Cancelamento, Justiça e Kendrick Nunn

Leonardo Miranda
Didaticamente
Published in
8 min readNov 20, 2019

A internet como todo meio de comunicação tem a sua linguagem própria, suas piadas internas e sua etiqueta. Esses tópicos vão se modificando e se moldando de maneira que o tempo vai passando, usuários novos vão chegando e os mais antigos vão amadurecendo. Uma ótima maneira de perceber isso é observar a evolução da linguagem dos memes. Muitos adolescentes que chegaram agora nesse tipo de comunicação, não fazem ideia do que era meme em 2012. O que antes era uma expressão de sentimentos por meio de bonecos de palito preto em um fundo branco, acompanhados por uma frase de efeito, se tornou toda uma linguagem nova, que está mais associada a viralização do que as antigas ilustrações.

Memes 1.0

Em 2019, as pessoas dessa enorme rede de comunicações, consolidaram (principalmente no twitter) o conceito de cancelamento, alguns já dizem que existe uma cultura do cancelamento dentro das redes sociais. O cancelamento começa quando uma pessoa com grande visibilidade e fama comete um erro muito grave(ou pelo menos deveria ser assim).

Como por exemplo o caso do cantor MC Gui, que expôs uma criança ao ridículo no seu instagram, que possui milhões de seguidores.

Logo após isso, o mundo da internet reagiu com grande velocidade e com o julgamento pronto e decidido. Ele deveria ser cancelado, as pessoas deveriam deixar de segui-lo, curti as suas postagens e repercutir a suas mensagens. É nisto que se pauta o cancelamento, é uma reação passiva do consumidor de conteúdo, que não possui muita voz e nem influência para conseguir realizar algo concreto. Claro que para pessoas que dependem de público, essas ações podem causar um impacto, MC gui por exemplo, teve alguns show cancelados e com certeza nos primeiros dias de repercussão teve algumas perdas. Mas nitidamente depois da catástrofe inicial, de alguma maneira esses influenciadores cancelados conseguem se manter.

Pensando de um lado ético e filosófico da questão, o cancelamento até parece uma boa alternativa na sociedade. O raciocínio por trás é de que as pessoas deveriam seguir um código de conduta para que a comunidade possa viver em harmonia e respeito. Então,eu de alguma maneira preciso fazer a minha parte e reforçar para os outros que eles também precisam. Sendo assim, todos os aspectos da minha vida precisam se alinhar (ou pelo menos tentar se alinhar) dentro desse código. Portanto as músicas que consumo, os vídeos que vejo, os filmes que assisto, os influenciadores que sigo, tudo precisa estar refletindo esse código que melhora o tecido social.

Mas isso tem alguns sérios problemas, o primeiro e mais fundamental é que é impossível isso acontecer. Códigos de conduta são perfeitos, por que a vida é muita mais fácil em uma folha de papel do que na realidade material. Na realidade, seres humanos são falhos e irão cometer todos os tipos de erros. Viver em uma realidade esperando que todo mundo vai ser limpo e cheiroso é se enganar e tentar maquiar as coisas.

Isso também só acaba reforçando a nossa sociedade de aparências, onde o erro não tem lugar. Nós temos uma comunidade de pessoas gigantescas(e que continua crescendo) que vivem literalmente dos nossos “likes” em redes sociais. Elas vivem de cliques em páginas de internet e com uma ansiedade constante, pensando até quando serão relevantes e essa relevância será o suficiente para pagar os boletos. É quase que impossível não fingir nesse local, é um terreno fértil para construção de personagens totalmente vazios e sem personalidade. E de nenhuma maneira uma crítica, em sistema falso, é uma questão de sobrevivência.

Em segundo lugar, essa cultura é pouco didática e proveitosa dentro da sociedade, que está sempre procurando evoluir. E esse progresso desejado não é alcançado e sim uma espécie de involução. Primeiro que o cancelamento pede para que a comunidade finja, que a pessoa que cometeu uma barbaridade, não exista. E esse cancelamento nunca é suave, sempre é acompanhado de perseguição e o já famigerado linchamento de reputação. Além da marca que a pessoa recebe “na testa” por tempo indeterminado. Ela sempre será aquele pessoa que cometeu um erro.

E socialmente falando isso é perigoso, não há ensinamento e nem reflexão sobre os erros cometidos, nem da população acusadora e nem da pessoa acusada. Dentro do nosso sistema social, desenvolvemos a justiça, um sistema que deve pegar aqueles que descumpriram o código social já estabelecido, que quebraram as regras do jogo e julgá-los. E a finalidade da justiça em uma concepção moderna não é a punição de uma pessoa, isto é vingança. O sistema deve levar a reflexão do indivíduo e a sua ressocialização(com as suas devidas e realísticas limitações). A pessoa após passar por um sistema de justiça, seja formal ou informal deveria se arrepender do ato cometido, entendendo por que ela estava errada, por que não deveria cometer o erro novamente e entendendo como esse erro afeta toda a nossa organização negativamente.

Para exemplificar os últimos dois parágrafos vamos a mais uma história de cancelamento e linchamento de um influenciador digitar: O youtuber Julio Cocielo.

Durante um jogo da seleção francesa na copa do mundo de 2018, realizada na Rússia, Julio postou no seu twitter uma “piada” relacionando a imagem do atacante da seleção campeã do mundo, Mbappé, com os famigerados arrastões cariocas. Uma frase que de cara foi contestada e apontada como racista. Já que inúmeros atacantes fazem o mesmo que o Francês, alguns de maneira até mais rápida que ele, mas nunca foram associados com crimes, já que são brancos.

