticismo o é do eremita Antão; a Reforma Protestante de Lutero; o Quakerismo de Fox; o Metodismo de Wesley; o Abolicionismo de Clarkson. Milton chamou Cipião de “o ápice de Roma”; e toda a história se resume facilmente nas biografias de algumas pessoas resolutas e diligentes.

Permitamos então que cada homem reconheça o seu valor e mantenha suas coisas debaixo dos seus pés. Que ele não espie ou roube, ou que não fuja de seus deveres de um lado ao outro, com o ar de um mendigo, um bastardo ou de um intruso em um mundo que existe para ele. Mas uma pessoa nas ruas, ao não encontrar nenhum valor em si mesma que corresponda à força que construiu uma torre ou uma escultura de um deus de mármore, tal pessoa se sente pobre e insignificante quando os contempla. Para ela, um palácio, uma estátua, um livro raro possuem um ar proibido e alienado, e parecem dizer “Quem é você, Senhor?”. Mas todas essas coisas são suas, pretendentes de sua atenção, suplicantes de suas aptidões que irão aparecer e tomar posse destas coisas. A pintura espera o meu veredito: ela não me comanda, mas vou satisfazer sua demanda por elogios. Existe uma fábula popular de um bêbado que foi pego quase morto em uma rua, carregado para a casa do duque, banhado e vestido, fizeram-no deitar na cama do duque, e, ao acordar, sendo tratado com todas as cerimônias dignas de um duque, foi assegurado de que ele estava louco. Esta fábula é popular devido ao fato de que ela simboliza perfeitamente o estado do homem, que está no mundo meio bêbado, mas de vez em quando ele acorda, exercita a sua razão e descobre que é um verdadeiro príncipe.

Nossa instrução é miserável e bajuladora. Na história, nossa imaginação nos engana. Reino e senhorio, poder e propriedades, são vocabulários mais exagerados que Fulano e Ciclano em uma pequena casa em um dia comum de trabalho; mas os assuntos da vida são os mesmos para ambos; a soma total de ambos é a mesma. Por que toda deferência e consideração por reis e lordes? Suponha que eles sejam virtuosos; por acaso eles esgotaram a virtude? O mesmo risco está associado às suas atitudes privadas hoje como aos passos públicos e reconhecidos destes senhores. Quando homens agirem com idéias originais, o esplendor será transferido das ações dos reis à estes cavalheiros.

É através dos reis que o mundo tem sido guiado, magnetizado os olhos das nações. Por meio deste símbolo colossal, foi ensinado a reverência mútua que cada pessoa deve à outra. Pessoas em todos os lugares suportaram que o rei, o nobre ou o grande proprietário caminhasse entre elas com uma lei própria, que criasse sua própria ordem de valores e invertesse a da população, que pagasse por privilégios não com dinheiro, mas com honra e que representasse a lei em forma física. Tal lealdade rejubilante das pessoas foi o hieróglifo, o quebra-cabeça a ser decifrado do qual, de forma obscura, elas se tornaram conscientes de que possuíam seus próprios direitos e justiças, o direito de homem.

Quando o bem está perto de você, quando tens vida em si mesmo, não viverás por alguma maneira conhecida ou habitual; não seguirás as pegadas de mais ninguém; não verás a face dos homens; não escutarás nenhum nome; o caminho, o pensamento, o bem serão completamente estranhos e novos para você.

O magnetismo que é exercido em toda atitude autêntica é explicado quando indagamos a razão da autoconfiança. A quem é depositada tal confiança? Quem é o Eu original, no qual é assentada uma confiança universal? Qual é a natureza e o poder desta estrela que frustra a ciência, sem paralaxe, sem elementos calculáveis, que emite raios de beleza mesmo nas mais triviais e impuras das ações, mesmo que apareça no menor indício de independência? Tal indagação nos leva a uma origem, que por sua vez é a essência da genialidade, da virtude e da vida, da qual chamamos de Espontaneidade ou Intuição. Denotamos esta sabedoria primária de Intuição enquanto que todos os ensinamentos posteriores são instruções. Nesta força profunda, neste derradeiro fato que não pode ser penetrado por qualquer tipo de análise, todas as coisas encontram uma origem em comum. O sentido da existência que surge, não sabemos como, em horas tranquilas na alma, não é diferente de todo o resto, do espaço, da luz, do tempo, do homem, e com eles compõe uma coisa só, e procede obviamente da mesma fonte da qual procedem também a sua vida e o seu ser. Primeiro compartilhamos a vida pelas coisas que existem e depois vemos nelas as aparências da natureza e esquecemos que compartilhamos da mesma causa. Esta é a fonte da ação e do pensamento. Estes são os pulmões dessa inspiração que deu a sabedoria ao ser humano e que não pode ser negada sem impiedade ou com ateísmo. Repousamos no colo de uma imensa inteligência que nos torna destinatários de sua verdade e agentes de sua atividade. Quando reconhecemos a justiça, quando reconhecemos a verdade, não fazemos nada por conta própria, apenas damos passagem aos raios desta inteligência. Se perguntamos de onde isto vem, se procuramos bisbilhotar a alma que a causa, toda a filosofia está equivocada. Só podemos afirmar a sua presença ou ausência, e nada mais. Todo homem é capaz de distinguir entre atos voluntários da sua mente e suas percepções involuntárias e sabe que deve uma absoluta lealdade à estas percepções involuntárias. Ele pode errar ao expressá-las, mas sabe que estas coisas, como o dia e a noite, não são para serem discutidas. Minhas intencionais ações e aquisições são errantes; mas o mais ocioso dos sonhos, a mais fraca emoção original, exigem minha curiosidade e respeito. Pessoas imprudentes contradizem-se tão facilmente entre a afirmação das percepções e a das opiniões, ou pelo menos muito mais rapidamente; simplesmente porque não conseguem distinguir entre uma percepção e noção. Elas imaginam que eu escolho ver uma coisa outra. Mas percepções não são caprichosas, são fatais. Se vejo alguma peculiaridade no mundo, meus filhos a verão depois de mim e, no devido tempo, toda a humanidade a verá também — mesmo que ninguém a tenha visto antes de mim. Minha percepção é algo tão certa como o sol.

