Exuberância Pessoal

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
Published in
11 min readOct 1, 2018
“Bonaparte Before the Sphinx”, Gerome (1868)

A situação atual da civilização, como qualquer situação anterior a esta, provém de inúmeras circunstâncias específicas, da união e da separação de incontáveis forças históricas e temporais. Estudar o presente requer a consideração majestosa do passado. Isolar situações históricas e atribuí-las como causa mor de certos incômodos presentes é ignorar nossa própria ignorância perante ao desconhecido. Cem mil anos de evolução e o ser humano mal consegue compreender o nível da complexidade da vida, da sociedade e do universo. Há uma colossal quantidade de fatores que contribuíram quase igualmente para que você leitor esteja debruçado sobre estas palavras neste momento. Alterar ou remover qualquer um deles é modificar nossa própria existência.

Da língua da qual este ensaio vos é apresentado ao ambiente ao seu redor, dos pixels de sua tela à tinta do seu papel, dos seus olhos que saltitam de palavra em palavra aos neurônios que processam e refletem qualquer significado extraído daqui, de galáxias e buracos negros às mais misteriosas das partículas subatômicas, é difícil compreender como todos estes processos estão perfeitamente interligados e como um é influenciado em diferentes magnitudes pelo outro. A reflexividade é presente na mais interior das entranhas da natureza. Esta magnífica força que nos une da mais estranha das maneiras, que concebeu tudo o que conhecemos, que viajou por treze bilhões de anos até aqui é reveladora e assustadora. O equilíbrio e sintonia do qual as partículas mais microscópicas do universo combinam-se para formar as mais estranhas e belas das formas é algo que só podemos sentar e apreciar tamanha formosura. O ser humano não consegue compreendê-la por inteiro porque nossa mente não foi feita para absorver tamanha magnitude da realidade. Qualquer aventura do tipo será fadada à loucura.

Mas podemos assimilar uma fração dela, como uma chama que ilumina a escuridão sem nos queimar. Há, dentro de nós, um sussurro, nada além de um sussurro, que ecoa a grandiosidade do encanto da natureza a todo instante. Este sussurro é por muitas vezes ignorado, tido como banal, mas o escutamos nas horas mais singulares de nossas vidas, no abraço de uma criança, na recepção de uma boa notícia, no apreço por uma bela pintura, na sintonia de um coral, na solidão de nossa felicidade. Atribuímos o estímulo deste sussurro a terceiros em um ato de puro desapego e desvalorização de si mesmo, sem compreendermos que ele provém de nosso próprio interior. Nós o ignoramos por tanto tempo que acreditamos que seus efeitos são a exceção e não a norma. Emerson disse que nossa fé nos alcança em momentos e que nossos vícios são habituais. No entanto, são exatamente estes momentos de fé, dos quais o sussurro torna-se em uma sinfonia, que o mundo é moldado e ajustado. O curso de nossas vidas é alterado toda vez que este ímpeto extrapola de nosso coração para o mundo exterior. Sob sua presença, o gênio do indivíduo é revelado e nos curvamos sob tamanha exuberância. Reconhecemos o brilhantismo de Michelangelo, a harmonia de Dostoiévski, a liderança de Cipião, mas ignoramos quando esta mesma força apresenta-se dentro de nós. A história não foi escrita pelos habituais vícios do homem, mas pela coragem daqueles que não hesitaram em hastear sua confiança pessoal.

