Sobre racismo estrutural, cabelos e vitimismo

Leonardo Miranda
Didaticamente
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6 min readJan 12, 2019

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“Nossa nação é constituída pela certeza de que o negro é inferior ao branco”

Essa frase é atribuída a Jefferson Davis primeiro e único presidente dos Estados Confederados da América, que era uma nação compostas por estados que queriam se manter escravistas durante a guerra civil americana. E acredito que ela define de uma maneira clara e concisa do que se trata o racismo.

Guerra civil americana: Escravistas x Abolicionistas

É triste que nos dias atuais queiram diminuir o que aconteceu com os escravos e de que seja preciso enormes movimentos para relembrar o que foi feito com o povo preto. A escravidão não só gerou dor e sofrimento, mais como gerou uma estrutura social onde o povo africano e seus descendentes foram colocados na base da pirâmide ou melhor, foram expulsos dessa pirâmide social que nos constitui.

A exploração humana por si só é deplorável, mas o racismo não se limita a isso, o racismo se estrutura em pegar uma certa etnia e inferiorizar tudo o que representa ela. Então tudo o que for africano ou tiver influência dessa matriz cultural será tratado como algo menor e ruim. [1]

E isso é tão nítido que invade até a nossa linguagem coloquial, pense por exemplo em como nos referimos ao cabelo crespo. Qual foi a última vez por exemplo que você disse que um cabelo ondulado era crespo e não usou as expressões populares: “Esse cabelo é ruim”; “Parece uma esponja de aço”.

Pense também em como as religiões de matriz africana são tratadas de maneira depreciativa muitas vezes e na maioria das vezes por ramificações do cristianismo. E esse tratamento é desigual, visto que existem diversas religiões politeístas no mundo, que possuem rituais e crenças parecidas com as africanas, mas só essas vão ser tratadas como culto demoníacos. E possuem construções humanas muito parecidas, criando deuses para fenômenos da natureza que muitas vezes são desconhecidos, não é por acaso que o candomblé também possui um deus do trovão, mas ele não tem filme da Marvel é claro.

Trazer para a cultura pop pode melhorar o exemplo, se pegarmos a origem do personagem Thor, ele é Deus dos trovões e da batalha de uma religião nórdica, que foi e é considerada pagã pelo cristianismo. E mesmo assim não há manifestações contrárias ou de ódio a algo relacionado a ele ou ao panteão de deuses nórdicos. O mesmo com diversos produtos dos deuses do olimpo da religião greco-romana. Agora imagine que nesses produtos estivessem os deuses das religiões africanas, pode se dizer com um certo nível de certeza que haveria muito ódio e manifestações, ainda mais em tempos de rede sociais e governo conservador cristão. [2]

Calma que esse texto não tem a função de ser acusatório como os linchamentos virtuais e sim reflexivo. Todas as pessoas crescem e são criadas e agirem dessa mesma maneira, porque como já foi pontuado anteriormente, se trata de algo estrutural que está à séculos emaranhado na nossa sociedade. E vamos levar um bom tempo para reverter esse cenário.

“Nossa, você é tão bonitinho! Porque não corta esse cabelo?”

“Nossa, você é tão bonitinha! Porque não alisa esse cabelo?”

Essas duas frases não serão atribuídas a nenhuma pessoa em específico, por que seria humanamente impossível contabilizar quantas pessoas já disseram isso ou pior quantas vezes uma pessoa com cabelo crespo já teve que ouvir algo assim, principalmente durante a juventude.

“Alisa “Corta isso ai”

Pode até parecer idiota ficar focando em algo como o cabelo das pessoas, mas não é. Não é, porque a partir desses comentários que surge um dos pilares do racismo estrutural: O roubo da identidade.

Primeiro a frase começa com um elogio, com o propósito de amaciar o que vai ser dito posteriormente. E termina deixando um incógnita em quem a ouve: “quer dizer que eu pessoa é bonita, mais para alcançar realmente e status de definitivamente bonita ela precisa perde os traços que ele foram dados?”

Percebe como isso pode ser confuso, principalmente para uma criança ou um adolescente? Ainda mais se vir de uma figura de autoridade ou da família. Fazendo com que crianças comecem cedo a passar produtos químicos no cabelo e fazendo com que os meninos corram pro cabeleireiro com um crescimento de 1 cm do cabelo.

Gerando um efeito cascata, onde muitos acreditam que para serem bonitos ou aceitos socialmente precisam fazer de tudo para esconderem os seus caracteres naturais. Mas só que a sociedade dizer que é feio, os que são fetiches como os lábios carnudos e quadris largos por exemplo devem ser mantidos.

E isso não só gera efeito em pessoas com cabelo crespo, mais também em pessoas com o cabelo liso. É colocado em sua consciência que seu cabelo é melhor, gerando uma relação de desigualdade social. Transformando o que deferia ser apenas uma bela diferença entre seres humanos em algo danoso.

“Ain, mais é muito mimi, o mundo é assim, corta logo esse cabelo e arranja um emprego” — Comentarista da internet

Essa polêmica é datada, já passou, mas ele muito boa para ser o ponto de partida para uma reflexão. Relembrando, essa moça chamada Yasmin participou do programa Encontro, apresentado por Fátima Bernardes na Tv Globo. No trecho em questão ela dizia ter dificuldades em entrevistas de emprego devido ao seu cabelo e isso logo virou polêmica.

Muitos disseram como ela era mimada, que aquilo era uma escolha dela e deveria sofrer as consequências de não seguir as normas das empresas. E no senso comum isso parece fazer muito sentido, afinal o mundo é assim não é, adapte-se ou morra. [3]

Mas o que parece que não ficou claro para muitas pessoas é o que Yasmin fez é o contrário de vitimismo, é uma denuncia de como as normas muitas vezes não fazem sentido prático. A não ser que Yasmin vá jogar futebol e o seu cabelo atrapalhe ela a cabecear a bola, não há razão para pessoas não a contratarem na maioria dos casos. É totalmente injusto um norma empresarial que não possui um motivo justo e prático. A não ser que a empresa o tenha, está querendo ou não sendo racista e ajudando a manter a estrutura do racismo.

Que atividade empresarial seria objetivamente afetada se você tiver o cabelo comprido. É só imaginar o contrário, que moça com cabelo liso grande tem dificuldades ou é obrigada a cortar o cabelo para conseguir um emprego. Ou pior, se Yasmin voltar para essas empresas com o cabelo alisado, ela seria merecedora e conseguiria o emprego?

Nos dias atuais evidenciar injustiças sociais é vitimismo e isso é feito com intuito de taxar os movimentos sociais como um bando de mimado. Mais é preciso cravar que é totalmente ao contrário, lutar e se posicionar contra o desigualdades é estar lutando por mudanças. Não mudanças para um certa parcela da sociedade ser tratada com privilégios, não, é uma luta para ser tratado como igual.

[1]:Discussão sobre racismo estrutural no Podcast Mamilos 173 — Eu não sou racista.

[2]:Paulo orientando os irmão da igreja de Corinto sobre os deuses e senhores.

[3]:Youtuber Mamãefalei falando sobre Yasmin e a chamando de mimada.

Eles querem que alguém que vem de onde nóiz vem
seja mais humilde, baixe a cabeça
nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda.

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Leonardo Miranda
Didaticamente

Cursa Licenciatura em biologia na UFSCar - Campus Sorocaba. Professor de biologia, Filosofo de internet e Teólogo Amador.