Sobre Logos

Uma reflexão sobre o conceito grego e Cristão de Logos como ‘Consciência’, a gênese da Autossuficiência de Emerson

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
20 min readOct 17, 2019

--

Disse Deus: “Haja luz”, e houve luz.

Acho extremamente curioso que, na Bíblia, a Luz tenha sido criada por Deus com uma fala ao invés de uma ação manual, como ligando um interruptor de luz. A linguagem parece ter uma enorme importância para Deus ao longo das escrituras, e principalmente no momento da Criação. Logo no início de Gênesis, Ele concebeu à Adão o poder de nomear todas as coisas. Muito se é falado sobre o pecado de praticar falsidades, ou mentiras.

Não me parece que esta importância dada à linguagem tenha sido à toa. Sob a perspectiva biológica, somos os únicos seres vivos que comunicam-se de forma complexa. Sob a perspectiva filosófica, vale lembrar Ludwig Wittgenstein por sua reflexão sobre como a linguagem limita a maneira pela qual vemos o mundo. Com o desenvolvimento da linguagem, nosso mundo transcendeu as barreiras do aqui e do agora para o lá, o ontem e o amanhã, do concreto para o abstrato.

Iniciando uma linha de raciocínio bem apologética, podemos afirmar que a Linguagem é de fato a primeira Revelação Divina. Nada do que consideramos como produtos da humanidade poderiam ter sido feitos sem o uso da Linguagem — uma maneira de transmitir informações sobre fatos objetivos, subjetivos, concretos e abstratos do mundo ao nosso redor.

Neste ponto de vista, a Queda do Homem foi a invenção da mentira — a corrupção da linguagem com o propósito de enganar. A serpente induz Eva a comer o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal com uma mentira, de que ela não iria morrer ao cometer tal ato. A vergonha de Adão e Eva ao perceberem que estão nus logo após a ingestão do fruto, é resultado direto da mentira — a percepção de que fizeram algo de errado. A mentira dá as caras logo depois, ao Caim fingir que não sabe do paradeiro de seu irmão.

Se a Queda foi a invenção da mentira, o Pecado Original é a nossa falha em arcar com as responsabilidades das consequências da mentira. A primeira coisa que Adão diz à Deus após Seu questionamento sobre o porquê da ingestão do fruto da Árvore foi culpar Eva, que culpou a serpente. Mas talvez a mais importante lição do Pecado Original é a de Caim.

Caim enfurece-se contra Abel não por inveja, mas porque o fato de seu irmão ter agradado a Deus ressalta suas próprias incapacidades ou falhas individuais; das quais ele prefere não encarar. Ao fugir de uma verdade inconveniente, prefere aniquilar o fator externo que a trouxe à tona: seu irmão. Se no primeiro caso tivemos uma mentira provocada por um agente externo — a serpente -, neste aqui a mentira cai inteiramente sobre a consciência de Caim, que pratica auto-enganação.

Nesta linha de raciocínio, é por isso que Satã é considerado como o Enganador. A palavra “mentira” vem do latim mentiri, derivado do termo mentis (mente/pensamento) através de uma mudança semântica de “inventar” para “conjurar”. Assim, Tentação é a divergência entre verdade e a linguagem, é a mudança de ser inventivo para conjurar fantasias, distanciando-se da realidade como ela é. Cada desenvolvimento tecnológico que permitiu nós humanos a se comunicarem de uma maneira mais fácil, também fez com que a mentira se tornasse mais fácil — algo extremamente fácil de perceber nos tempos atuais de fake news.

Photo by Roman Kraft on Unsplash

A palavra grega para verdade é aletheia (ἀλήθεια) cuja etimologia significa “não escondido/esquecido/coberto”. Esta definição de verdade via negativa assume então que para termos qualquer verdade devemos primeiramente achá-la/lembrá-la/des-cobrir-la. Eis aqui a parte mais difícil da existência humana. O esforço para abrir as portas e gavetas trancadas de nossa mente e tirar o mofo de verdades há muito tempo esquecidas, verdades extremamente inconvenientes, é grande demais para nós, porque isso exige lidar com as consequências de tal revelação. Seja pela difícil tarefa de dizer à pessoa ao lado que algo nela me incomoda, seja pela dolorosa tarefa de aceitar que há um defeito previamente desconhecido em mim, ou que cometi um erro de julgamento, minha tendência (falando de forma pessoal, utilizando ‘eu’ como sujeito) sempre é a de evitar a dor e a responsabilidade de curto prazo da revelação. O custo de adaptação sempre é grande demais para o ser humano. Por vezes, como Caim, sou tentado a atacar o motivo do des-cobrimento do véu da mentira ao invés de aceitar o objeto des-coberto. Por outras, como J. Alfred Prufrock, sou tentado a simplesmente ignorar o elefante na sala cuja Revelação apontou a sua existência: Não é isso que eu quis dizer; Não é nada disso que eu quis dizer.

