Ainda há tempo de parar a nossa missa da meia noite ?

Leonardo Miranda
Didaticamente
Published in
8 min readFeb 5, 2022

Nota: O texto a seguir possui spoilers da série A missa da meia noite.

Viés de confirmação ou tendência de confirmação é uma maneira que nós temos de tentar reforçar ideias pré-formadas que tenhamos sobre o mundo. Então você e eu, formamos ideias sobre o mundo e em vez de ficarmos em constante reflexão sobre elas, o que geraria um gasto energético gigantesco e muito tempo de vida, tendemos a só procurar maneiras de reforçar essas ideias.

Isso é muito bem evidenciando e comentado por toda a internet, dentro dessa polarização política que vivemos no Brasil. Pessoas fanatizadas e radicalizadas, não estão pensando sobre suas crenças e só reforçando elas pelo estímulo de um líder louco (para entender melhor a referencia assista o episódio “O candidato” da serie O incrível mundo de Gumball).

Essa maneira do nosso cérebro funcionar, juntamente com a nossa incrível habilidade de reconhecer e interpretar padrões (a famosa história de procurar desenhos em nuvens) faz com que nossa mente fique realizando associações a todo e qualquer momento sobre a realidade que vivemos.

E aí que nasce esse texto, esse é o desenho que enxerguei nas nuvens enquanto assistia a série “A missa da meia noite” e quando ouço a música “Ainda há tempo” do Criolo.

Em nome do pai, do filho e do espírito santo.

A história da igreja cristã é gigantesca e cheia de nuances, é difícil aceitar isso e falar sobre essas nuances sem parecer que está se passando pano, mas não podemos ficar fixados somente no quadro da idade média. Absurdos foram cometidos, pessoas queimadas por nada, minorias perseguidas e exterminadas, ao mesmo tempo que caridade foi espalhada, escravos libertados, revoluções feitas e injustiças foram quebradas.

A história da igreja retrata perfeitamente (na minha opinião) o ser humano, um organismo vivo dotado de um enorme potencial de transformação e de fazer aquilo que é bom, mas que vive se perdendo pelo caminho e tem que se reencontrar diversas vezes.

A igreja é uma instituição que fez tanto mal para o nosso planeta, assim como fez muito bem, em uma nuance dolorosa. E a missa da meia noite também é sobre isso, uma história terrível, inominável, mas a partir de um ato de caridade.

A série se passa em uma pacata ilha dos Estados Unidos e conta a história de sua pequena população. A Ilha Crockett é formada majoritariamente e tradicionalmente por pescadores, que já viram tempos melhores inclusive, visto que durante o período em que a serie se passa, a região ainda se recupera de um acidente envolvendo o derramamento de óleo. Acidente que acelerou o declínio que a já avançava naturalmente sobre a ilha, já que ela não era vista com bons olhos para os jovens, que sonhavam com a fuga para o continente e o envelhecimento da população local. Ou seja, em pouco tempo, ela provavelmente viraria um ambiente abandonado

Dentro desse contexto, acompanhamos a volta de um filho pródigo da ilha. Ryan nasceu e cresceu em Crockett, foi coroinha da igreja local, mas na primeira oportunidade saiu e foi fazer sua vida fora. Objetivo que ele atinge com sucesso no começo da sua trajetória no continente, em pouco tempo ele prospera em negócios envolvendo startups. Mas tudo desmorona quando ele se envolve em um acidente de transito e acaba comentando um homicídio, por estar dirigindo embriagado. Anos depois, após cumprir a sua pena, ele volta para a ilha.

Também somos apresentados a outro retorno, do Monsenhor Pruitt, o padre local, que comanda a igreja da ilha há muitos e muitos anos.

O monsenhor havia recebido de presente de seus fiéis uma viagem para a terra santa, devido aos seus anos de serviço à comunidade e a sua idade avançada. Essa seria a última viagem da vida do Padre na visão dos membros da comunidade, então nada mais justo que ele conhecesse o berço da religião cristã.

