Os seres humanos são quebrados
Nota: O texto possui spoilers de Neon Genesis Evangelion
Todos já sentimos um vazio, é um sentimento recorrente ainda mais em fases deprimidas ou de crises existenciais. Não à toa, inventamos termos e conceitos para tentar expressar em palavras essa sensação. Esse vazio no peito, essa solidão,essa sensação angustiante de estar incompleto. Como se uma peça estivesse faltando nesse sistema complexo que forma o ser humano. Em resumo sentimos vazio existencial que consome o nosso ser..
E se existe um vazio, logo temos que preenche-lo certo?
Essa é a abordagem mais comum entre a nossa espécie, tentar de alguma maneira preencher com experiências externas, algo que está faltando internamente. Tentamos com músicas, filmes, séries, experiências, bebidas, sexo, drogas, videogame e curtidas nas redes sociais Mas não importa o quanto tentamos, esse vazio não fecha, não é como uma ferida que pode ser cicatrizada. Ele se preenche momentaneamente e depois se abre novamente e o ciclo se inicia novamente. A busca por um preenchimento recomeça.
O que nos faz pensar que os seres são quebrados e esse defeito vem de fábrica, está presente em todos nós, sem exceção. A única diferença é que alguns conseguem fingir melhor do que outros. De alguma maneira algumas pessoas transparecem viver plenamente, como se não tivessem problemas. Mas na realidade vivem enterrando a angústia existencial e se habituam ao uso de máscaras sociais que escondem todas as imperfeições inerentes.
E esse vazio(segundo essa lógica) também é o responsável por todos os nossos problemas sociais e psicológicos. É através desse “desequilíbrio” interno que surgem todas as mazelas da humanidade. As doenças, as desavenças, os conflitos internos e externos. Pelo menos, é a tese defendida por uma parte dos personagens do anime Neon Genesis Evangelion.
A narrativa
Evangelion é um anime nada ortodoxo e não possui muitas similaridades(narrativamente falando) com as animações japonesas mais mainstream(inglês desnecessário). Claro que os clichês do gênero estão presentes ali e aqui, como lutas que parecem perdidas, mas são vencidas por uma reviravolta de último segundo. Mas é possível dizer que os clichês ficam por aí mesmo. De resto temos uma total inversão de expectativas e subversão de estereótipos de roteiro.
Podemos notar essa diferença principalmente no modo como a história desse futuro alternativo é contada. Em vez de apostar uma narrativa diretas e direcionada para o espectador. Os realizadores do anime preferem ir contando a história em doses homeopáticas. De frenético só temos as lutas.
Isso dá muito certo em alguns pontos, principalmente para a construção dos personagens. É como ver um quebra cabeça sendo montado peça por peça ao progredir dos episódios. Esse ritmo mais cadenciado se prova necessário e satisfatório devido a complexidade e profundidade abordada pelo roteiro. Principalmente no tema supracitado: a desconstrução de arquétipos.
É muito fácil se tornar superficial se o processo de convencimento não for bem trabalhado e estruturado. Ainda mais em uma mídia que já tem os seus clichês narrativos bem fundamentos e gravados na mente do telespectador. Assim que a animação começa, o nosso cérebro que é ótimo em identificar padrões, já está a pleno vapor. Tentando identificar quem é o mocinho, quem é o interesse romântico do mocinho, quais vão ser os perigos enfrentados e claro, quais os obstáculos que esse protagonista vai superar para salvar o mundo.
E uma narrativa que não vai entregar nada disso, como é o caso de evangelion, precisa ser muito cuidadosa, já que ela vai causar uma óbvia frustração em quem está assistindo. Então Shinji por exemplo, é até alçado ao posto do protagonismo idealizado e até chega a se comportar como se estivesse em um shounen padrão em certos momentos. Mas aos poucos e com delicadeza, essa persona é desconstruídas e nos é apresentado um personagem frágil, medroso e quebrado. A antítese do herói romântico. A frustração da procura de padrões.