Toda mentira é, no fundo, uma auto-mentira, uma auto-enganação. O mentiroso mente porque acredita que irá safar-se do ato da mentira — o que por si só já é uma mentira. A dor de curto prazo de enfrentar a verdade cria a ilusão de que evitá-la através da auto-mentira é um caminho menos doloroso — porque somos incapazes de contabilizar os juros compostos de mentir no longo prazo, porque somos incapazes de prever o futuro.

A dificuldade em aceitar a verdade nua e crua provém do desconhecimento da natureza temporal. Temos dificuldade em aceitar que nossa vida está sempre mudando porque queremos acreditar que ela não deve mudar. Nossa inércia contra adaptação é gigantesca. Evoluímos condicionados a poupar energia e portanto hesitaremos quando nosso ambiente exigir qualquer tipo de mudança por nossa parte. Acreditamos que algumas coisas são imutáveis, que alguns eventos, quando concluídos, não devem ser revisitados, que a vida é feita de etapas e que deveria ter um cenário final. O fato porém, é que a natureza não é estática, tampouco discreta.

A natureza é ergódica — tudo o que pode acontecer, vai acontecer ao longo do tempo. Mentir é, no longo prazo, o caminho mais difícil, pois a cada novo instante, a cada novo influxo de informações teremos que ajustar nossa mentira para mantê-la viva. A mentira tem perna curta — ela precisa de ajuda para mover-se ao longo do tempo. A mentira mantém-se viva consumindo nossa própria energia. A Verdade é viva e eterna, e assim provoca em nós uma intensa submissão. No ensaio “Autossuficiência” (Self-Reliance), Emerson diz:

Veneramos a honra porque ela não é efêmera. Ela sempre será uma virtude antiga. A veneramos hoje porque ela não é de hoje. Nós a amamos e a prestamos homenagens não porque é uma armadilha para o nosso amor e homenagem, mas sim porque ela depende apenas de si mesma, deriva de si mesma e assim, é de uma antiga e imaculada linhagem, mesmo que seja manifestada em um jovem.

Podemos, em um primeiro momento, não reconhecer quando a Verdade contradiz nossas ações. O ato de auto-enganação é por muitas vezes verdadeiramente ingênuo. Mas sempre há um gosto amargo na boca quando estamos seguindo passos não iluminados pela Verdade. Toda ação que praticamos que não segue a força da intuição ou a solidez de nossa bússola moral é uma ação feita de má-vontade, é uma ação pela metade, uma contra-adição pois não nos acrescenta nada. Ela sempre deixa traços incômodos em nossa mente, um eco incessante de uma voz distante que clama por sua correção. Sou obrigado a engolir o amargor criado em minha boca toda vez que pratico atos deste tipo, provocando uma náusea imobilizadora em minha cabeça logo depois. Apenas quando cedo à náusea e reverto a consequência de tal contradição é que vejo minha musa sorrindo para mim novamente.

A mentira — seja ela auto-mentira ou não — revela-se em nosso corpo através da exaustão que cria-se quando somos obrigados a carregá-la e a protegê-la de toda e qualquer ameaça que possa des-cobrir-la e torná-la em verdade. Mas de onde se origina esta exaustão, este clamor em minha mente de que algo está errado ao manter a mentira coberta por muito tempo, que me faz reconhecer após uma longa tortura de que sempre será melhor enfrentar a dor da Revelação do que continuar alimentando o monstro satânico às custas de minha própria sanidade? Qual a gênesis da amargura criada em minha boca toda vez que não sigo a voz que ecoa nas câmaras de minha mente, da náusea em meu estômago que me força a baixar minha cabeça e reconhecer meu erro, como um cão que pede perdão ao seu dono por estraçalhar o seu sapato? Em “A Alma Universal” (The Over Soul), Emerson diz:

