Kennedy, Bolsonaro e o fim da política estética

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
Published in
12 min readOct 22, 2018

A eleição presidencial norte-americana de 1960 marcou o início de uma nova era da política. Na ocasião, Nixon, o então vice-presidente, tentava estender o controle republicano da Casa Branca enquanto que Kennedy apresentava-se como um candidato jovem, defensor do movimento de liberdades civis além de receber um enorme apoio de artistas. O primeiro debate entre John F. Kennedy e Richard Nixon não apenas foi o primeiro debate entre candidatos à presidência na história americana, mas também foi o primeiro debate a ser televisionado. Nixon estava visivelmente cansado, tendo acabado de chegar de um longo dia de campanha além do fato da cor do estúdio do debate ser muito similar à do seu terno, causando uma percepção de que sua estatura estava reduzida. Por outro lado, Kennedy, descansado e preparado, aparentava estar confiante e relaxado, além de transmitir seu natural carisma que tanto marcou sua personalidade.

Argumenta-se que a parcela da população que assistiu o debate pela televisão considerou Kennedy como o grande vitorioso da noite, enquanto que aqueles que o escutaram pelo rádio pensaram que Nixon havia derrotado o seu oponente. Muito se discute sobre a validade desta afirmação, considerando que as pessoas que não possuíam televisão tinham um viés mais republicano ou que houve um empate sobre quem saiu vitorioso entre os telespectadores. O fato é que Kennedy inaugurou um padrão de personalidade que uma longa sequência de presidenciáveis e políticos passou a almejar para ganhar eleições. O aparecimento da televisão na política acarretou no aumento da importância de um fator pouco considerado no início do século passado: o marketing estético de consumo. A aplicação das técnicas do marketing de consumo na política tornou-se o manual básico de qualquer campanha eleitoral nos últimos cinquenta anos. Este manual porém, entrou em declínio e teve de adaptar-se à Era Virtual.

Para entendermos melhor a ascensão e queda do marketing de consumo na política, é necessário discutirmos primeiro a influência que os meios de comunicação possuem na formação da nossa percepção de mundo.

A idiocracia do século XXI

O marketing de consumo a partir dos anos 1960 deixou de reforçar as características objetivas do produto para convencer o cliente sobre os supostos benefícios subjetivos que ele terá ao adquirir o produto. O consumo deixou de ser sobre o que o produto pode nos ajudar e passou a ser sobre como nos sentimos usando o produto. Assim, um desejo de Coca-Cola nos é induzido a todo instante que ouvimos o barulho mágico de uma latinha sendo aberta por alguém feliz por beber veneno e associamos isso à felicidade. Cigarros foram associados à liberdade e ao estereótipo do cowboy. O slogan do McDonald’s é “Amo muito tudo isso”. A Apple promove a idéia de que seus clientes são únicos por “pensar diferente”, sendo que uma enorme parcela da população mundial adquire os mesmos produtos. Pense em como os comerciais de margarina sempre retratam um rico café da manhã com os membros de uma família pacífica e sorridente por comer margarina. Quantas pessoas que você conhece tomam um café da manhã daquela maneira?

As redes sociais levaram este problema um passo adiante. A subjetividade ao adquirirmos o produto não é mais o suficiente, agora o mais importante é como o consumidor se sente ao ser visto por outras pessoas utilizando o produto. Marcas tentam engajar os seus clientes a postarem fotos com seus produtos usando hashtags especiais. A rede de cafés Starbucks, presente em uma enorme variedade de filmes e séries, escreve errado o nome das pessoas para que elas compartilhem este erro com seus amigos nas redes sociais. O vício da curtida é o que move cada um dos usuários das redes sociais, que são bombardeados de informações à cada instante. Pense na quantidade de ruído, de informação irrelevante você viu na última vez em que abriu redes como Twitter, Instagram e Facebook? Isso torna-se ainda mais perceptível em época de eleições onde discussões banais são recorrentes.

