Uma jornada de reparo e (auto)descobrimento

Leonardo Miranda
Didaticamente
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9 min readOct 27, 2021

Nota: o texto pode ter spoilers do jogo sayonara wild hearts.

Sugestão de leitura: o texto está dividido em partes com títulos em negrito, se você puder e quiser, leia o bloco e assim que terminar ouça a música linkada acompanhando a letra pelo spotify ou outro aplicativo/site da sua preferência.

Mas lembrando, só se você quiser e puder.

Ou jogue o jogo e depois leia esse texto (altamente recomendado).

Ou (prometo que é última sugestão) você pode assistir alguém jogando no youtube.

Era uma vez…

A história todo mundo já conhece ou já vivenciou. Duas pessoas se encontram, se completam, se entendem e depois se desentendem e tudo termina.

Fim.

Clichê romântico vivido por toda a humanidade desde os tempos mais primórdios, como cantaria o vocalista de uma escola de samba que está fazendo um desfile sobre o amor e os relacionamentos.

Mas o que vem depois? Há vida depois de um coração ser partido? Ou uma vez ferido o coração não se recupera mais?

Sayonara Wild Hearts pode ter a resposta.

Em um tempo não muito distante, em uma cidade muito parecida com a sua, houve uma jovem que era muito feliz.

Até que um dia seu coração foi quebrado de uma maneira tão violenta que o seu sofrimento ecoou pelo espaço-tempo.

Então, nossa saga começa nesta noite.

Anos atrás.

Apenas aqui.

Há anos luz de distância.

Recomeçando

A verdade é que logo após esse trauma, nós mentimos, para nós mesmos e para todos ao redor. São raríssimas as vezes que somos francos. Afinal refletir sobre o que aconteceu levaria a dor, levaria ao arrependimento, as palavras ditas que doeram e as não ditas que pesam violentamente no inconsciente. Então é melhor esconder, pensar positivo, ficar com o copo meio cheio e recomeçar.

Mas acabamos nos esquecendo que os sentimentos são fluidos, não importa o quanto tentamos represar eles, não iremos vencer a batalha. Uma hora ou outra eles quebram a barragem, por mais resistente que tenhamos construí-la. E aí somos jogados novamente a realidade de sofrimento, que querendo ou não, precisa ser encarada.

Queda

Essa queda geralmente é feia, encaramos o fundo do poço da melancólica sendo hiperbólico ao máximo que o nosso idioma permite. Lógico que na percepção externa isso pode ser um melodrama, mas na individualidade, no seu microcosmo, isto é verdade.

Quando nos damos conta dos nossos erros, dos erros do outro que amávamos, quando percebemos as agressões que sofremos e a que imputamos, o sentimento de culpa e tristeza nos consome.

Ainda mais porque dentro do nosso consciente a falha não está no norte, podemos nos sabotar e sabotar quem está à nossa volta inconscientemente. Mas dentro da psique que podemos controlar os planos são sempre de sucesso.

É o famoso “ninguém começa um relacionamento pensando que ele vai acabar.”

Mas eles acabam, acabam bem, acabam mal, mas acabam em algum momento. Faz parte da nossa trajetória e tudo isso tem uma reação interna. Seres humanos não são muito bons em planejamento em longo prazo, mas quando há um planejamento a carga emocional e laboral depositada é tão grande que uma falha pode nos dilacerar. Por isso mantemos relacionamentos que já deviam ter acabado a tempos, por isso não trancamos a faculdade que odiamos e não nos demitimos de um trabalho que está acabando com nossa saúde mental.

Afinal, você já planejou tantas coisas com essa pessoa, já abriu uma poupança pro apartamento e até já comprou um sofá, como você vai terminar depois de tanto esforço e dedicação?

Já está no último semestre desta graduação que tantos sonham, porque vai trancar se o diploma está logo à frente?

Esse fundo do poço vem daí, de todos os sonhos quebrados que foram construídos com tanta delicadeza juntos. Por todos os momentos bons que não irão se repetir, que só continuaram vivos como memórias.

Como o grande filósofo Neymar muito bem pontuou uma vez, o ser humano tem “saudade daquilo que ainda nem viveu”. Quando algo termina, a dor vem das lembranças, das mágoas, das brigas, mas principalmente vem do futuro, futuro que não irá existir mais. Aquele futuro bem planejado e arquitetado é destruído. E sem ele, acaba a perspectiva.