Em poucas horas o desastre já estava montado, o tweet do youtuber já circulava pela internet toda, diversos influenciadores e criadores já estavam condenando e falando sobre ele. E mais, sua conta já tinha sido vasculhada e outros tweets muito problemáticos tinham sido encontrados e reverberados pela internet. Por algumas horas, patrocínios, números de inscritos e seguidores estavam comprometidos. Júlio apagou a conta no twitter temporariamente e depois de alguns dias postou um vídeo em sua canal se retratando e pedindo desculpas.

O tempo passou e o mundo voltou a girar normalmente, ele voltou depois de um tempo para o twitter, onde não faz mais postagens como antes(com opiniões, comentários ou piadas), geralmente só usa ele para compartilhar postagens de outras redes sociais.

Pesando retroativamente e agora que toda a poeira abaixou, o que realmente ficou de tudo isso? Será que a justiça, mesmo que informal funcionou nesse caso, será que o Cocielo realmente aprendeu alguma coisa sobre racismo, machismo e respeito a outros seres humanos?

Ele é um dos maiores youtubers do Brasil, tem mais de 13 milhões de seguidores no instagram e a sensação que fica aparentemente é de uma oportunidade perdida. A oportunidade de tentar dialogar com uma pessoa que tem tanta influência com jovens, crianças e adultos. Usar uma plataforma tão poderosa para discutir e refletir sobre temas totalmente sensíveis. Em vez de uma justiça e de aprendizagem, tivemos um linchamento e um cancelamento. Parafraseando a grande Dilma, todo mundo perdeu no final.

E tudo isso leva ao último tópico posto no título e que foi o catalisador deste texto, o jogador Kendrick Nunn. Nunn atua na NBA(a liga americana de basquete masculino profissional) pelo Miami Heat e é uma das grandes revelações da temporada 19–20. Mas diferente de outros calouros e prospectos como o Zion Williamson, Kendrick não seguiu o caminho tradicional de um novato dentro da liga.

A NBA tem uma sistema particular de seleção de novos jogadores, o draft. Para poderem entrar na liga, os novos jogadores se inscrevem no draft, a liga aceita jogadores a inscrição de estrangeiros e de jogadores do basquete universitário americano. Neste draft, as 30 equipes possuem duas escolhas, dividas em duas rodadas. Depois de feitas as 60 novas escolhas de jogadores, os participantes que não foram escolhidos podem assinar com qualquer equipe que tiver interesse neles ou até podem assinar contratos para jogar a G-league, que é uma espécie de Série B da NBA. Mas geralmente esses contratos são bem mais frágeis e curtos em comparação aos firmados durante o draft.

Acontece que Nunn foi “impedido” de participar de todo esse processo por conta da sua ficha criminal. O jogador do time da Flórida, foi acusado e condenado por agredir de maneira verbal, psicológica e física sua namorada da época de faculdade. Ele foi expulso da faculdade que jogava basquete na época e foi condenado pelo tribunal local. Kendrick cumpriu a pena e depois de um tempo foi convidado por outra universidade para voltar a jogar basquete e quando se inscreveu não foi escolhido por nenhuma equipe no draft de 2018.

Kendrick Nunn atuando por seu time, o Miami Heat

Sem ser escolhido por nenhum time, o atleta assinou um contratado para jogar a G-league, por um ano, defendendo o Santa Cruz Warriors. Até que em 2019 a equipe de Miami decidiu dar uma chance para ele e aparentemente ele não estar desperdiçando. O seu início meteórico rendeu alguns incômodos éticos, ao noticiar suas estatísticas surpreendentes muitos veículos não estavam noticiando o porque de que Nunn não ter sido escolhido no draft. Isso incomodou alguns usuários, que acreditam que deve ser reafirmado a condição de Nunn como alguém que já foi fichado por agressão e abuso emocional.

Esses crimes não possuem nenhum tipo de desculpa ou justificativa, são crimes totalmente execráveis e devem ser condenados. Mas por outro lado, ele já pagou as suas contas com a justiça, já foi fichado, condenado e legalmente não está mais em dívida com a sociedade e para o nosso código moral. Será que toda citação a seu nome e feitos, deve vim acompanhada a sua ficha criminal? Não é justamente contra isso que se luta e para isso que o sistema foi criado? Uma pessoa é punida e ressocializada para sociedade, onde ganha mais um chance de fazer tudo certo.

Alguns podem discordar das penas, que não foram muito duras e ele não pagou de verdade, mas aí entramos em uma discussão muita mais jurídica do que pessoal. O jogador não fez as leis e o sistema de punição, não deveria ficar nele o foco de reclamações e sim no sistema que não é justo ou preciso o suficiente.

Essa caça às bruxas e essa marcação permanente são outros dois sintomas dessa cultura de cancelamento e esse entendimento meio distorcido de justiça. Não estamos crescendo mais como sociedade ao caçar os erros de famosos e nem marcado eles como párias da sociedade. Pelo contrário, estamos perdendo oportunidades, uma depois da outra de melhorar como seres humanos e entender o quanto somos quebrados.

Gostou do texto, quer fazer uma crítica, comentário ou sugestão? Vem ser meu amigo virtual, me manda uma mensagem no @BatPreoto ou no leoetec96@gmail.com

--

--

Leonardo Miranda
Didaticamente

Cursa Licenciatura em biologia na UFSCar - Campus Sorocaba. Professor de biologia, Filosofo de internet e Teólogo Amador.