A filosofia de seis mil anos ainda não desbravou as câmaras mais obscuras da alma humana. Em seus experimentos sempre permaneceu um resíduo de mistério do qual ela não conseguiu resolver. O homem é um riacho cuja nascente permanece escondida. Nosso ser flui por nós sem sabermos de onde. A mais exata calculadora não consegue saber se algo incalculável surgirá no próximo instante. Sou forçado à todo instante a reconhecer, para os eventos ao meu redor, uma origem mais elevada do que a vontade que chamo de minha.

Photo by Logan Lambert on Unsplash

É necessário fazer uma distinção a partir de agora entre verdade e Verdade. Verdade, como a Suprema Aletheia, é a intersecção entre todas as verdades, é a única coisa que de fato não está escondida, a Certeza Suprema, o elefante na sala impossível de ignorar: Existência. Sendo assim, a Suprema Aletheia é Tudo O Que É, Tudo O Que Foi e Tudo O Que Será, é YHWH por definição.

Mas a existência só pode ser refletida a partir de uma ferramenta única no ser humano, aquilo que nos distingue de todos os outros seres biológicos, nossa Consciência. A consciência da própria existência é o que garante nossa própria existência, tal qual Descartes em Cogito Ergo Sum (Penso, Logo Existo). É a minha Consciência, reflexo direto da Existência, da Suprema Aletheia, percebendo as relações entre Causa e Efeito, que origina o amargor da mentira, que pronuncia a Voz da Verdade que ecoa em minha mente a cada passo em falso que tomo.

Não pode haver Existência Humana sem Consciência, e não pode haver Consciência sem Existência como um todo. Linguagem é a maneira pela qual a Consciência se materializa na Existência, é o meio pelo qual Cogito Ergo Sum vem a existir.

Consciência Absoluta é o Logos; do grego λόγος que significa “aquilo que é dito/pensado” (e portanto aquilo que é manifestado pela Linguagem) derivado de λέγω que significa “Eu digo/Eu ordeno/Eu uno”.

Logos é a Razão da Existência, a Sabedoria Divina. É por isso que Cristo foi identificado como Logos no Novo Testamento no grego Koiné. Na Igreja Ortodoxa, a Sabedoria Sagrada é entendida como o Logos Divino, que encarnou na figura humana de Jesus, tornando-se o divino Cristo. Na Igreja Latina contudo, a tradução de Logos limitou-se à Palavra ou Verbo.

Dessa perspectiva, a tradução de João 1:1 como “No princípio havia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” não transmite o sentido original de quem o escreveu. Mas se traduzirmos λόγος como “Consciência”, João 1:1 passa a ter uma diferente conotação:

No princípio havia Consciência, e a Consciência estava com Deus, e a Consciência era Deus.

O mesmo vale para 1 João 1:1, que incorpora de forma mais profunda a reflexão de Cogito Ergo Sum:

O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam — isto proclamamos a respeito da Consciência da vida.

Se pensarmos no Primeiro Homem, como o primeiro Homo sapiens a ter Consciência de si-mesmo, esta interpretação de João 1:1 possui um significado valiosíssimo, pois simboliza o nascimento, de forma simultânea, da História Humana, da Consciência humana, da percepção da Existência e por consequência da conexão contemplativa entre Criador e Criação. Se houve um momento em que Deus estava com os homens, foi no surgimento da Consciência, o momento em que Deus criou o Homem à sua semelhança. Tal Homem, com uma fresca, inédita e inabalável Consciência de si mesmo, possuía naquele instante uma mente clara, autossuficiente e ausente de auto-mentira que somos incapazes de imaginar. Tal nível de Divindade porém, foi destruída com a Queda, provocando a fragmentação de sua mente. É por isso que Cristo é considerado como o Segundo Adão, pois Ele, assim como Adão antes da Queda, era Consciência pura.

Considerando a Existência como YHWH, como Tudo O Que É, Tudo O Que Foi e Tudo O Que Será, como o Deus Pai, a Consciência é a Existência na forma Humana, o Deus Filho. Cristo é a personificação da Consciência Divina, e de forma mais prática, é o resultado de como alguém com Total Consciência agiria.