Que extraordinária força é esta que nos impele a dizer o que pensamos nos momentos mais cruciais, que rebela-se e chacoalha-se nas câmaras de nossas mentes toda vez que observamos algo de maravilhoso ou crítico no ambiente ao nosso redor, que derrama lágrimas ao vermos a reunião de dois amantes, que se espalha em nossos nervos nos raros momentos de apreciação da complexidade do universo? Todavia, somos encorajados a ignorá-la, a escondê-la e trancá-la sob sete chaves no mais profundo dos caixões de nossa psique sob o pretexto de não proferir tanta verdade em um mundo de ilusões, sob os comandos de uma sociedade paradoxal que simultaneamente premia e castiga aqueles que deixam seu gênio transbordar. Por acaso Shakespeare limitou sua criatividade para agradar os falsos detentores da verdade? Por acaso César absteve-se de cruzar o Rubicão por violar espúrias regras de conduta de um general romano? Terceirizamos a valorização de nossa genialidade para instituições e credenciais que de forma inautêntica apropriam-se daquele conhecimento que é universal aos corações de cada um de nós. Reconhecemos suas viciadas pretensões, escutamos nossos sussurros tentando libertar-se dessa prisão imposta por estas mesmas instituições, mas não hesitamos em citá-las como origem de nosso próprio conhecimento.

Qualquer indivíduo transparente e autônomo é mais valioso que cem clones institucionais que perambulam nos círculos de elite intelectual, apropriando-se dos gênios que não os pertence. Admitir nossa própria divindade é a mais árdua das tarefas já que há uma multidão ao nosso redor pronta para atirar pedras de críticas infundáveis sem agregar nada de valor. Mas aqueles valentes indivíduos que caminharam por entre a rancorosa multidão, escreveram seus nomes em pedra e exigem nosso respeito. Curvamo-nos aos seus feitos porque reconhecemos seus talentos dentro de nós e acreditamos que ele possuíram algo ausente em nossas existências. Indivíduos que não apenas ignoraram os incômodos das circunstâncias, mas que as manipularam de acordo com suas próprias visões nos servem de inspiração, mas não a concretizamos em ações. A mesma força gravitacional de buracos negros que modificam suas vizinhanças sem reconhecer importância alguma para qualquer coisa que não seja neles próprios habitam a mente destes ricos personagens de nossa linha temporal.

Contudo, inibimos esta mesma força que desesperadamente tenta libertar-se sob nossa pele uma fração de segundo antes dela causar alguma mudança. Hesitamos em forçar cada momento para uma crise, não ousamos perturbar o universo com nossas próprias vontades e opiniões. O medo do julgamento exterior nos habita e nos manipula constantemente e assim prosseguimos com nossas rotinas e com nosso quieto sofrimento. O maior homem do mundo todavia, não permite tal manipulação. Ele enfrenta, como já enfrentou, as consequências de seus pensamentos se tornarem em palavras. Esta tortura chinesa que nos chicoteia a todo instante para que não façamos o mesmo nos impede de evoluir e de explorar aquilo que desejamos na mais fundamental das ambições. Nenhum artista de renome cedeu às tentações externas e assim temos David e Vênus de Milo. O indivíduo que reconhece sua própria genialidade será o homem mais feliz do mundo e movimentará multidões ávidas em replicar sua autenticidade.

Esta verdade não nos é ensinada em nossas infâncias. Somos impelidos a nos comportar como a multidão, somos coagidos a nos tornar clones uns dos outros, a comprar, proceder e agir de forma previsível, idêntica e controlável. Acreditamos que não há tempo suficiente em nossas vidas para perseguir o mais intenso dos desejos porque a ocupamos com obrigações impostas e infrutíferas. O mais enérgico período de nossa existência é desperdiçado em salas desconfortáveis decorando informações irrelevantes. Se existir para satisfazer as exigências de terceiros é o que chamamos de vida então não há motivos para continuarmos aqui. O único a quem devo responder é o meu gênio. Qualquer tentativa de superar esta futilidade será vista como desobediência e despertará o senhorio que aprisionou nossa própria natureza. A sociedade oferece legendas ou nomenclaturas de movimentos filosóficos para tentar acomodar os mais rebeldes dos indivíduos. Mas tais movimentos não são em nada autênticos. Seus criadores por acaso faziam parte de seu movimento? Ou Cristo não era um cristão, ou Ele foi o único cristão que existiu. Não há filosofia mais verdadeira do que aquela que advém de nosso interior. Movimentos, partidos políticos e universidades servem apenas para importar palavras de terceiros em nossas próprias mentes.