As relações da alma com o espírito divino são tão puras que é profano procurar intervir com alguma ajuda. Quando Deus fala, devemos considerar que ele comunica não uma coisa apenas, mas todas as coisas; preenche o mundo inteiro com sua voz; dispersa luz, natureza, tempo, almas, do centro do pensamento presente; e então o fecha, e o cria tudo novamente. Sempre que uma mente simples recebe uma sabedoria divina, antigas noções enfraquecem — os meios, professores, textos e templos, caem; tal mente vive agora, e absorve o passado e o futuro no presente momento. Todas as coisas tornam-se sagradas pela relação com ela. Todas as coisas são dissolvidas em seus centros pelos desígnios da mente e, no milagre universal, os milagres triviais e particulares desaparecem. Se, portanto, uma pessoa alega que conhece e fala de Deus, e te faz regressar à modalidade de expressão, à fraseologia de alguma nação antiga e apodrecida, em um outro país, em um outro mundo, não acredite nessa pessoa. Seria a pinha melhor que o pinheiro, que é a sua totalidade e a sua realização? Seria o pai melhor que o filho, a quem ele criou de forma madura? De onde vem então, esta idolatria do passado? Os séculos conspiram contra a sanidade e a autoridade da alma. O tempo e o espaço são apenas cores fisiológicas criadas pelos olhos, mas a alma é a luz; seja onde ela está, é dia; seja onde ela estava, é noite; e a história é uma impertinência e uma injúria, não é mais do que uma alegre fábula ou parábola do meu ser e de minha evolução.

O homem é tímido e apologético; ele não anda mais ereto; ele não ousa dizer “Eu penso”, “Eu sou”, mas não hesita em citar algum santo ou sábio. Ele se envergonha diante da folha da grama ou da rosa que floresce. Estas rosas em minha janela não fazem nenhuma referência às rosas anteriores ou melhores que elas; elas são o que são; elas existem com Deus, hoje. Não existe tempo para elas. Existe apenas a rosa; ela é perfeita em todos os momentos de sua existência. Antes que um botão se abra, toda a sua vida se atua; na flor já desabrochada, não existe mais nada; na raiz sem folhas, muito menos. Sua natureza está satisfeita, e ela satisfaz à natureza, sempre da mesma maneira, em todos os momentos. Mas o ser humano posterga ou recorda; ele não vive no momento, mas com os olhos revirados ele lamenta o passado, ou, ignorando as riquezas que o rodeiam, ele coloca-se nas pontas dos seus pés para antecipar o futuro. Ele não consegue ser feliz e forte até que viva com a natureza no presente, acima do tempo.

Insista em você mesmo; nunca imite ninguém.

Isto deveria ser suficientemente evidente e claro. Mas observe quantos intelectos fortes ainda não ousam escutar ao próprio Deus, a menos que ele use uma fraseologia de não sei qual David, ou Jeremias, ou Paulo. Não deveríamos conferir um preço tão alto em alguns poucos textos, ou em algumas poucas vidas. Somos como crianças que repetem mecanicamente as afirmações das avós e dos tutores e, à medida que envelhecemos, à medida que tenhamos a chance de ver pessoas de talento e caráter, recolhemos dolorosamente as exatas palavras que eles proferiram; e depois, quando adotamos o ponto de vista daqueles que pronunciaram estas mesmas afirmações, nós os entendemos e estamos dispostos a deixar as palavras de lado, para que, a qualquer momento, possamos usá-las quando a ocasião for apropriada. Se vivemos de forma autêntica, veremos de forma autêntica. É tão fácil para uma pessoa forte ser forte, como é para uma fraca ser fraca. Quando adquirimos novas percepções, livraremos alegremente da memória seus tesouros acumulados como entulho velho. Quando uma pessoa vive com Deus, sua voz será tão doce como o murmúrio do riacho ou o farfalhar do milharal.