Em The Way to the Union, o teólogo Vladimir Lossky escreve:

Gnosis, ou auto-consciência, cresce na medida pela qual a natureza se transforma, aprofundando-se em uma cada vez mais intrínseca união com a graça divina. Naquele que é perfeito, não existe mais espaço para o ‘inconsciente’, para o instintivo ou para o involuntário; tudo é iluminado pela luz divina, apropriado para a pessoa humana que adquiriu seu caráter adequado pelo presente do Espírito Santo.

Total Consciência é a alma no Reino dos Céus, é a alma com Apathea, como definido por Evagrius Ponticus:

O Reino dos Céus é Apathea da alma junto com o Verdadeiro Conhecimento dos seres. O Reino de Deus é o Conhecimento da Santíssima Trindade exacerbando a constituição da alma e superando qualquer corruptibilidade.

O conceito de Apathea tem seu nome do grego ἀπάθεια, que pode ser traduzido como “sem sofrimento” ou “sem paixões”. Embora a palavra “apatia” provenha de ἀπάθεια, estes dois conceitos não podem estar mais distantes. Apathea é mais bem traduzido pela palavra equanimidade do que apatia, já que esta última possui uma conotação negativa de indiferença.

Evagrius define Apathea como estado da alma “no Reino dos Céus, com o Verdadeiro Conhecimento dos seres”. É aqui que devemos lembrar da palavra grega para verdade: aletheia, como “aquilo que não está escondido”. Apathea, ou o Verdadeiro Conhecimento dos seres, é o estado da alma para qual nada está coberto pelo véu da mentira, que enxerga a realidade como ela é, com conhecimento de todas as coisas. Aquele que possui Apathea não é afetado por qualquer pensamento que pode se originar a partir da incerteza, como ansiedade ou medo, ou a partir de uma falsa percepção da realidade (interna ou externa), como inveja, orgulho ou ódio.

Enxergando a realidade como ela é, a alma com Apathea é incapaz de praticar auto-engano, pois estaria então distorcendo a realidade. Eis que a figura de Cristo é o símbolo do detentor da pura Apathea, incapaz até de mentir para si mesmo, em contraste a Satã, o Grande Enganador.

Na Bíblia, esta luta eterna entre Verdade e Mentira, entre Conhecimento e Ignorância, culmina no Livro do Apocalipse. A palavra Apocalipse vem do grego ἀποκάλυψις, que significa “revelação” ou “des-cobrimento”. O Fim dos Tempos portanto não trata-se de um evento de destruição total, mas sim do instante no qual a realidade é revelada para o indivíduo como ela é. A Segunda vinda de Cristo é a transformação do indivíduo em Cristo, como alguém com pura Apathea, com total conhecimento das coisas, Consciente da Realidade, incapaz de mentir até para si mesmo, ausente de uma mente nebulosa. O resultado da batalha entre Cristo e o Anti-Cristo é enfim, a unificação da mente previamente fragmentada do indivíduo.

Não é à toa que Evagrius aborda o Caminho para Apathea como uma constante luta para livrar-se de pensamentos ruins, considerados como demônios para o monge:

Quanto mais a alma progride, maior os oponentes que tentam ocupá-la. Na batalha contra eles, não acredito que sejam sempre os mesmos demônios à espreita. Neste ponto, sábios são aqueles atentos de forma mais aguda ás suas tentações e que veem a Apathea da qual eles possuem, sendo atingidas, um demônio após o outro.

A idéia da União da mente fragmentada do indivíduo como resultado final do Caminho para Apathea, do processo de tornar-se como Cristo, como Logos, é curiosa, já que, como visto anteriormente, λόγος deriva de λέγω que pode ser traduzido como “Eu uno”. Através de uma mente unificada, suas ações refletem seus pensamentos, e seus pensamentos refletem suas ações. Não há espaço para auto-dúvida. Assim, Emerson escreve novamente em “Autossuficiência” (Self-Reliance):

Um acordo eventualmente será feito entre qualquer variedade de atitudes, e cada uma delas será natural e honesta em seu momento. Sendo provenientes de uma única vontade, as atitudes serão harmoniosas, mesmo que pareçam completamente distintas. Essa diversidade é visível apenas a pouca distância, ou por um breve pensamento. Uma tendência as une. A viagem do melhor navio é uma linha ziguezague composta por centenas de curvas. Observe a linha a uma distância suficiente e verás que ela se endireita à uma tendência média. Sua atitude genuína se explica sozinha e irá explicar suas outras atitudes genuínas. Sua conformidade não explica nada. Aja individualmente e o que você já tenha feito individualmente irá se justificar para você agora. A grandeza apela ao futuro. Se posso ser suficientemente firme hoje para fazer o que é justo e ainda desdenhar os olhares, devo ter feito tanta justiça antes para me defender agora. Seja como for, aja de forma justa hoje.