Mas essa tática falha em outros aspectos, como por exemplo ao dar informações para o público que não serão aprofundados. Dados que são fundamentais para o entendimento de todo o pano de fundo da história e que são necessários para entender a gêneses dos problemas enfrentados no mundo da animação. Que infelizmente você terá que ir atrás na internet para saber. E aqui não está incluindo pontos abertos a discussão e interpretação. E sim pontos da histórias que são fatos consolidados e que influenciam a narrativa diretamente. Como por exemplo os manuscritos do mar morto, que são documentos fixos. E são nesses documentos que se baseiam as motivações e ações da Seele e de Gendo Ikari. Nesses pontos em específico o espectador vai ser deixado no escuro enquanto assiste.
E outro aspecto que a narrativa trabalha(se bem ou mal vai depender do gosto do freguês) é deixar em aberto muitas informações e conclusões, como a própria questão do vazio existencial. Gendo, afirma que esse vazio é uma qualidade inata do ser humano e ele é o causador de todo o mal, como já foi supracitado. O argumento do comandante é vulnerável. Por segundo ele se trata de um problema genético, que já vem no nascimento preso ao DNA de cada espécie do homo sapiens.
E a instrumentalização humana um projeto que vai unir todas as consciências humanas, seria a cura para esse mal. Assim todas as lacunas serão preenchidas numa espécie de consciência coletiva, resolvendo os problemas da humanidade.
Mas vendo a série, montando esse quebra-cabeça que são os personagens, podemos ver outros pontos comuns que podem ser associados a esses problemas, além do fato de pertencerem à mesma espécie. O roteiro não possui uma resposta fixa sobre esse problema, ficamos só com o argumento de Gendo. A escolha de acreditar nele e interpretar o mundo como ele é nossa. Mas, e se esse vazio for causado por outros fatores, que podem ser resolvidos de maneira muito mais simples do que o uso de tecnologia e vida alienígena para a função de todas as consciências do mundo?
De onde vem o vazio? É inerente ou é causado pelos outros?
Para tentar(já adiantando de antemão que uma resposta concreta e definitiva dificilmente será alcançada) elucidar a dúvida levantada no tópico anterior vamos pegar todos personagens que possuem pelo menos o mínimo de construção na narrativa: Asuka; Shinji; Katsuragi; e Ritsuko
Todos eles possuem mazelas que segundo Gendo são consequências diretas desse vazio existencial inerente aos humanos. Mas além disso, eles possuem uma outra similaridade, todos os quatro,sem exceção possuem problemas não resolvidos com a sua criação. Mais especificamente possuem questões não resolvidas com a figura paterna ou materna que eles tiveram durante a infância. Seus traumas possuem raízes sólidas nos seus primeiros anos de vida.
Asuka perdeu a mãe muito cedo e possui memórias traumáticas dos últimos dias de vida dela. Asuka se mostra uma pessoa muito confiante em primeiro momento. Mas no fundo é totalmente insegura e está querendo se provar a todo momento. Por isso inclusive que decidiu pilotar o EVA. Ela escolheu consciente ou inconscientemente a arrogância e a prepotência como máscaras para esconder sua insegurança e sua fragilidade emocional. Ser melhor que todos e não demonstrar nenhum tipo de fraqueza é o seu jeito de se provar para o mundo.
Shinji também perdeu seu mãe muito cedo e teve um pai ausente em sua criação. Não houve em sua infância uma criação de um vínculo de parental e de carinho com o pai. Foi criado na verdade um sentimento de abandono. Isso criou em Shinji uma enorme insegurança, fazendo ele se sentir culpado pelo abandono. E por isso ele se sente um estorvo para qualquer pessoa em qualquer situação. Tem a frequente sensação de que está incomodando os outros e que ninguém ao seu redor tem um sentimento de apreço por ele. E esse sentimento começa por ele mesmo, visto que não possui um apreço por quem ele é ou melhor por quem ele pensa que é na realidade.