E por fim, a maior das verdades sobre este assunto em particular ainda não foi dita; e provavelmente não pode ser dita; dado que tudo que dizemos é uma memória distante de nossa intuição. Este pensamento, do qual estou perto de expressar, é este: quando o bem está perto de você, quando tens vida em si mesmo, não viverás por alguma maneira conhecida ou habitual; não seguirás as pegadas de mais ninguém; não verás a face dos homens; não escutarás nenhum nome; o caminho, o pensamento, o bem serão completamente estranhos e novos para você. Os exemplos e as experiências serão excluídos. Não siga o caminho que possui o homem como seu fim, mas sim aquele que o tem como sua origem. Todas as pessoas que já existiram são seus ministros esquecidos. O medo e a esperança são iguais em suas bases. Existe algo de ordinário mesmo na esperança. Nesta hora iluminada, não existe nada que pode ser digno de gratidão, nem propriamente de prazer. A alma erguida sobre a paixão contempla a identidade e a origem eterna, ela percebe a auto-existência da Verdade e da Justiça, e se acalma ao saber que todas as coisas estão bem. Os vastos lugares da natureza, o Oceano Atlântico, o Mar do Sul — os longos intervalos de tempo, anos, séculos — nada disso importa. Isto é o que sinto e o que acredito que reforça todos os anteriores estados de vida e circunstâncias, da mesma maneira que reforça meu presente, e o que se chama de vida, e o que se chama de morte.

A vida é o que vale, não o “ter vivido”. O poder cessa em um instante de repouso; ele reside no momento de transição de um estado antigo à um novo, quando nos lançamos a um alvo. Este é um fato que o mundo detesta, que a alma torna-se; pois assim o passado desintegra-se para sempre, converte todas as riquezas em pobreza, toda a reputação em vergonha, confunde o santo com o patife, coloca igualmente Jesus e Judas lado a lado. Por quê, então, falamos de autoconfiança? Porque enquanto a alma está presente, não existirá poder seguro, mas poder ativo. Falar de confiança é uma pobre maneira de se expressar. Melhor falar de quem confiamos, porque são os que agem. Quem possui mais autoridade do que eu me domina, mesmo que não mova um dedo sequer. Ao seu redor devo orbitar pela gravidade dos espíritos. Quando falamos da verdade eminente, imaginamos que é retórica. Não vemos que a virtude é Elevação e que uma pessoa, ou uma companhia de pessoas, maleável e permeável por princípios, pela lei da natureza devem dominar e comandar todas as cidades, nações, reis, ricos, poetas que não o são.

Este é o fato fundamental do qual chegamos tão rapidamente, como em todo outro tema: a solução de tudo no sempre abençoado Um. Auto-existência é o atributo da Certeza Suprema, e constitui a medida do bem de acordo com a maneira com que se envolve nas formas mais inferiores. Todas as coisas verdadeiras o são de acordo com a quantidade de virtudes que contém. O comércio, a agricultura, a caça, a pesca, a eloquência da guerra, a importância pessoal são algumas dessas coisas, e merecem meu respeito como exemplos de sua presença em ações impuras. Observo a mesma lei operando na natureza em prol da conservação e do crescimento. O poder é, na natureza, a medida essencial da justiça. A natureza não tolera em seus domínios nada que não possa ajudar a si mesma. O nascimento e a maturação de um planeta, seu equilíbrio e órbita, a árvore torcida endireitando-se contra um vento forte, os recursos vitais de cada animal e vegetal, são demonstrações da autossuficiência e portanto, de uma alma que confia e depende apenas de si mesma.

Assim, tudo se concentra: que não vaguemos por aí, mas que nos habituemos com a causa. Que surpreendamos a multidão intrusa das pessoas, dos livros e das instituições, com uma simples declaração do fato divino. Ordenemos aos invasores que tirem os sapatos de seus pés, pois Deus está aqui dentro. Deixemos que nossa simplicidade os julgue, e nossa docilidade à nossa própria lei demonstre a pobreza da natureza e do destino por trás das nossas riquezas nativas.

Mas agora somos uma plebe. O homem não reverencia o homem, nem seu gênio é recomendado que fique em sua casa para comunicar-se com seu oceano interior, mas o recomendam que vá ao exterior para implorar por um copo d’água dos vasos de outras pessoas. Devemos ir sozinhos. Gosto do silêncio da igreja antes do começo da missa, mais do que qualquer sermão. O quão afastadas, quão tranquilas, quão puras parecem as pessoas, rodeadas cada uma com um recinto ou um santuário. Que continuemos assim, sentados! Por que deveríamos assumir os erros de nosso amigo, ou de nossa esposa, ou de nosso pai, ou de nosso filho, somente porque eles sentam ao redor de nossa lareira, ou porque se diz que temos o mesmo sangue? Todas as pessoas têm o meu sangue, e eu tenho o de todos. Não é por isso que vou adotar suas petulâncias ou loucuras, fazendo com que me sinta envergonhado por agir desta maneira. Porém, o seu isolamento não deve ser mecânico, mas espiritual, ou seja, deve ser uma elevação. De vez em quando, o mundo inteiro parece estar em conspiração para te importunar com ninharias autoritárias. Um amigo, um cliente, uma criança, a doença, o medo, a necessidade, a caridade, todas batem à porta de sua sala de uma vez só e dizem “Venha conosco.” Mas mantenha o teu estado; não se junte à esta confusão. O poder que as pessoas possuem de me irritar, eu lhes dou por uma frágil curiosidade. Nenhuma pessoa pode aproximar-se de mim que não seja por meus atos. “O que amamos é tudo o que temos, mas por desejo privamos a nós mesmos do amor.”