(…)

Que um Estóico des-cubra os recursos do ser humano e diga às pessoas que elas não são salgueiros curvados, mas que podem e devem desapegar-se; que com o exercício da autossuficiência, novos poderes aparecerão; que o Homem é a Palavra em forma de Corpo, nascido para espalhar a cura às nações, que ele deveria se sentir envergonhado pela nossa compaixão, e que no momento que ele age a partir de si mesmo, jogando as leis, os livros, as idolatrias e os costumes pela janela, não sentimos mais pena, mas o agradecemos e o reverenciamos — e este mestre restaurará a vida em esplendor, e fará com que seu nome seja estimado por toda a história.

O principal ponto do Caminho é que o resultado final, a transformação em Cristo é idêntica para todas as pessoas, independentemente de circunstâncias pontuais. Cristo é o Homem Autossuficiente por definição, utilizando a linguagem de Emerson. Ele acreditava que, com uma verdadeira autossuficiência, todos os indivíduos deixariam que seu Jeová interno se pronunciasse à todo instante — e que não haveriam distinções entre eles. É por isso que São Paulo escreveu em Gálatas 3:28:

Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo.

Este Caminho não está tão distante do processo de individuação relatado profundamente por Carl Jung, o processo pelo qual o indivíduo integra as diferentes partes de sua psique. Também não é diferente de Kierkegaard e sua idéia de que a Pureza do Coração é desejar Uma coisa: o Bem, pelo Bem em si. Tal desejo, segundo Kierkegaard, só será de fato Puro se o indivíduo estiver disposto a sofrer pelo próprio Bem. Eis então, o Caminho do Cristão. Não é desejar tornar-se Cristo, mas sim é através do desejo único do Bem que ele se tornará Cristo.

A relação entre Existência e Consciência é a mesma relação entre YHWH e Logos, entre Deus-Pai e Deus-Filho na Santíssima Trindade. A Linguagem é o Espírito Santo: a maneira pela qual Consciência e Existência se interagem, a maneira pela qual Cogito Ergo Sum vem a ser pronunciada, vem a existir, a maneira pela qual a Consciência se materializa na Existência.

A Linguagem da Trindade, a Linguagem do Espírito Santo, não é a linguagem dos homens, mas a Linguagem Divina, incapaz de distinguir a Pergunta da Resposta, incapaz de diferenciar Ação de Contemplação. Não posso utilizar a linguagem terrena para explicar, com perfeita fidelidade, a relação entre a Consciência, Linguagem Divina e Existência — a compreensão da Trindade vai além do entendimento humano porque somos limitados pela linguagem terrena. É dessa perspectiva que Emerson escreve em “A Alma Universal”:

Nós vemos o mundo pedaço por pedaço, vemos o Sol, a Lua, o animal, a árvore; mas o todo, do qual esses objetos são as suas brilhantes partes, é a alma. Somente através da visão dessa Sabedoria que o horóscopo das eras pode ser lido, e por nos apoiarmos em nossos melhores pensamentos, por empunharmos o espírito da profecia que é inerente em cada ser humano, podemos saber o que ele diz. As palavras de todo homem que fala dessa perspectiva devem parecer inúteis para aqueles que não compartilham do mesmo pensamento. Não ouso convencer ninguém. Minhas palavras não carregam esse senso augusto; elas caem frias e vagas. Somente o próprio indivíduo pode alcançar essa inspiração e verá as suas palavras carregadas pelo vento como líricas, doces e universais. Mesmo assim desejo, com palavras profanas se não posso usar as sagradas, indicar o céu dessa deidade e reportar minhas próprias observações da simplicidade transcendente e da energia desta que é a Altíssima Lei.