E assim apresentamo-nos a estranhos com títulos e -ismos que servem para reduzir a complexidade do indivíduo em um punhado de palavras. Nem em uma vida inteira teremos a capacidade de conhecer o real talento por trás destas abreviações! Mas aquele que fala por si próprio terá nosso instantâneo reconhecimento. Saberemos quem ele é porque fala com versos genuínos e pessoais. Seu lirismo transporta sua divindade e nos afeta como a luz do Sol acalora nossa pele.

Inúmeras religiões surgiram ao longo da história para tentar transmitir esta que é a maior das verdades. Entretanto todas falharam por externalizar a genuidade de cada um. O mundo secular de hoje faz o mesmo de forma indireta e superficial, atribuindo valores a objetos de consumo e convencendo-nos a consumi-los. Nunca estivemos tão distante de nossa própria essência. Somos distraídos de forma constante a conceder importância à tudo que é alienado a nós. Na sociedade das distrações o ímpeto do indivíduo é ainda mais difícil de ser concretizado. Na sociedade do consumo os valores pessoais são mais propensos a serem corrompidos pelo que é frugal. Mas qualquer ação que aparenta ser autêntica trai milhões. “Pense diferente” é o lema da empresa que fabrica produtos que não mudam há anos e que não são em nada customizáveis. Não posso valorizar algo que alega ser o que não é. Somente a verdadeira autenticidade é capaz de despertar o magnífico espírito de cada um.

Qualquer tentativa do ser humano em acomodar-se em filosofias contemporâneas será uma fuga de si mesmo e não trará qualquer paz de espírito. Não existe nada exterior que seja mais verdadeiro do que a essência de cada um. No atual mundo superficial a consequência deste axioma é a epidemia da baixa auto-estima e a dissolução do indivíduo no coletivo. Há uma estranha propensão de tornar cada um de nós parte de distintos subgrupos específicos, cada um mais artificial do que o outro. Não! Grandes personagens históricos são conhecidos por seus nomes e nada mais. É tão difícil assim separar-se das tribos, das multidões e escancarar suas diferenças com eles? É de tanta rebeldia assim colocar-se de pé, afirmar sua opinião para outra pessoa e esclarecer suas semelhanças e distinções?

Estas palavras podem inspirar uma auto-afirmação do leitor, mas tal linha de raciocínio e ação não deve ser usada como justificativa para a disseminação de sofrimento entre outros seres vivos. Tampouco deverá influenciar um desapego com qualquer coisa que não seja sua essência. Este não é um tratado estóico. Exercer sua própria identidade de nada adianta se a natureza que lhe permitiu tal ação depois de milhões de anos de evolução estiver destruída por mero descaso de um grupo de pessoas. Se sua genialidade não estiver em mesma sintonia que a minha, o cumprimento por sua autenticidade e que cada um de nós trilhe seu próprio caminho. Mas se ela inibe minha própria essência, ou a de outros seres humanos que existem ou que venham a existir, seja de maneira direta ou indireta, então não compreendes o significado de divindade. Emerson concluiu “Autossuficiência” com: “Nada pode te trazer paz além de você mesmo. Nada pode te trazer paz além do triunfo dos princípios.”

O triunfo dos princípios, o direito inalienável de transformar nossa essência em existência não deve ser ignorado, tão pouco deve ser confundido com construções políticas que alegam desejar o mesmo objetivo mas que na prática transformam o cidadão em apenas uma partícula de um rebanho. O discurso virtuoso, tão adorado por estadistas e sociólogos não são profundamente honestos e autênticos. Na desesperada busca por auto-afirmação deixamo-nos seduzir pelo palanque e pelo carimbo, sem compreender que por trás das urnas, dos cargos, dos títulos e instituições há um desejo quase que anti-humano de inibir nossa própria genialidade. Estes não são detentores do conhecimento, mas parasitas que exploram o espírito de cada um de nós.