Se não podemos nos elevar de uma vez às santidades da obediência e da fé, que pelo menos resistamos às nossas tentações; que entremos em um estado de guerra e acordemos Thor e Odin, a coragem e a lealdade, em nossos peitos saxões. Nestes tempos de hipocrisia, isso deve ser feito falando a verdade. Contenha as hospitalidades afeições mentirosas. Não viva mais de acordo com a expectativa dessas pessoas enganadas e enganadoras com quem conversamos. Diga a elas: “ó pai, ó mãe, ó esposa, ó irmão, ó amigo, até agora tenho vivido segundo as aparências. De agora em diante pertenço à verdade. Quero que saibas que a partir de agora não obedecerei nenhuma lei inferior à lei eterna. Não terei nenhum convênio, mas estarei por perto. Me esforçarei para alimentar meus pais, para apoiar minha família, para ser o recatado marido de uma esposa, — mas essas relações devo cumprir diante de uma maneira nova e sem precedentes. Renuncio aos seus costumes. Devo ser eu mesmo. Não posso mais me renunciar por você, nem você por mim. Se podes me amar por quem eu sou, seremos muito felizes. Se não podes, ainda procurarei merecer o seu amor. Não esconderei meus gostos ou minhas aversões. Por isso, confiarei que o que é profundo é sagrado; que farei, sob o sol e a lua, tudo que me alegre internamente e o que o meu coração apontar. Se fores um nobre, te amarei; se não fores, não machucarei nem você nem a mim mesmo com atenções hipócritas. Se fores verdadeiro, mas não da mesma verdade que a minha, adira ao seus companheiros; eu buscarei os meus. Não faço isso de forma egoísta, mas com humildade e verdade. É do interesse, seu e meu, e de todos os homens, viver com a verdade, por mais que tenhamos vivido na mentira. Isso soa severo hoje? Em breve amarás o que é ditado por sua natureza, bem como a minha e, se seguimos a verdade, sairemos seguros no fim”. “Mas agindo assim, causarás dor a estes amigos”. Sim, mas eu não posso vender minha liberdade e meu poder para salvar a sua sensibilidade. Além disso, todas as pessoas possuem seus momentos de razão, quando olham e examinam a região da absoluta verdade; e então me darão razão, e farão o mesmo.

“O que amamos é tudo o que temos, mas por desejo privamos a nós mesmos do amor.”

A população acredita que a sua rejeição das normas populares é uma rejeição de todas as normas e que é um mero antinomianismo; e o sedutor ousado usará o nome da filosofia para embelezar seus crimes. Mas a lei da consciência resiste. Existem dois confessionários, e em algum deles devemos nos confessar. Poderás cumprir teu conjunto de deveres ao absolver-te em uma maneira direta ou reflexiva. Considere se satisfizeste as suas relações com seu pai, sua mãe, seu primo, seu vizinho, sua cidade, seu gato e seu cachorro; ou se algum deles pode te repreender. Mas também posso negligenciar esta norma reflexiva, e absolver-me a mim mesmo. Tenho minhas próprias exigências inflexíveis em um círculo perfeito. Ele nega o nome do dever a muitos ofícios que são chamados de deveres. Mas se posso me libertar de suas dívidas, poderei renunciar ao código popular. Se alguém imagina que esta lei é indulgente, que tente seguir seu mandamento um dia.

E sinceramente, é exigido algo de divino naquele que renuncia às causas e aos motivos comuns da humanidade, e que se aventura a confiar em si mesmo para ser o seu capataz. Seu coração será elevado, sua vontade será fiel, sua visão será clara, para que possa com boa determinação ser a doutrina, a sociedade, a lei, para si mesmo, que um simples propósito possa ser para ele tão forte como a necessidade é para os outros!

