Cristianismo sem Lágrimas

Lições de G.K. Chesterton sobre nossa indignação perante a falta de “bom senso” no mundo moderno

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
6 min readAug 31, 2019

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O mandamento de Cristo é impossível, mas não insano. É, na verdade, sanidade pregada a um bando de lunáticos.

— Chesterton

Esta frase de Chesterton sempre volta à minha cabeça quando observo reclamações sobre algumas atitudes consideradas como desumanas por parte de figuras artísticas ou políticas. O discurso predominante em boa parte do centro político é de um forte desejo por uma sociedade justa, igualitária, secular, que respeite o próximo, que consiga combater a pobreza, a miséria e que se preocupe com o bem estar de seus cidadãos — um certo código moral que deveria ser considerado como absoluto. Reconhecemos que tal objetivo é difícil de ser alcançado, mas temos dificuldade de realmente entender o porquê.

Estava conversando com uma amiga outro dia sobre este tema. Ela de fato almeja este cenário de uma sociedade justa e vê o atual governo como um enorme obstáculo para concretizarmos este cenário. Ela passou um bom tempo esbravejando sobre cada absurdo cometido pelo presidente nos últimos meses, sobre quão revoltante é ter um representante que não a representa, um líder que não compartilha de suas visões sobre a importância do meio ambiente, etc. Sugeri à ela que imaginasse o próprio Jair Bolsonaro sentado àquela mesa naquele momento. Perguntei se ela seria capaz de tratá-lo de forma cordial, independentemente de suas ações passadas. Perguntei se seria capaz de olhar em seus olhos, listar tudo aquilo que ela acreditava que ele havia errado e… perdoá-lo. A resposta que tive foi a mesma resposta obtida quando fiz a mesma pergunta à um crítico ferrenho do governo Lula no cenário onde o ex-presidente fosse o convidado. A resposta foi hesitante e profundo “não”.

A justificativa em ambos os casos foi baseada em duas premissas: de que eles cometeriam erros novamente após a ocasião e de que seus erros eram tão gravíssimos ao ponto de que eles não deveriam receber tal perdão. É compreensível que nos revoltemos com um chefe de estado que acreditamos que esteja prejudicando as perspectivas de longo prazo de nosso país. É compreensível que desejemos que criminosos sejam punidos, que brutamontes sejam reprimidos por bárbaros atos.

Não estou advogando por uma sociedade com impunidade. Este ensaio foi escrito com a premissa de que somos capazes de diferenciar impunidade do perdão. Nossa civilização foi criada em base de instituições legais e um sistema judiciário que servem para fiscalizar e punir aqueles que transgridem as leis que regem nossa convivência. O ponto aqui é que estas instituições são inúteis se somos incapazes de nos restringir de atirar pedras naqueles que cometem erros. Este ensaio não é sobre a (im)punidade do sistema, mas sim como nós, indivíduos, reagimos de forma pessoal a pessoas que agem de forma contrária ao que consideramos como correto.

O desejo de uma sociedade regada por um absoluto código moral cai por terra quando analisamos este exercício mental. Temos uma enorme tendência a relativizar erros universais e universalizar comportamentos temporários. Temos uma enorme dificuldade de perdoar aqueles que buscam o perdão. Perdoar aqueles que nem mesmo reconhecem seus erros, exige um esforço divino. O sonho de uma sociedade onde todos tratam todos de forma justa porém, existe há séculos. Ele tem o nome de Cristianismo.

Boa educação com os concidadãos, respeito ao próximo e justiça podem parecer como coisas óbvias para serem buscadas, mas elas são óbvias porque carregamos dois mil anos de cultura cristã em nossas costas. O paradoxo do Cristianismo é que embora estes valores sejam óbvios como essenciais para nossa convivência em sociedade, nós humanos temos uma dificuldade colossal de praticá-los. Eis que a tentativa de inseri-los no secularismo torna-se ainda mais frágil. Entre o Cristianismo e o ideal de uma sociedade secular existe uma diferença crucial que torna a remoção singular de valores cristãos de sua filosofia algo impossível: o ideal absoluto da Bondade. O código moral absoluto, tão desejado, só pode ser ensinado sob a perspectiva do Divino Bem.