Reconheça a presença de seu espírito, erga-se como ser humano e molde seu próprio destino. Caminhe por entre a multidão, não como prisioneiro de suas frustrações, mas como comandante de sua própria vida. Não se sujeite aos medos e tremores do cão negro que o acompanha a todo instante e que clama pela obediência e comodidade. Não há segurança mental na ilusão do conforto. Não há paz sem agentividade. Nosso espírito reconhece a ausência do controle de nosso caminho e torna-se enfermo. As rédeas do destino aguardam por qualquer um que não tema as responsabilidades que seu comando com certeza acarretará. Os eventuais erros não serão indicativos de um retorno à mediocridade, mas lembretes a serem carregados em nossos bolsos, cicatrizes de experiências a serem honradamente expostos para que os companheiros e o mundo saibam que sim, você é humano, mas que não envergonha-se deste óbvio fato. A ilusão da perfeição, o desesperado clamor por consistência é comum naqueles que têm medo de danificar sua imagem. Não possuo respeito por qualquer homem que prioriza sua estética em prol de sua veracidade. Seu discurso pode ser elegante e honrável, mas se não transforma-se em ações não posso ter apreço por você. Sua benemerente preocupação com problemas distantes não me diz nada se não ajudas o pobre ao seu lado. Esta busca por perfeição não só é impossível por não haver indicativos dela fora da própria natureza, como também é frustrante, tanto para o indivíduo, como para os seus companheiros que passam a acreditar nesta falsa pureza e acabam desapontados na primeira atitude humana que indique inconsistência.

Napoleão deixou uma ilha estrangeira para conquistar a França e a Europa em uma fração de sua existência apenas com sua força de vontade e sua própria validação, longe das amarras dos críticos, sejam eles mentais ou de terceiros. É fascinante ver a extensão do poder humano quando ele reconhece sua própria divindade e a concretiza em todas as suas ações. Aquele que alega que tal poder é raro e que atinge o mundo uma vez a cada século é ao mesmo tempo um míope e um hipermétrope. O ser humano prova-se detentor do poder divino da natureza todos os dias. Observamos seus efeitos em qualquer mãe que empenha-se arduamente para sustentar seus filhos, em qualquer ato de resgate durante um desastre natural, em qualquer mentor que sacrifica seu tempo apenas para iluminar a mente de pequenos gênios.

Mas nos tornamos mal acostumados. Externalizamos o conhecimento para ferramentas de busca e somos menos auto-dependentes do que nunca. Que tipo de benefício isso nos trouxe? Sim, vivemos mais, mas vivemos uma vida de menos auto-segurança e mais frustrações. O homem feliz é aquele que converge suas energias em um único empreendimento concebido por ele mesmo. A sensação de prazer e de felicidade plena provém de ver seus esforços sendo recompensados com uma conclusão, seja em uma refeição cozinhada por si próprio ou em um móvel construído por suas próprias mãos. Esta sensação é a de sua divindade florescendo de seu interior para o mundo exterior. Ao externalizarmos ou ignorarmos ações básicas, como arrumar uma cama, aprisionamos nossa natureza cada vez mais. Se você não acredita que possui uma essência, uma selvageria interna louca para libertar-se, é porque não está escutando sua própria chama. Dentro do coração de todo ser humano há um desejo incontrolável para alcançar e fazer coisas que podem não ser considerados como usuais para os outros cidadãos. Ao abandonar este desejo e ceder aos comandos de outros, deixamos de ser humanos para nos tornar em rebanho. Uma certa nostalgia por épocas há muito distantes pode surgir nesta tentativa de agir de acordo com seus desejos. Mas a nostalgia é uma fuga do doloroso presente e do medo do futuro. Ela, porém, é atemporal. Se tivesses nascido na época da qual sua nostalgia tanto aprecia, ela apontaria uma época ainda mais distante. Aceite suas circunstâncias. Abrace seus contemporâneos. Aprecie que você é quem você é apenas por ter sido concebido nestas exatas circunstâncias. Uma revolta à este encadeamento de eventos é uma revolta contra sua própria existência.

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