Overdose de Informações

O grande problema é que nosso cérebro não aguenta este excesso de informações. Existe uma enorme quantidade de informações da realidade que nossos sentidos não captam. Evoluímos para poder interagir com a realidade da forma mais eficiente possível, e esta eficiência requer uma certa ignorância sobre certas características da realidade. O fato de você estar aqui lendo este ensaio de uma forma concentrada, ignorando certos aspectos do ambiente ao seu redor é um exemplo deste ponto. Se pudéssemos captar os mínimos detalhes do ambiente ao nosso redor, teríamos que gastar muito mais energia do que gastamos hoje, visto que nosso sistema biológico não foi feito para tal.

Na era da digital no entanto, tudo possui informação. Notícias são acompanhadas de anúncios. Redes sociais possuem feeds infinitos. Grupos de WhatsApp emitem notificações à todo instante. Somos bombardeados de ruídos a partir do momento que acordamos até quando apagamos as luzes para dormir. O resultado é óbvio e preocupante. Baixa energia, ansiedade, depressão e baixa auto-estima são altamente comuns entre os jovens da era digital. Mesmo que muitos reconhecem que a internet possui uma enorme quantidade de lixo, é de fato difícil desapegar-se dela, visto que ela induz “FOMO” (fear of missing out, em bom português “medo de estar de fora”) nos usuários. O ser humano é um ser social e é inerente em sua natureza buscar conexões com seus amigos e familiares. A internet acabou por criar todo o conteúdo que promove estas conexões. O mundo offline hoje é o mundo do ostracismo.

A tela e o livro

Este excesso de informações possui uma consequência crítica na maneira da qual interagimos com a realidade. No livro Reader, Come Home, a neurocientista Maryanne Wolf analisa como o nosso cérebro é moldado durante o aprendizado da habilidade da leitura. Ela afirma que quando este aprendizado é feito através de telas de computadores ou tablets, meios com uma enorme quantidade de informações, a criança priorizará uma percepção superficial e holística (isto é, tudo de uma vez) ao invés de um entendimento profundo, sequencial e crítico. Não é à toa que crianças nos dias atuais são vistas como impacientes. Elas foram condicionadas pelos dispositivos eletrônicos à ganhar uma recompensa para toda e qualquer ação. Estes dispositivos não só promovem a percepção holística da informação pela simples fisionomia da tela, mas também possuem um infinito armazém de informações prontas para serem visualizadas.

Em um mundo cada vez mais impaciente, é palpável que os criadores de conteúdo priorizem velocidade às custas de profundidade. Maryanne Wolf fala sobre como o tamanho médio das frases dos best-sellers caíram pela metade de cem anos para cá. Estamos aos poucos perdendo nossa capacidade de nos concentrar, enquanto que um certo viés de novidade está cada vez mais presente entre os seres humanos do século XXI, priorizando todo e qualquer estímulo de novas informações.

O fato é que existe uma clara diferença entre a percepção holística da informação e a percepção sequencial. A preferência dos telespectadores por John F. Kennedy é um exemplo de como o meio de informação possui tanta influência quanto o conteúdo. Não é à toa que governos totalitários como a Alemanha Nazista e a União Soviética recorreram à amplas campanhas de propaganda baseadas na estética. Imagens possuem efeitos emocionais mais imediatos do que qualquer livro, o que torna a adoção em massa de smartphones e redes sociais uma questão de alta relevância para uma análise temporal da sociedade.

O culto de personalidade

Na década de 20, Mussolini percebeu o incrível potencial dos meios de comunicação para conquistar aprovação popular e o usou para criar a figura do ditador-como-um-culto que foi replicado por Hitler na Alemanha e Stalin na União Soviética. Junto à imagem do Líder Supremo, um enorme esforço foi dedicado por parte destes regimes totalitários à criação de uma linha estética que simbolizasse a sua ideologia. Todo este “pacote publicitário” era associado à sua revolução transformadora que “guiaria a nação à um futuro próspero”, e que só seria alcançado através de sua liderança, legitimando a sua soberania.

Embora os dias do fascismo foram (quase) deixados para trás, suas técnicas de propaganda ainda permeiam nas democracias atuais mas com uma perspectiva diferente: consumismo. Assim como o marketing de consumo passou a focar mais na experiência do produto do que nas vantagens objetivas do produto em si, o ciclo eleitoral inerente das democracias fez com que os candidatos sejam tratados como produtos a serem experimentados: basta ver a enorme importância que se dá às personalidades dos candidatos ao poder executivo.