Preso ao passado

É nesse momento que a tentação bate à porta e na angústia de sair rapidamente do fundo do poço (spoiler: não existe saída rápida) cedemos à tentação e deixamos a nostalgia dos bons tempos e a esperança do retorno entrar.

Nos prendemos aos bons momentos e como éramos felizes e começamos a tratar o término como uma parada momentânea. É lógico que vocês são alma gêmeas, vocês nasceram um pro outro. Essa só é a parte do nosso filme romântico onde tomamos caminhos diferentes, nos desencontramos um pouco e daqui um tempo nos encontraremos por acidente em algum lugar e vamos reacender a chama do amor.

Ledo engano, filmes são ficcionais por um motivo, na maioria eles representam um desejo, desejo de como os humanos queriam que a vida fosse. E a maioria dos filmes românticos representam a visão perfeita dos relacionamentos interpessoais.

Por isso na realidade ficcional existe alma gêmea, existem primeiros encontros mágicos, existem beijos arrebatadores com rodopios no parque de nova iorque. Lógico que a realidade pode ser mágica também, a argumentação não é contrária a isso. Mas no fundo, no fundo , sabemos que ela é mágica de outra maneira.

A magia está em mãos trêmulas e suadas em primeiro encontros, em gaguejos e risadas tímidas na mesa de um grande fast food no centro da cidade. Está em caminhadas até o ponto de ônibus, no “lembrei de você quando vi esse meme” e no boa noite com emoji de coração. Relacionamentos são construídos e não brotam magicamente como em conto de fadas.

E olha só, você perdeu tudo isso, é lógico que você quer voltar a essa realidade amorosa e agradável. Mas ela não volta mais, porque ela não existe.

Você pode até reencontrar a pessoa e até pode reatar aquilo que teve, mas mesmo assim a realidade não será a mesma. Você não será o mesmo, a pessoa não será a mesma. É isso que faz momentos especiais serem especiais, a sua imutabilidade e a impossibilidade de replicação. E apesar de ser destrutivo a realização disso, ela também é redentora.

Porque por meio dela vem a percepção de que o passado nunca será revivido. Mas vem a apropriação de que o futuro pode ser construído e com ele novas possibilidades e novas chances de criar fotografias perfeitas da realidade.

Momentos únicos, imutáveis, indigitáveis, mas memoráveis e eternos.

Choque de realidade

É duro perceber que tudo aquilo que desejamos não vai se realizar, né? Mas é uma das etapas fundamentais para sair desse amargo poço que nos encontramos.

Precisamos nesse momento ter noção da realidade à nossa volta. E não falo no sentido racionalista de menosprezo ao sentimental. Mas sim no âmbito do autoconhecimento. É chocante, é doloroso, mas para continuar é preciso ter noção de onde se está.

Uma jornada de recomeço sem o autoconhecimento é uma jornada pela escuridão sem ao menos uma lanterna. Porque, na escuridão metaforicamente todos estamos, desconfie de quem diz que não está perdido. Mas podemos pelo menos nos apossar de ferramentas, velas, lanternas e lampiões que nos auxiliam nesta jornada.

Mas não existe uma receita de bolo, não existe um caminho mágico para se chegar nesse estágio. Alguns levam meses, outros anos, alguns precisam de ajuda profissional, outros espiritual e outros mais vão se apoiar na arte.

E talvez esse seja um dos grandes empecilhos para continuação da jornada. Parecemos chegar naturalmente uma hora ou outra nesse ponto, mas como transpor ele e melhor ainda, como não voltar para a fase tão cômoda e aconchegante que é a negação da realidade e do autoconhecimento? Por que o choque de encarar a verdade é dura, ainda mais em sociedade. Somos seres que não conseguimos ficar sem um referencial. E em momentos de vulnerabilidade como esses é que vamos receber mais e mais tentativas de auxílios e rotas prontas de como sair desse momento. Rotas que não respeitam a individualidade, que esquecem que cada Psiquê é um universo à parte, moldados por uma vivência e uma percepção intransferível. Existe sim a ajuda em ouvir histórias e compartilhar elas, mas não podemos nos enganar, jornadas como essa são feitas de maneiras únicas e surpreendentemente individuais. E não confunda individual com individualismo. Toda essa jornada precisa ser compartilhada, toda solução está no meio do caminho entre o compartilhamento e a assimilação individual. Por isso que cada um tem o seu tempo e não existem receitas e truques infalíveis para se sair de uma situação como essa.