Importante ressaltar que, nesta perspectiva, a Linguagem não é utilizada para decifrar a Existência. A relação entre Consciência e Existência não é de conflito, não é a da Consciência tentando controlar a Existência, mas sim de contemplação mútua, do reconhecimento de que não pode haver Existência Humana sem Consciência, e não pode haver Consciência sem Existência como um todo. A distorção da Linguagem Divina através da mentira a mortaliza, o uso da Linguagem Divina para o controle da Existência a profana.

É desta perspectiva que conseguimos compreender melhor o significado da palavra blasfêmia. Sua etimologia vem do grego βλασφημία, que é a junção de duas palavras proto-indo-europeias: *mel- (“enganar”) + φημί (phēmí, “Eu digo”). Blasfêmia é o uso da Linguagem com o propósito de enganar, para o propósito da mentira.

Novamente sou obrigado a recorrer a Emerson:

Revelação é o descobrimento da alma. A noção popular é de que uma revelação é uma clarividência. No antigos oráculos da alma, o entendimento procurava encontrar respostas para perguntas terrenas, e tentava descobrir a partir de Deus por quanto tempo os homens deveriam continuar existindo, o que suas mãos deveriam fazer e quem os deveria acompanhar, adicionando nomes, datas e lugares. Mas nós não devemos arrombar fechaduras. Nós devemos reprimir esta curiosidade inferior. Uma resposta em palavras é ilusória; não é mesmo uma resposta para as perguntas que você faz. Não exija uma descrição dos países dos quais você irá viajar. Uma descrição desse tipo não os descreve para você, e amanhã você desembarcará e os conhecerá habitando-os.

Os homens perguntam sobre a imortalidade da alma, sobre as atividades dos céus, sobre o estado do pecador e assim em diante. Eles até mesmo sonham que Jesus deixou respostas precisamente para estes interrogatórios. Nunca por um momento aquele espírito sublime falou no mesmo jargão. Para a verdade, justiça, amor, para os atributos da alma, a idéia de imutabilidade está essencialmente associada. Jesus, vivendo nestes sentimentos morais, sem se preocupar com bens terrenos, atento apenas com a manifestação destes sentimentos, nunca separou a idéia de longevidade da essência desses tributos, tampouco pronunciou uma sílaba sobre a longevidade da alma. Coube a seus discípulos separar a longevidade dos elementos morais, e de ensinar a imortalidade da alma como uma doutrina, e mantendo-a com evidências. No momento em que a doutrina da imortalidade é ensinada de forma separada, o homem cai. Na corrente do amor, na adoração da humildade, não há questão de longevidade. Nenhum homem inspirado formula esta pergunta ou condescende a essas evidências. Pois a alma é verdadeira para si mesma, e o homem sobre o qual ela é derramada não pode abandonar o presente, que é infinito, para um futuro que seria finito.

Estas perguntas que cobiçamos perguntar sobre o futuro são uma confissão do pecado. Deus não possui uma resposta para elas. Nenhuma resposta em palavras pode responder uma pergunta de coisas. Não é em um arbitrário “decreto de Deus”, mas na natureza do homem que um véu encobre os fatos de amanhã; pois a alma não nos fará ler outro horóscopo que não seja a de causa e efeito. É através desse véu que cobre os eventos que a alma ensinará os filhos do homem a viver hoje. O único modo de obter uma resposta para estas perguntas terrenas é esquecer todas as curiosidades inferiores, aceitando a maré do ser que nos faz flutuar no segredo da natureza, trabalhando e vivendo, trabalhando e vivendo, sem perceber que a alma construiu e forjou para si mesma uma nova condição, e que a pergunta e a resposta são Um.

Photo by Clark Van Der Beken on Unsplash

A modernidade não apenas distorceu nossa noção do que é religião, mas profanou a Linguagem como um todo. O uso da linguagem para controle das massas e para alienação ideológica é o Pecado Supremo. Neste ponto, a modernidade gerou Três Irmãos gêmeos que compartilham deste mesmo mecanismo do Mal: fascismo, comunismo e consumismo. Não há qualquer distinção entre os três sob o ponto de vista de profanação da Linguagem e a inconscientização dos indivíduos. O grande contraste entre o Caminho e os três filhos da modernidade é que, se no primeiro havíamos como resultado final a afirmação da Consciência do Indivíduo em Cristo, agora temos a desintegração do indivíduo no inconsciente primitivo e selvagem das massas.