Pessoas com aparentes personalidades mais altruístas, inteligentes, carismáticas e/ou educadas são (ou eram) mais frequentes nos cargos executivos das democracias. O candidato ideal passou a ser almejado não só pelos partidos políticos, mas também pela população em geral, que ansiava por alguém de bom caráter com quem pudessem confiar. A televisão e o rádio nos países livres permitiram que políticos que respeitavam uma certa lista de critérios de personalidade se tornassem mais populares. Propagandas eleitorais, embora ressaltem algumas conquistas políticas do candidato, focam muito mais em quem o candidato a parenta ser. É notório que a popularidade de Barack Obama ao redor do mundo deve-se mais à quem ele aparenta ser na televisão do que ao seu governo em si. A preferência à Kennedy no já citado debate de 1960 por parte da audiência televisiva mostra que a estética tornou-se um fator tão ou mais importante do que o discurso político.

Quando falamos em propaganda eleitoral aqui no Brasil, é difícil não lembrar na imagem do candidato de meia idade, com camisa social de mangas arregaçadas e um belo sorriso falando em ajudar as pessoas sentado em uma mesa de escritório. É uma imagem que transmite seriedade, trabalho e progresso para o cidadão, da mesma forma que a imagem de ursos polares nos faz querer comprar uma Coca-Cola, da mesma forma que a estética fascista era atraente na década de 1920. O fato de Fernando Collor, um candidato jovem, eloquente e que demonstrava estar preocupado com a população, ter sido eleito em 1989, na primeira eleição desde 1964 em que os brasileiros foram aptos a votar, é um excelente exemplo deste marketing estético na política.

Collor a bordo do caça F5 pouco antes de partir rumo ao Rio de Janeiro.

Com o surgimento da televisão, o culto de personalidade extrapolou-se para o marketing de consumo, da qual a indústria de entretenimento foi quem tirou mais proveito. Anúncios de carros, roupas e dispositivos eletrônicos são quase sempre acompanhados de algum tipo de celebridade esportiva ou artística, que são recompensados financeiramente tanto por seus talentos quanto por sua personalidade em si. Fãs despejam bilhões de dólares tanto para ver seus artistas e atletas favoritos quanto para obter produtos que eles usam.

O palco virtual criado pelas redes sociais provocou uma nova perspectiva do marketing pessoal. O surgimento destes aplicativos provocaram o surgimento de uma carga emocional subjetiva de acordo com a percepção subjetiva de terceiros, isto é, usuários nas redes sociais preocupam-se mais em como terceiros irão reagir à sua própria experiência subjetiva através das curtidas. A interação com a realidade portanto não depende apenas de sua própria experiência pessoal, mas sim de como outros usuários irão reagir à sua experiência.

A síndrome do Rei Arthur

Um dos efeitos colaterais da superficialidade do marketing estético de consumo foi a consolidação da sinalização de virtudes (ou no inglês original, virtue signalling). Sinalização de virtudes é a tentativa sistemática de demonstrar em público comportamentos que são tidos como virtuosos pela população em geral. Pense na quantidade de “bons samaritanos” que aparecem na internet toda vez que há algum tipo desastre, sinalizando suas próprias virtudes ou na viralização do desafio do balde de gelo para a conscientização sobre a doença esclerose lateral amiotrófica (ALS). Este comportamento é reforçado pelas celebridades que estão constantemente agindo desta maneira, priorizando a aparência ao contrário de ações, evidenciado por seus discursos vazios “politicamente conscientes” nas cerimônias de premiações.

Sinalização de virtudes tornou-se em um poderoso artifício do marketing de consumo em uma sociedade consciente de que os holofotes estão acesos à todo instante. É de fato difícil criticar o discurso de alguém preocupado com a paz mundial, mas o questionamento aqui é sobre o contraste entre discurso e ações. Um dos maiores aproveitadores deste artifício é o Estado democrático, que o utiliza para reforçar o argumento de sua soberania de quatro em quatro anos sem de fato tomar ações sobre os problemas que ele tanto argumenta se preocupar. Pense na quantidade de políticos corruptos que em época de eleições alegam estar preocupados com inúmeros problemas apenas para criar uma empatia com o eleitor. Não há qualquer incentivo para que estes integrantes parasitas do Estado democrático de fato resolvam problemas da sociedade se a sua aparente preocupação com problemas não-resolvidos é o que garante as suas reeleições. Há portanto uma assimetria entre discurso e ações no atual modelo de governo, presente em boa parte das democracias mundiais: é mais fácil falar do que agir.