Precisamos encarar e enfrentar situações e sentimentos, mesmo que negativos, mesmo que levem a um sofrimento momentâneo, só assim que eles serão solucionados. Mas sempre dentro dos nossos limites, das nossas forças, com as nossas ferramentas e o nosso tempo.

Recomeço

Em nosso tempo, com os recursos que temos, vamos em jornada no caminho fora do poço da melancólica. Meio enferrujados e com medo de tudo é verdade, mas o importante é começar.

E geralmente o primeiro passo é o mais difícil mesmo, por conta de se tratar da ruptura. Para nos proteger costumamos construir em volta de nós muralhas gigantescas. Mas assim que começamos a tirar o primeiro tijolo, os demais vão caindo sem muito esforço, assim como em uma partida de jenga.

Assim, aos poucos, como animais domésticos que estão com medo da água do banho estar quente demais, recomeçamos a mergulhar na vida novamente. Percebemos que existe uma vida possível ainda de ser moldada e transformada. Que a quebra de sonhos e expectativas não significa a derrota, mas sim a possibilidade de construir novas realidades. E isso é muito clichê de auto ajuda, mas é um clichê repetido à exaustão porque possui um fundo de verdade. Diferente das receitas de auto ajuda e os 10 passos para felicidade plena, isso é mentira para vender livro mesmo.

Mas o caminho do amadurecimento é transposto por esses ciclos, de construção, vivência, decepção, demolição e reconstrução. Como disse uma vez o filósofo Mario Sergio Cortella de maneira esplendorosa e eu vou parafrasear de maneira muito menos esplêndida aqui:

Seres humanos não nascem prontos, seres humanos não são máquinas e eletrodomésticos, esses sim saem prontos e funcionais de fábrica. Saem com uma voltagem certa, com botões e funções predefinidas. Agora os seres humanos, nascem “não-prontos”. É preciso construir, é preciso educar, instruir e mostrar o caminho. Todos passamos por esse processo, alguns com mais dificuldades, outros com menos. Mas todos nós estamos montando e tentando achar as nossas peças e funções.

E outro clichê de auto ajuda é esse, que a beleza da vida está no potencial de transformação. Claro que não podemos deixar nos enganar e achar que é um caminho fácil e que todos possuem essa oportunidade. Mas quando temos a possibilidade é lindo ver o potencial que nós, como seres humanos possuímos.

Encontrando a sua vibe

No fim (momentâneo) dessa incrível jornada você tem uma grande revelação, uma iluminação divina (estou dramatizando um pouco). E de repente tudo faz sentindo, você percebe o porquê dessa caminhada, o porque você não estava progredindo: Você estava lutando contra o inimigo errado e de maneira errada.

Para sobrevivência mental e física tendemos a fuga ou a indiferença, varremos para debaixo do tapete e tentamos esquecer os acontecimentos. Mas não se resolve a situação assim e foi o que a nossa heroina em sayonara wild hearts entendeu muito bem no fim de sua jornada.

Ela tentou fugir, de skate, de moto, ela tentou matar o passado e os seus sentimentos também. Ela atirou neles com um canhão mágico, cortou eles ao meio com uma espada transdimensional e até atirou flechas de energia mágica neles.

Mas nada disso surtiu efeito, ela descobriu que o único jeito de seguir em frente não é enterrar tudo o que aconteceu. Não é mudar de personalidade e construir muros de proteção. É na verdade abraçar, encarar de frente tudo o que aconteceu, de bom e ruim. E entender que agora tudo isso faz parte de você, o novo você para ser exato. E ao beijar e incorporar isso dentro de si, ela finalmente se encontra ou melhor, ela finalmente acha a sua vibe.

Em um tempo não muito distante, em uma cidade muito parecida com a sua, houve uma jovem que…

Se desapaixonou

Adormeceu

Partiu

Por anos ela caiu através de espirais de tristeza e raiva

Até que não podia mais cair

E voltou

A sua vibe

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Leonardo Miranda
Didaticamente

Cursa Licenciatura em biologia na UFSCar - Campus Sorocaba. Professor de biologia, Filosofo de internet e Teólogo Amador.