Não é que o ideal Cristão tenha sido tentado e considerado como desejável; ele foi considerado como difícil e deixado para ser tentado.

— Chesterton

Qual a origem da dificuldade do Cristão? O que torna essa fascinante teologia algo impossível de ser praticado, impossível até mesmo para a própria Igreja? Qual é este eterno inconveniente que fez São Nilos do Sinai já no século V. almejar pelo retorno à vida abençoada dos primeiros monges? De onde vem esta dor cristã que fez com que o secularismo humanista tenha sido designado por Aldous Huxley como “Cristianismo sem Lágrimas”?

O Caminho do Cristão exige um constante e tortuoso esforço de auto-reflexão. É muito fácil atirar a pedra. É extremamente desagradável admitirmos que nós também merecemos o apedrejamento pelos erros que nós cometemos. A infinita luz do Divino absoluto traz à tona nossas próprias falhas e fraquezas, nos levando à conclusão de que não somos diferentes daqueles que julgamos em um instante; que não somos fortes o suficiente para abandonarmos nosso ego e ignorar uma ilusória dor que nasceu e morreu no passado. Reconhecer, aceitar e perdoar nossos erros e falhas de forma instantânea exige uma energia sobrenatural e assim, deixamos que estes arrependimentos se acumulem nos cantos sombrios de nossas mentes, como um armário de tralhas, até que mofo e baratas nos obriguem a abri-lo e lidar com tanta sujeira de uma vez só.

Mas o inesperado convite para abrirmos o porão empoeirado e obscuro de nossas mentes é rechaçado de primeira. Não queremos parecer fracos perante os jogos de status que permeiam o mundo temporário. Não queremos cometer erros, não queremos nos contradizer. Queremos acertar o futuro, queremos culpar aqueles que serão presos amanhã para poder dizer com orgulho “eu falei”. Porém, da mesma maneira que o pai de forma silenciosa vê o filho cair da bicicleta e machucar-se e assim ensina-o sucessivamente a andar sobre duas rodas, apenas para vê-lo capaz de fazê-lo sozinho, Cristo também foi apedrejado por escancarar nossas fraquezas a céu aberto, e preferiu sofrer para que a lição fosse registrada de uma vez por todas que o que vale é o aprendermos com nossos erros e não estar correto.

O Caminho do Cristão é o Jogo Infinito por definição. Não há início, ou fim do Caminho porque não podemos atingir a perfeição. Porque só podemos aprender com nossos eternos e recorrentes erros. Erro é o que nos torna humanos. Erro é o que moldou a evolução da vida ao longo de bilhões de anos. Nós só estamos aqui devido aos infinitos erros que inúmeras vidas cometeram muito antes do Primeiro Homem caminhar por aqui. Assim, estar atento aos nossos próprios erros nos torna mais aptos a mudarmos quando a realidade exige alguma flexibilidade por nossa parte. Da mesma forma, nos torna mais compreensíveis com aqueles que de alguma forma cometeram algum ato que consideraríamos como “imperdoável”.

É o Jogo Infinito porque não veremos o mundo entrar em um comum acordo sobre como conviver uns com os outros de forma pacífica em nossas vidas. Porque exige um salto de fé de que O Caminho é a forma correta de se viver, de que a melhor coisa que podemos fazer neste mundo é tentar nos tornar melhores indivíduos, maridos, esposas, pais, filhos, amigos para que talvez mais pessoas juntem-se a nós nesta árdua e tortuosa estrada.

O Cristianismo foi acusado, de forma simultânea, de ser otimista demais quanto ao universo e de ser pessimista demais quanto ao mundo.

— Chesterton

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