Qualquer homem que considera os aspectos presentes daquilo que por distinção é chamado de sociedade, verá a necessidade desta ética. A fibra e o coração do ser humano parecem ter sido retirados, e nós nos tornamos tímidos e abatidos chorões. Temos medo da verdade, do destino, da morte e temos medo de nós mesmos. Nossa era não produz grandes homens. Queremos homens e mulheres que renovem a vida e nosso estado social, mas vemos que a maioria das naturezas dos indivíduos são insolventes, incapazes de satisfazer suas próprias necessidades, que elas possuem uma ambição desproporcional em relação à sua força prática e se apoiam ou imploram pelo dia e pela noite sem parar. Nossa vida doméstica é mendicante, não escolhemos nossas artes, nossas ocupações, nossos casamentos, nossa religião, mas foi a sociedade que as escolheu para nós. Somos soldados de salão. Esquivamos a áspera batalha do destino, local onde a força é concebida.

Se nossos jovens falham em seus primeiros empreendimentos, perdem toda a esperança. Se um jovem comerciante falha, as pessoas dizem que está arruinado. Se o maior dos gênios estuda em uma de nossas universidades e, no ano seguinte, não estiver trabalhando em um escritório nas cidades ou subúrbios de Boston ou Nova Iorque, parece a ele e aos seus amigos que ele está correto em estar desanimado e em lamentar-se pelo resto de sua vida. Entretanto, um resoluto rapaz de Nova Hampshire ou de Vermont, que por sua vez experimenta todas as profissões, que lidera, cultiva, vende, mantém uma escola, prega sermões, edita um jornal, vai ao Congresso, compra um distrito e por aí em diante, em anos consecutivos, e sempre como um gato, cai sobre seus pés, vale por uma centena desses bonecos urbanos. Ele anda lado a lado com sua época e não se envergonha por não “estudar uma profissão”, porque ele não posterga a sua vida, mas sim a vive. Ele não tem uma única chance, mas centenas delas. Que um Estóico descubra os recursos do ser humano e diga às pessoas que elas não são salgueiros curvados, mas que podem e devem desapegar-se; que com o exercício da autossuficiência, novos poderes aparecerão; que o homem é a palavra em forma de corpo, nascido para espalhar a cura às nações, que ele deveria se sentir envergonhado pela nossa compaixão, e que no momento que ele age a partir de si mesmo, jogando as leis, os livros, as idolatrias e os costumes pela janela, não sentimos mais pena, mas o agradecemos e o reverenciamos — e este mestre restaurará a vida em esplendor, e fará com que seu nome seja estimado por toda a história.

É fácil ver que uma maior autossuficiência causará uma revolução em todos os ofícios e relações entre os homens; em sua religião; em sua educação; em suas buscas; em suas maneiras de viver; em suas associações, em suas propriedades; em suas visões especulativas.

1 —As preces que os homens deixaram-se levar! Aquilo que chamam de ofício religioso não é algo tão valente nem tão viril. A prece almeja o exterior e pede para que algum acréscimo estrangeiro venha por meio de uma virtude exterior, e se perde nos labirintos sem fim do natural e do sobrenatural, do mediador e do miraculoso. A prece que almeja por um benefício em particular, — qualquer coisa que seja inferior do que o bem geral — é perversa. A prece é a contemplação dos fatos da vida sob o mais elevado ponto de vista. É o monólogo de uma alma observadora e jubilante. É o espírito de Deus afirmando a bondade de suas obras. Mas a prece como meio de conquistar um fim privado é uma mesquinharia e um roubo. Supõe um dualismo e não uma unidade na natureza e na consciência. No momento que uma pessoa é uma com Deus, ela não implorará. Ela então verá a prece em toda a sua glória. A prece do fazendeiro inclinado em seu campo para capiná-lo, a prece do remador inclinado pelo movimento do seu remo, são verdadeiras preces escutadas por toda a natureza, mesmo que suas consequências sejam ordinárias. Caratach, na Bonduca de Fletcher, quando é advertido para que investigue a mente do deus Audato, responde:

“Seus propósitos ocultos se encontram em nossos esforços;

Nossos valores são nossos melhores deuses.”

Nossos arrependimentos são outra forma de falsa prece. O descontentamento é a falta da autossuficiência; é a debilidade da nossa vontade. Lamente calamidades, se puderes de algum modo ajudar a vítima; caso contrário, concentre-se em seu trabalho e logo o mal começará a ser reparado. Nossa piedade é igualmente desprezível. Nos sentamos com os que choram tolamente e choramos com sua companhia, ao invés de comunicar-lhes a verdade e a saúde em bruscos choques elétricos, os colocando novamente em comunicação com sua própria razão. O segredo da fortuna é a alegria em nossas mãos. O homem que ajuda a si mesma será sempre bem recebido por deuses e homens. Para ele, todas as portas se abrirão: todas as bocas o saúdam, todas as honras o coroam, todos os olhos o seguem com desejo. Nosso amor vai ao seu encontro e o abraça, porque ele não o necessita. Com solicitude e apologia, nós o mimamos e o celebramos, porque ele se mantém em seu caminho e menospreza nossa desaprovação. Os deuses o amam porque os homens o odiaram. “Ao mortal perseverante,” disse Zoroastro, “os abençoados Imortais o ajudam com rapidez.”