Mas Pruitt não volta da mesma maneira para a Ilha, ele volta repleto de surpresas e segredos, o primeiro deles é que ele não volta como Monsenhor Pruitt, um padre de mais de 70 anos e sim como Padre Paul, um jovem padre substituto de 30 e poucos anos e carregando dentro de uma das suas malas um “Anjo”.

Isso acontece, porque durante a sua viagem, o monsenhor que já estava lutando com uma degeneração da sua saúde mental, acabou se perdendo no deserto em torno de Jerusalém e por engano adentrou a cova de uma criatura sobrenatural. Que ele, de maneira ingênua interpretou ser um anjo, que quando encontrou o padre, infringiu uma mordida em sua pescoço e assim lhe tornou jovem novamente.

Imbuído dessa mesma ingenuidade, Padre Paul interpretou que ele foi abençoado por uma espécie de renovação espiritual enviada pelo salvador e decide que ele deve levar essa bênção para todas as suas ovelhas na pequena ilha Crockett. Acho que não é preciso dizer que essa ideia não deu certo e que não foi nem umabenção e nem um anjo que ele levou para sua ovelhas e sim uma “raposa” que irá se alimentar de toda aquela comunidade.

E é nesse ponto que meus pensamentos ficam martelando e nesse conceito da série que eu começo ver desenhos em nuvens e traçar paralelos com a nossa realidade.

A missa da meia noite brasileira

Os eventos que ocorrem no nosso país ainda serão estudados pelos próximos 100 anos e tem uma grande chance dos historiadores não conseguirem explicar de maneira cronológica e racional o que aconteceu nos últimos anos. Então não vai ser eu, um grande leigo e escritor/opinador de internet que vai conseguir resumir ou explicar o que houve. O que não me impede de tentar, afinal, estamos na internet.

Antes de tudo, preciso confessar que não acredito na maldade generalizada do povo brasileiro, não acredito que a maioria das nossas pessoas são cidadãos fascistas com ódio e vontade de matar as minorias. Sim, não duvido que parcela acredita nisso realmente, mas uma outra grande parcela (que acredito ser a maioria) está apenas mal orientada. E essa falta de orientação, juntamente com um sentimento de revolta, é e foi manipulado para ser usado em objetivos escusos dos verdadeiros fascistas.

Dentro da minha concepção, grande parte da população é composta por pessoas parecidas com Padre Paul, pessoas que querem salvar os seus, querem ajudar, querem espalhar a caridade e a bondade para a sua comunidade, mas não sabe como e não tem quem os guie por esse processo tão importante e complicado, assim, acabam se perdendo e comentando erros graves.

No turbilhão dos acontecimentos, começando por 2012, esses cidadãos se perderam e foram acumulando um sentimento (muitos das vezes fomentados por diversos atores sociais, como a mídia por exemplo) de raiva, descontentamento e vontade por mudança. Afinal, não há ninguém que queira a falência da sua nação, todos procuram uma melhoria para a situação.

E dentro desse contexto, ficaram perdidos e desorientados. E assim como Monsenhor Pruit em sua viagem no deserto, a população achou o seu “Anjo”. Alguém que dizia o que eles queriam, que lhes dava um caminho para direcionar todos esses sentimentos. E não escolheram só para ajudar a si mesmo, acreditaram que isso iria ajudar a todos, sem exceção.

Ressalto que em nenhum momento se justifica os acontecidos ou desabona a atitude das pessoas que fizeram essa escolha, ações geram consequências e mesmo dentro de uma ingenuidade, ainda somos pessoas em uma sociedade, onde é preciso assumir os seus erros. O intuito é tentar entender como pessoas dotadas de tanto amor pelo próximo, chegam a realizar essas escolhas. Como ficamos tão cegos com as nossas crenças e convicções que escolhemos demônios achando que estamos escolhendo anjos.