O resultado final de qualquer um dos Três Irmãos é a eliminação da Linguagem em si, a eliminação da maneira pela qual a Consciência vem a Existir, e por consequência, a destruição da Existência Humana. Embora a II Guerra Mundial e a Guerra Fria já tenham terminado no século passado, nenhum dos Três Irmãos desapareceu por completo. O comunismo retornou não como uma ameaça bolivariana latino-americana como muitos brasileiros gostam de pensar, mas como uma idolatria cega e ingênua no poder do Estado — suprimindo a Linguagem Divina em favor da linguagem da Lei. O fascismo reinventou-se em ambos os lados do espectro político — em um há a profanação da Linguagem através de fake news, no outro pela limitação da liberdade de expressão.

O consumismo é o único dos irmãos que possui seus métodos de eliminação da Linguagem despercebidos pela maioria das pessoas porque seus métodos não tentam distorcer ou limitar a Linguagem, mas sim substituí-la. A tentativa de substituição da Linguagem passa despercebida porque nos é oferecida uma alternativa satisfatória no curto prazo: a imagem. O gosto amargo em minha boca provocado pela auto-mentira, a ansiedade em minha mente que me paralisa por completo quando dominado pela auto-engano é facilmente dissipado através do novo iPhone, através de vídeos irrelevantes no YouTube, que me distraem de minha incapacidade de lidar com meus problemas até que o sono me relaxe por completo. A imagem não é uma vacina, é um analgésico, que varre minha dor momentânea para os porões empoeirados de minha mente até que eles acumulem tanto mofo e baratas que serei obrigado a limpá-los de uma vez só, quando menos espero.

O preconceito secular à religião institucionalizada, não é sem razão. A Igreja cometeu atos selvagens e desumanos ao longo de sua história, mas dispensar religião pelos erros cometidos pela Igreja é uma falácia do espantalho. Emerson compreende bem que a Religião perde seu propósito através da institucionalização e da modernidade:

O ser humano civilizado construiu a carruagem, mas já não usa mais os seus pés. Se apoia em muletas, porque não pode apoiar-se em músculos. Possui um bonito relógio Genovês, mas não consegue calcular a hora pelo sol. Possui um almanaque náutico de Greenwich, e por isso está seguro de ter a informação ao seu alcance, mas não pode reconhecer uma única estrela quando sai às ruas. Ele não observa o solstício; sabe pouco do equinócio; e o brilhante calendário anual carece de um indicador em sua mente. Suas agendas enfraquecem sua memória; suas bibliotecas sobrecarregam sua inteligência; o escritório de seguros aumenta o número de acidentes; e poderíamos perguntar se as máquinas não o restringem; se não perdemos alguma energia pela sofisticação, por um Cristianismo impregnado em formas e instituições, pelo pouco vigor da virtude selvagem. Como cada Estóico foi um Estóico; na Cristandade, onde está o Cristão?

De acordo com Cícero, a palavra Religião possui sua etimologia derivada de re-λέγω, sendo portanto o ato de re-ordenar/re-unir. Religião é a contemplação coletiva da Existência, com o Logos, através da Linguagem. É a maneira pela qual a União é feita, mas principalmente é a maneira pela qual a União é mantida. Apathea não se mantém sozinha — o esforço para nos mantermos auto-conscientes é colossal, porque sob a luz de Logos muito do que vemos no dia-a-dia terá de ser renunciado. A manutenção da Apathea exige uma Vontade Divina, que deverá ser relembrada de forma constante. Assim, concluo este ensaio da mesma maneira que Emerson concluiu Autossuficiência, recordando que é fácil confundir auto-estima com Apathea e que de fato, não existe um fim para o Caminho:

Uma vitória política, um aumento de rendimentos, uma recuperação de uma doença, um retorno de um amigo ausente, ou se algum outro evento favorável eleva teu espírito e pensas que bons tempos estão a caminho. Não acredite nisso. Nada pode te trazer paz além de você mesmo. Nada pode te trazer paz além do triunfo dos princípios.

Para receber em primeira mão novos artigos sobre história, filosofia, tecnologia e religião, assine nossa newsletter em diariosdekairos.com

--

--