“Os Deuses dos Provérbios Populares” por Kipling — uma tradução livre

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
Published in
5 min readNov 2, 2018

O título original do poema The Gods of the Copybook Headings, escrito por Rudyard Kipling em 1919 é uma referência aos antigos livros de cópia usados por estudantes do mundo anglófono para praticar suas caligrafias. Estes livros de cópia possuíam máximas, ditados, provérbios populares que eram usados como objeto de repetição da escrita. Kipling escreveu este poema entendendo que estes provérbios, passados de geração a geração, transmitiam uma interpretação das leis naturais, que embora não prometiam sonhos encantadores, representavam a mais crua verdade. Estes ensinamentos foram aprendidos por nossos antepassados ao longo de milhares de anos de evolução social e cultural ao perceberem que a natureza por si só é indiferente quanto à consciência humana. Nesta tradução livre, para manter o sentido original da mensagem de Kipling e a musicalidade do poema, traduzi The Gods of the Copybook Headings como os Deuses dos Provérbios Populares.

Os Deuses dos Provérbios Populares

À medida que vou reencarnando, em diferentes raças e gerações,
Para os Deuses do Mercado faço minhas humildes prostrações.
Espreitando entre dedos reverentes, os vejo florir e murchar,
Mas os Deuses dos Provérbios Populares, reparo mais do que tudo durar.

Nós vivíamos em árvores quando os vimos, e um por vez vieram nos mostrar,
Que a Água certamente nos molha, como o Fogo certamente há de queimar.
Mas os achamos ausentes de Ímpeto, sem Visão, nem Divindade,
E por isso os deixamos para os Gorilas, e seguimos a Marcha da Humanidade.

Nos movíamos com o impulso do Espírito. O passo deles nunca foi alterado,
Sem perambular ao sabor do vento como fazem os Deuses do Mercado,
Mas Eles sempre acabavam nos alcançando e junto vinha um novo panorama,
De mais um povo aniquilado nos gelos, ou que as luzes se apagavam em Roma.

Das crenças com que levantamos o mundo, desatualizados Eles estavam,
Negavam que a lua fosse um queijo, e muito menos que fosse holandês.
Negavam que dinheiro comprasse gratidão, e negavam que vacas pudessem tossir.
E então adoramos os Deuses do Mercado, que tudo de belo juraram retribuir.

Quando Era Cambriana foi formada, a paz contínua nos foi jurada.
Prometendo o fim da guerra entre os povos, se todos baixassem a guarda.
Mas quando nos desarmamos, Eles nos ataram e nos venderam ao inimigo,
E os Deuses dos Provérbios Populares disseram: mais vale o Diabo conhecido.

Nas primeiras pedras de areia, nos foi prometida uma Vida de Sorte.
(Que começava por amar nosso vizinho, e acabava por amar a sua consorte)
Até que as mulheres não tiveram mais filhos e os homens perderam fé e a razão,
E os Deuses dos Provérbios Populares disseram: o preço do pecado é a morte.

Durante a Época Carbonífera, nos prometeram abundância para todos,
Furtando a riqueza de poucos, para pagar ao resto do povo.
Mas mesmo havendo muito dinheiro, não havia nada que pudéssemos comprar,
E os Deuses dos Provérbios Populares disseram: você irá morrer se não trabalhar.

Então os Deuses do Mercado caíram, e seus eloquentes arautos acabaram por se calar,
E os mesquinhos corações tornaram-se humildes, e enfim passaram a acreditar:
Que nem tudo o que reluz é ouro, e que dois mais dois não são três.
E os Deuses dos Provérbios Populares se arrumaram, para tudo explicar mais uma vez.

Que assim será no futuro, como foi quando o Homem nasceu,
Que apenas há quatro certezas, que o Progresso Social concebeu:
Que o Cão volta sempre ao seu vômito e que o Porco volta sempre à sua lama.
E que o Estúpido que se queimou no Fogo, recolocará o dedo na chama.

E que quando tudo isto for entendido, e o admirável mundo novo recomeçar,
Quando o homem for pago para existir e nada pelos seus pecados pagar,
Tão certo como a Água nos molha, e tão certo como o Fogo há de queimar,
Os Deuses dos Provérbios Populares, com terror e matança, irão retornar!

Os Deus do Mercado, em contraste aos Deuses dos Provérbios Populares, anunciavam promessas, ideais, sonhos de progresso social, de justiça, liberdade e igualdade que desafiavam verdades básicas que nossos antepassados foram obrigados a não ignorar. Muitos políticos, filósofos, cientistas sociais, acadêmicos, tiranos, empreendedores, economistas e jornalistas, são exemplos de agentes dos Deuses do Mercado, apelando ao desejo intrínseco de cada ser humano por um mundo idealizado onde os inevitáveis problemas simplesmente não existem. Assim, ao longo da história e de forma acentuada nos últimos trezentos anos, as promessas dos Deuses do Mercado fizeram os humanos ignorarem estas máximas universais (desde “Deus ajuda quem cedo madruga” até “A pressa é a inimiga da perfeição”), que embora possam parecer óbvias, eventualmente são esquecidas até que a catástrofe da qual o provérbio tentava evitar se concretiza. Estas promessas dos Deuses do Mercado, anunciadas de forma triunfal como o início de uma nova Era do Homem, servem apenas aos seus arautos, servos de novas religiões, economias e ideologias, tentando apenas exercer o poder de novas idéias para atingir o controle da humanidade. Da Previdência Social ao Facebook, há inúmeros exemplos no mundo atual de serviços e estruturas que não obedecem aos Deuses dos Provérbios Populares.

O ser humano possui um desejo selvagem de desafiar a Natureza e de distorcer as leis naturais, logo, tal processo é altamente sensível às influências de aproveitadores tentando “vender o gato por lebre” e até mesmo “recriando a roda.” A verdade é que a Natureza, através da evolução, possui seu próprio equilíbrio moldado ao longo de milhões de anos de tentativa e erro. Ignorar estas leis naturais, que formam a base cultural de nossa civilização, é persistir no erro. Estruturas de poder ao longo dos anos foram construídas na base de ideias falsas dos Deuses do Mercado, e utilizadas como garantia de sua soberania. O tempo contudo, sempre acaba por desfazer sistemas instáveis, forçando o homem a, de forma dolorida, encarar antigas verdades que duram mais do que qualquer instituição ou governo.

Nós somos extremamente suscetíveis ao viés de normalidade, o que nos faz acreditar que aspectos sociais consideradas como comuns, como as estruturas de poder atuais e o comportamento moderno são “normais”. Mas não há garantia de que a sociedade como ela é hoje realmente irá durar ao teste do tempo. É importante ressaltar o efeito do tempo (também conhecido como Efeito Lindy) como um teste de validação de diferentes aspectos da sociedade. Inúmeras tecnologias criadas vinte anos atrás já caíram em desuso enquanto que aquelas que passaram pelo teste do tempo (da roda aos talheres) são muito mais prováveis de continuarem existindo pelos próximos séculos. Assim, quando o próximo empreendedor de palco anunciar a nova grande inovação, hesite em acreditar. Há uma chance gigantesca de que sua inovação caia em desuso na próxima década.

“Não há nada novo debaixo do sol.” — Eclesiastes 1:9

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