No fim, Padre Paul, ou melhor, Monsenhor Pruit percebeu que tinha feito uma terrível escolha e morreu se arrependendo amargamente com a sua amada mulher (por quem ele agiu da maneira que agiu) e com a sua filha. Diferente de Bev Keane, uma fervorosa devota que até o fim, morreu agarrada a convicção de que aquele monstro era verdadeiramente um anjo e que tudo o que estava acontecendo na ilha era a vontade de Deus.

Me pergunto qual final teremos na nossa realidade, qual será o final para essa missa da meia noite que vivemos. Será que teremos uma multidão de Padres Paul, que se arrependeram de seus atos, assumem a responsabilidade e tentaram mudar, mesmo que no último momento ou teremos pessoas agarradas até o fim com os seus erros e que morreram achando que estão fazendo o bem com o mal?

E é nesse momento que me volto para a música “Ainda há tempo” de Criolo.

Ainda há tempo?

“Cê quer saber? Então, vou te falar

Por que as pessoas sadias adoecem?

Bem alimentadas, ou não

Por que perecem?

Tudo está guardado na mente”

- Criolo

Ainda é tempo é um canção de autoria de Criolo, se trata de uma música sobre as dores da alma e da mente, além de ser um manifesto sobre a importância do amor e como não podemos desistir dos nossos. Mas sim, precisamos lutar cada vez mais para recuperar os que estão perdidos, abraçando e distribuindo o amor.

“As pessoas não são más, elas só estão perdidas

Ainda há tempo

Não quero ver você triste assim, não

Que a minha música possa te levar o amor

Não quero ver você triste assim, não

Que a minha música possa te levar amor”

- Criolo

E diferente de como coloquei no título desse texto, não existe a interrogação para Criolo, ele não faz uma pergunta sobre se ainda há espaço para ajudar as pessoas, ele faz uma afirmação. Confesso que em mim não carrego a esperança que Criolo tem em sua obra, inclusive me recordei da música durante a série e ouço ela constante na tentativa de absorver essa esperança e conseguir enxergar uma saída no fim do túnel.

O olhar atual é de pessimismo, pegamos por exemplo o momento pandêmico que vivemos. Foi uma calamidade total, só no Brasil são mais de 600 mil mortos (fora as subnotificações que sabemos que existem), momentos assim são momento de união, historicamente falando, momentos onde inimigos históricos deixam qualquer desavença para trás para se unir em uma causa comum.

Mas dentro da nossa nação temos a impressão a desunião só cresceu em vez de diminuir. As diferenças não foram diminuídas e sim extrapoladas. Os inimigos não se tornaram aliados momentâneos para o bem comum, em vez disso, só aumentaram o grau da rivalidade. A pandemia em terras tupiniquins não suscitou um espírito de coletividade e ajuda mútua, mas sim um sentimento de desconfiança. Onde estamos a todo momento desconfiando uns dos outros.

De tempos em tempos, comunicadores digitais e tradicionais abrem a discussão sobre a aprendizagem com a pandemia. Sinceramente, sempre fico encafifado com o otimismo alheio, na minha humilde opinião que não vale de nada, não aprendemos muito e o pouco que aprendemos não possui nada de positivo. Aprendemos o quão mesquinho um ser humano pode ser e quão baixo as pessoas vão para defender suas convicções e não dizer que estão erradas.

E daí que nasce essa visão pessimista do nosso futuro, se nem no momento mais importante do século XI até o momento, não tivemos uma união total e sim uma fragmentação, em que momento vamos nos unir? Em que momento vamos parar essa missa da meia noite que está em andamento?

Por isso, com todas as forças que tenho, torço para que o Criolo esteja certo e que ainda haja tempo.

--

--

Leonardo Miranda
Didaticamente

Cursa Licenciatura em biologia na UFSCar - Campus Sorocaba. Professor de biologia, Filosofo de internet e Teólogo Amador.