Ritsuko e Katsuragi possuem um pouco menos de desenvolvimento em relação aos dois já citados, mais com a aprofundação que o roteiro dá em alguns momentos, podemos observar traumas enraizados em suas criações. Ritsuko é a menos aprofundada de todas as personagens. Mas a própria personagem cita o ódio que nutria por sua mãe ou pelo menos pelas decisões que sua mãe tomou durante a vida. Decisões erradas, que a própria engenheira também se viu tomando depois de um tempo.
Katsuragi teve um pai ausente(assim como Shinji) que estava sempre focado no trabalho e por isso negligenciava a sua criação. Fazendo com que ela odiasse ele e todo o seu trabalho. Mas inconscientemente ela sempre procurou se ligar a coisas relacionadas ao seu pai, indo inclusive trabalhar no mesmo ramo que ele e na empresa que ele trabalhou. Ela sempre se justificou dizendo que queria se vingar dos anjos(por serem os responsáveis pela morte de seu pai), por isso trabalhava na NERV. Mas podemos perceber que uma parte dela está querendo se ligar com seu pai, obter algo que lhe foi negado durante a infância. Uma ligação que não foi possível enquanto ele estava vivo.
Se partimos do pressuposto que esses problemas sociais e psicológicos foram causados por uma má criação(assim como Gendo parte do vazio inerente), reflexões interessantes surgem.
Será que esse vazio existe inexoravelmente ou nós criamos ele através do tempo? Ou menos que ele exista, será que unir todas as consciências em uma só é realmente o jeito mais acertado de resolver essa questão? A culpa está na aleatoriedade, nos genes, em Deus ou em nós mesmo e nas nossas atitudes?
O pensamento assustador
A resposta de Gendo para os problemas do mundo é muito mais confortável, afinal ela está em algo não controlável, algo que está além dos limites humanos. O acaso quis que as pessoas fossem assim, egoístas, cínicas, hipócritas, frias e sem amor pelo próximo. É reconfortante que a culpa não seja das suas atitudes, mas sim das bases nitrogenadas que compõem o seu código genético.
Já a segundo resposta é bem mais assustadora e intimidadora, por que envolve assumir responsabilidade. A culpa não é do acaso e sim do próprio ser humano. Não é inerente ao ser possui um comportamento totalmente tóxico com o outro. É uma questão de escolha. Gendo escolheu abandonar Shinji, O pai de Katsuragi resolveu individualmente que o melhor era se focar no trabalho e não na criação de sua filha. As mães de Shinji e Asuka não pensaram(ou pelo menos não foi nos mostrado) o que poderia acontecer se os testes dos EVAs dessem errados e seus filhos crescessem sozinhos. Eles se alienam e esqueceram ou escolheram esquecer que as nossas atitudes possuem consequências diretas no outro. E que por mais doloroso que possa ser, nós somos sim, muitas das vezes os responsáveis por traumas, dores e angústias das pessoas ao nosso redor.
A resposta definitiva nunca vamos encontrar para o problema dos seres humanos em evangelion não vai ser encontrada. Mas para o mundo real fica a reflexão de como nos tratam e como tratamos os outros. Sobre como muitas vezes somos os culpados pelos problemas. E em outras não somos e sim quem está próximo. Que a individualidade ao máximo pode machucar demais, assim como a solidão completa. Que a resposta não está em ter tudo ou não ter nada. Ela não está nos extremos, mas sim no equilíbrio.
Felicidade é apenas uma palavra para mim
E talvez significasse uma coisa ou duas
Se eu soubesse a diferençaVazio, uma solitária parodia
E minha vida, outra prova cabal
Um sinal da minha indiferençaSempre guardando dentro
Onde ninguém nunca teve a chance
De abrir uma brechaDeixe-me te contar que alguns tentaram
Mas eu bateria a porta tão forte
Que eles nunca poderiam entrarVivi tranquila atrás da tranca fechada
E nunca derramei uma lagrima
Outro sinal do meu problemaMedo do amor ou vaidade amarga
Que me manteve fugindo
Do que importava na minha confissãoThe Seatbelts — Gotta Knock a Little Harder
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