Da mesma maneira que as preces das pessoas são a doença da vontade, os credos são as doenças do intelecto. Dizem, da mesma forma que aqueles tolos Israelitas: “Que Deus não fale conosco, para que não morramos. Fale você, ou qualquer outro, e obedeceremos.” Em todo o lugar, sou impedido de me encontrar Deus em meus irmãos, porque eles fecharam as portas de seus templos e recitam fábulas de seus irmãos, ou do Deus de seus irmãos. Toda mente em uma nova pessoa é uma nova classificação. Se tal mente prova ser uma mente de poder incomum, uma mente de Locke, de Lavoisier, de Hutton, de Bentham, de Fourier, ela impõe sua classificação a outras pessoas e ah! aqui jaz um novo sistema. Sua bondade é proporcional à profundidade do pensamento e ao número de objetos que ela toca e que põe ao alcance do pupilo. Mas principalmente nos credos e nas igrejas isso é superficial, pois também são classificações de alguma mente poderosa que atua sobre o pensamento elementar do dever e a relação do ser humano com o Superior. Assim é o caso do Calvinismo, do Quakerismo, do Swedenborgianismo. O pupilo tem o mesmo prazer em subordinar tudo à essa nova terminologia, como uma jovem que acabou de aprender botânica e que vê um mundo novo e estações novas a cada passo. Chegará um momento que esse pupilo notará que seu poder intelectual cresceu ao estudar a mente de seu mentor. Mas em todas as mentes desequilibradas, a classificação é idolatrada, tomada como um fim e não como um meio rapidamente esgotável, fazendo com que os limites do sistema e os limites do universo se unam no horizonte remoto; a estas mentes, as luminárias do céu parecem estar sustentadas pelo arco criado por seu mentor. Elas não conseguem imaginar como vocês, os estrangeiros, têm algum direito de ver o que elas vêem; “De algum modo, vocês nos roubaram a luz.” Estas mentes ainda não perceberam que a luz, não sistemática, indomável, invadirá qualquer espaço, inclusive ao seus próprios. Deixe que gritem por um instante e a chamem de sua. Se fores honesto e se praticares o bem, em breve seu lindo e novo curral será muito estreito e baixo, ele irá quebrar, entortar, apodrecer e sumir e a luz imortal, jovem e alegre, de milhões de corpos, de milhões de cores irradiará por todo o universo como se fosse a primeira manhã.

2 — É pela necessidade de uma auto-cultura que a superstição de Viajar, cujos ídolos são a Itália, a Inglaterra, o Egito, segue fascinando todos os Americanos instruídos. Aqueles que fizeram a Inglaterra, a Itália ou a Grécia serem veneráveis na imaginação das pessoas, o fizeram mantendo-se exatamente onde estavam, como um eixo terrestre. Nas horas mais viris, sentimos que o dever é o nosso lugar. A alma não é nenhum viajante; o sábio está quieto em sua casa; e tornará as pessoas sensíveis pela expressão de seu semblante, e será o missionário da sabedoria e da verdade, e visitará cidades e pessoas como um soberano e não como um intruso ou um criado.

Que um Estóico descubra os recursos do ser humano e diga às pessoas que elas não são salgueiros curvados, mas que podem e devem desapegar-se; que com o exercício da autossuficiência, novos poderes aparecerão.

Não tenho nenhuma objeção grosseira às viagens ao redor do globo, com propósitos artísticos, de estudo e de benevolência, contanto que o ser humano seja primeiramente domesticado, ou para que não viaje ao exterior com a esperança de encontrar algo maior do que ele já conhece. Aquele que viaja para se divertir, ou para conseguir algo que não possui, viaja para longe de si mesmo e sendo jovem, envelhece entre coisas antigas. Em Tebas, em Palmira, sua vontade e sua mente envelheceram tanto como estas cidades. Ele carrega ruínas às ruínas.

Viajar é o paraíso dos tolos. Nossas primeiras viagens nos mostram a indiferença dos lugares. Em casa, eu sonhava que em Nápoles, em Roma, eu poderia ser intoxicado com a beleza e que perderia minha tristeza. Fiz minhas malas, me despedi de meus amigos e embarquei, e enfim acordei em Nápoles, e lá, ao meu lado, se encontrava a dura verdade e o meu triste eu, implacável, idêntico àquele do qual me despedi. Busco o Vaticano e os palácios. Busco me intoxicar com lugares e sugestões, mas não fico intoxicado. Meu gigante me acompanha em qualquer lugar que eu vá.