Este modus operandi por parte dos parasitas do Estado democrático contudo, extrapolou-se para a imprensa como um todo, que percebeu que esta assimetria entre discurso e ações não apenas é confortável, mas como também a livra de quaisquer responsabilidades por suas ações. Utilizando a expressão cunhada por Nassim Taleb, esta elite política e jornalística não possui sua pele em jogo, ou no bom brasileiro, “não possui o seu na reta”. Tal elite aproveita-se deste modus operandi porque ela mantém o sistema em um equilíbrio que garante a sua permanência no centro do poder. Equilíbrio e manutenção do status quo sempre serão os objetivos daqueles que mais beneficiam-se da estrutura de poder vigente. O custo disso é uma completa alienação para com a realidade da sociedade como um todo.

O pêndulo da história

E então veio Donald Trump. Enquanto a imprensa alienava-se no equilíbrio da sinalização de virtudes, a população presenciava cada vez mais os efeitos negativos de tal estrutura de poder. Instituições dadas como sérias cinquenta anos atrás passaram a ver sua credibilidade cair. Da imprensa à instituições governamentais, não há uma que não seja questionada pela população nos dias atuais. Uma aura de superficialidade circunda estas instituições, que perdem espectadores frustrados por sua ineficiência e loucos por algo autêntico. É fascinante ver como a história transita de extremos a extremos. O marketing de consumo estético, tão utilizado por políticos nos últimos cinquenta anos, sucumbiu pelas externalidades causadas pelo seu uso excessivo: ruídos, superficialidade, alienação.

A saída do Reino Unido da União Européia e a eleição de Donald Trump logo em seguida em 2016 são evidências de que há uma parcela significativa da população insatisfeita com a assimetria entre discurso e ações dominante na imprensa. A popularidade de Jair Bolsonaro segue o mesmo processo de contraste político no Brasil, aliando-se com o sentimento de revolta completamente legítimo por parte da população com uma elite política explicitamente corrupta.

Muito se fala pelas ruas de que apenas um meteoro seja capaz de salvar o Brasil. Esta expressão provém de uma percepção de que o status quo necessita ceder à algo novo, de que o equilíbrio de poder entre PT-PSDB já não satisfaz os anseios de uma população cada vez mais impaciente com colossais escândalos de corrupção. O meteoro foi pedido e o meteoro chegou. A população brasileira não deseja mais o equilíbrio instável que dominou o país nos últimos 25 anos: ela já anseia pela incerteza. Bolsonaro atingiu 46% dos votos válidos no primeiro turno de 2018 com um plano de governo oco e com uma equipe que frequentemente se contradiz. Isso teria sido altamente prejudicial em uma candidatura em outro contexto político, mas hoje, nada disso importa.

A campanha dos Democratas contra Donald Trump em 2016 nos Estados Unidos é muito similar à campanha da esquerda contra Jair Bolsonaro no Brasil em 2018. Seus argumentos não atrapalham o candidato, apenas fortificam a sua base eleitoral. Não será a inconstância de seu posicionamento político que irá afastar os seus eleitores, o Brasil inteiro é uma inconstância política. Não será a estupidez de seu discurso que o fará perder sua base eleitoral. Para eles outro lado do debate é tão estúpido quanto. Não será a sua aparente ineficiência como legislador que irá afetar a sua imagem, o Congresso inteiro é ineficiente. O que Bolsonaro possui de tão atraente é a sua autenticidade, algo raro em um ambiente completamente superficial. O padrão estético e político inaugurado por John F. Kennedy deixou de funcionar em um mundo onde tal estética tornou-se a norma e não a exceção.

A inconsistência de Bolsonaro focada no atual sistema vigente é precisamente o seu ponto mais forte. A sociedade de hoje é recheada de ruídos, altamente fragmentada ideologicamente, onde qualquer canto da internet possui alguma discussão banal. Trump e Bolsonaro são efeitos naturais de um ambiente repleto de informações banais e de discursos superficiais. Em um mar de ruídos, aquele que grita mais alto chama mais atenção.

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