3 — Mas este furor de viajar é um sintoma de uma profunda insolação que afeta todas as ações intelectuais. O intelecto é preguiçoso, e nosso sistema educacional fomenta a inquietação. Nossas mentes viajam quando nossos corpos são forçados a ficar em uma sala. Nós imitamos; e o que é a imitação se não a viagem da mente? Nossas casas são construídas com um gosto estrangeiro; nossas prateleiras são enfeitadas com ornamentos estrangeiros; nossas opiniões, nossos gostos, nossas faculdades, tendem e seguem o Passado e o Distante. Foi a alma que criou as artes, não importa o lugar que elas floresceram. Foi em sua própria mente que o artista buscou seu modelo. Foi uma aplicação de seu próprio pensamento ao que deveria ser feito e às condições a serem observadas. E porque precisamos copiar o modelo Dórico ou Gótico? A beleza, a conveniência, a grandeza do pensamento e a expressão exótica estão tão perto de nós como de qualquer outro, e se o artista Americano estudar com amor e esperança exatamente o que deve fazer, considerando o clima, o solo, a duração do dia, a necessidade do povo, o hábito e a forma do governo, ele criará uma casa da qual todas essas coisas se encaixarão perfeitamente, e o gosto e o sentimento também serão satisfeitos.

“A sociedade é uma onda. A onda se move para frente, mas a água que a compõe, não. A mesma partícula não se levanta do vale em direção à crista. Sua unidade é apenas fenomenal. As pessoas que constroem uma nação hoje, morrem amanhã e suas experiências se vão com ela.”

Insista em você mesmo; nunca imite ninguém. Podes expor seu próprio dom em qualquer instante, com a força acumulada de uma vida inteira de cultura; mas do talento adotado de outra pessoa; tens somente uma posse pela metade. Aquilo que cada um o faz de melhor, ninguém além do seu Criador pode lhe ensinar. Nenhuma pessoa sabe ainda o que é, ou do que é capaz, até demonstrar. Onde está o mestre que poderia ter ensinado a Shakespeare? Onde está o mestre que poderia ter instruído Franklin, ou Washington, ou Bacon, ou Newton? Todo grande homem é único. O cipionismo de Cipião é exatamente a parte que ele não pode tomar emprestado. Um Shakespeare nunca poderá ser criado pelo estudo de Shakespeare. Faça aquilo que lhe foi atribuído, e não poderás esperar muita coisa ou ousar por demasiado. Neste momento há para você uma declaração valente e grandiosa como a colossal talhadeira de Fídias, a espátula dos Egípcios, a caneta de Moisés ou de Dante, mas completamente diferente de todas elas. Provavelmente seja impossível que a alma que for por completo rica e eloquente, seja digna de repetir a si mesma; mas se puderes escutar o que esses patriarcas dizem, certamente poderás responder no mesmo tom de voz; porque o ouvido e a língua são dois órgãos de uma mesma natureza. Habite nas regiões mais nobres e simples de sua vida, obedeça seu coração e reproduzirás o Mundo Antigo.

4 — Assim como nossa Religião, nossa Educação, nossa Arte se espelham no estrangeiro, nosso espírito de sociedade também o faz. Todas as pessoas vangloriam-se pela melhora da sociedade, mas ninguém de fato a aprimora.

A sociedade nunca evolui. Ela retrocede tão rápido em um lado como avança no outro. Ela sofre mudanças contínuas; é bárbara, é civilizada, é Cristã, é rica, é científica; mas esta mudança não é aperfeiçoamento. Para cada coisa que se agrega, algo é tirado. A sociedade adquire novas artes e perde velhos instintos. Que grande contraste existe entre o Americano bem-vestido, que lê, que escreve e que pensa, com um relógio, um lápis e uma conta de câmbio em seu bolso, e o Neozelandês nu, cuja propriedade é um porrete, uma lança, uma manta e um décimo de uma cabana para dormir! Mas compare a saúde destes dois homens e verás que o homem branco perdeu a sua força aborígene. Se o que os viajantes nos contaram é verdade, golpeie o selvagem com um machado e, em um dia ou dois, a ferida se curará como se o golpe fosse um sopro suave, e este mesmo sopro mandará o homem branco para o seu túmulo.

O ser humano civilizado construiu a carruagem, mas já não usa mais os seus pés. Se apoia em muletas, porque não pode apoiar-se em músculos. Possui um bonito relógio Genovês, mas não consegue calcular a hora pelo sol. Possui um almanaque náutico de Greenwich, e por isso está seguro de ter a informação ao seu alcance, mas não pode reconhecer uma única estrela quando sai às ruas. Ele não observa o solstício; sabe pouco do equinócio; e o brilhante calendário anual carece de um indicador em sua mente. Suas agendas enfraquecem sua memória; suas bibliotecas sobrecarregam sua inteligência; o escritório de seguros aumenta o número de acidentes; e poderíamos perguntar se as máquinas não o restringem; se não perdemos alguma energia pela sofisticação, por um Cristianismo impregnado em formas e instituições, pelo pouco vigor da virtude selvagem. Como cada Estóico foi um Estóico; na Cristandade, onde está o Cristão?

Não há maior desacordo na norma moral do que nas normas de grandeza. Não há mais grandes homens hoje como havia antes. Podemos observar uma igualdade singular entre grandes homens dos primeiros e dos últimos séculos; toda a ciência, a arte, a religião e a filosofia do século XIX não podem educar homens maiores do que os heróis de Plutarco, três, quatro ou vinte séculos atrás. A raça humana não progride com o tempo. Phócion, Sócrates, Anaxágoras, Diógenes, são grandes homens, mas não nos deixaram nenhuma classe de pessoas como eles. Aquele que realmente é de sua classe, não será chamado por seus nomes, mas sim por seu próprio, e por sua vez fundará uma seita. As artes e as invenções de cada era são somente costumes e não revigoram as pessoas. Os danos das máquinas podem compensar seus benefícios. Hudson e Bering conquistaram tanta coisa com seus barcos de pesca, que impressionaram Parry e Franklin, cujos equipamentos esgotaram os recursos da ciência e da arte. Galileu, com um óculos para a ópera, descobriu uma série de fenômenos celestiais mais esplêndida do que qualquer outro desde então. Colombo descobriu o Novo Mundo com um barco descoberto. É curioso observar a destruição e o desuso periódico das máquinas e dos meios que foram criados com amplos elogios alguns anos ou séculos atrás. A grande genialidade sempre retorna às essências das pessoas. Reconhecemos as melhorias da arte da guerra entre os triunfos da ciência, mesmo assim, Napoleão conquistou a Europa na base do bivaque, consistindo em recorrer-se apenas à vontade e exonerá-la de todos os auxílios. O Imperador acreditava ser impossível criar um exército perfeito, como diz Las Casas, “sem abolir nossas armas, armazéns, comissários e carruagens, a menos que, imitando o costume Romano, o soldado recebesse sua porção de milho, para moer em seu moinho e cozinhar seu próprio pão.”

A sociedade é uma onda. A onda se move para frente, mas a água que a compõe, não. A mesma partícula não se levanta do vale em direção à crista. Sua unidade é apenas fenomenal. As pessoas que constroem uma nação hoje, morrem amanhã e suas experiências se vão com ela.

E assim a confiança na Propriedade, incluindo a confiança nos governos que a protege, é a necessidade da autossuficiência. As pessoas têm desviado o olhar delas mesmas para coisas externas por tanto tempo, que acabaram por estimar as instituições religiosas, eruditas e civis como guardas da propriedade, e desaprovam que as ataquem, porque sentem que são ataques à propriedade. As pessoas medem seus apreços pelas outras pelo que elas têm, e não pelo que são. Mas um homem cultivado envergonha-se de sua propriedade, já que sente um novo respeito por sua natureza. Especialmente, ele acaba odiando o que possui, se vê que é um acidente, se o obteve por herança, ou presente ou crime; então sente que não o possui; porque não lhe pertence, não possui raízes pessoais e simplesmente repousa ali, porque nenhuma revolução ou ladrão irá levá-lo. Mas aquilo que um homem é, sempre o adquire por necessidade, e o que ele adquire é propriedade viva, propriedade que não espera acenos de governantes, das massas, de revoluções, do fogo, da tempestade ou da falência, mas perpetuamente se renova onde quer que o homem respire. “Tua porção ou parte da vida”, disse o Califa Ali, “é a busca de si mesmo; portanto não se esforce buscando outras coisas.” Nossa dependência desses deuses exteriores nos levou ao respeito escravizador pelos números. Os partidos políticos se reúnem em imensas convenções quanto maior for a concorrência e com cada novo grito de proclamação “a delegação de Essex! Os Democratas de Nova Hampshire! Os Whigs de Maine!”, o jovem patriota se sente mais forte do que antes diante de mil novos olhos e braços. Da mesma maneira os reformistas convocam convenções, votam e decidem em multidão. Amigos! Não é assim que Deus se fará digno a habitar em você, mas sim de forma completamente oposta. Somente quando o homem deixar de lado qualquer ajuda externa, e manter-se de pé, que o vejo como alguém forte e que prevalece. Ele enfraquece com cada novo recruta sob sua bandeira. Um homem não é melhor do que uma cidade? Não exija nada de ninguém, e em meio às infinitas mudanças, seus princípios serão a única coluna que sustentará tudo que te rodeia. Aquele que sabe que o poder nasce internamente, que ele é fraco porque tem procurado pelo bem fora de si em todos os lugares, e ao perceber isso, joga-se por completo em seus pensamentos, imediatamente coloca-se de pé, domina seus membros e faz milagres; da mesma maneira que um homem que ergue-se sobre seus pés é mais forte que um homem que para sobre sua cabeça.

Assim, use tudo o que for abençoado pela deusa Fortuna. A maioria dos homens tentam a sorte com ela, ganham tudo, perdem tudo, enquanto sua roda do destino continua girando. Mas considere estes ganhos como ilícitos, e lide com a Causa e o Efeito, os chanceleres de Deus. Trabalhe e adquira coisas com a Vontade, trancarás a Roda da Fortuna, e já não terás medo de seus giros. Uma vitória política, um aumento de rendimentos, uma recuperação de uma doença, um retorno de um amigo ausente, ou se algum outro evento favorável eleva teu espírito e pensas que bons tempos estão a caminho. Não acredite nisso. Nada pode te trazer paz além de você mesmo. Nada pode te trazer paz além do triunfo dos princípios.

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