Drogas psicoativas, uso recreativo e liberdade cognitiva
Em 2020 iniciei minha reflexão pública sobre maconha.
Neste novo texto, além de refrasear alguns pontos, tentei aprofundar outros tópicos, tendo como público pessoas adultas e informadas, ou com intenção de se informarem.
Falarei sobre drogas psicoativas, uso recreativo e liberdade cognitiva.
Não são temas fáceis, especialmente para alguém como eu, não acostumado a escrever sobre eles. Para quem não me conhece, costumo escrever sobre design e cultura organizacional, liderança, gerenciamento de produto digital e estilo de vida mais intencional e essencialista.
Mas, aqui vai minha tentativa. Recomendo que reflita, questione e confirme as informações com pesquisas próprias.
Este texto não irá explorar os já conhecidos potenciais benéficos da maconha e psicodélicos como ferramentas para a saúde. Porém, coloquei um tópico no fim do texto chamado “Referências rápidas sobre os efeitos da maconha e psicodélicos na saúde” para quem desejar saber mais. Confira.
Entre em contato ou comente caso:
- perceba alguma linha de raciocínio ou citação equivocada.
- tenha alguma sugestão para enriquecer a discussão, tornar mais explícito algum argumento ou estruturar tópicos de forma que facilite o entendimento.
- deseje se conectar para conversar sobre o assunto.
Lembrando que me dou o direito de ignorar ou deletar comentários seja por discurso de ódio ou moralista, falácias ou conselhos sobre meu estilo de vida.
O que são drogas psicoativas?
“Drogas psicoativas são substâncias que, quando ingeridas ou administradas no sistema de uma pessoa, afetam os processos mentais, por exemplo: percepção, consciência, cognição ou humor e emoções”, de acordo com a Organização Mundial de Saúde.
Ou seja, muitas substâncias aceitas socialmente estão inclusas nesse conceito. Desde bebidas e alimentos como café, chocolate, açúcar, álcool e muitos outros. Até remédios comuns.
“Todos conhecemos as propriedades alucinógenas das drogas psicodélicas — mas os medicamentos comuns podem ser igualmente potentes. Do paracetamol a anti-histamínicos, estatinas, medicamentos para asma e antidepressivos, existem evidências de que eles podem nos tornar impulsivos, irritados ou inquietos, diminuir nossa empatia por estranhos e até manipular aspectos fundamentais de nossas personalidades (por exemplo, o quão neuróticos somos)” — fonte: Os remédios que podem mudar quem você é.
Para exemplos práticos, procure nas bulas dos seus remédios expressões como confusão mental, sonolência, irritação, nervosismo ou até recomendação para não dirigir veículos pois sua habilidade e atenção poderão ser prejudicadas.
Michael Pollan, jornalista e autor de livros sobre alimentos, plantas e psicodélicos, disse em uma entrevista que uma das experiências mais fortes que ele já teve com drogas foi ao tomar café após 3 meses sem uso.
De forma geral, todo mundo usa drogas, ou a maioria das pessoas, mesmo que não perceba isso.
Impacto das drogas na vida das pessoas
Ao falar de drogas, talvez a maior preocupação seja o impacto na vida das pessoas. Infelizmente, algumas pessoas se viciam, se tornam dependentes, abusam ou sofrem efeitos indesejados. E isso não depende apenas da substância mas, especialmente, do contexto das pessoas: passado — traumas e abandono, relações sociais, senso de pertencimento, oportunidade de atividades diversas, necessidades básicas atendidas, etc.
O perigo acontece não só com drogas ilícitas, mas com muitas outras coisas da vida.
Por exemplo, há casos de dependência de cafeína, açúcar, nicotina e álcool. Dependência de medicações de farmácia.
Dependência de smartphones — nomofobia, ansiedade por afastamento do celular. Um campo de estudo que está atualmente em estágios iniciais de pesquisa e demonstra relação com desenvolvimento de transtornos de personalidade e problemas mentais, físicos, educacionais e sociais.
Vício em exercícios — vigorexia — às vezes descrito informalmente como uma anorexia ao contrário, gerando prejuízo para a vida das pessoas.
Ou seja, deu para ter uma ideia do quão somos suscetíveis, dependendo do contexto e da falta de cuidado.
Então, ao ouvir alguma história sobre drogas psicoativas ou conversar sobre o assunto, penso ser necessário observar algumas variáveis e se fazer algumas perguntas:
- princípio ativo: quais os princípios ativos da substância?
- interação medicamentosa: quais possíveis interações e efeitos com outras substâncias?
- quantidade: qual a quantidade ingerida do princípio ativo?
- duração e recorrência: qual a duração do uso e recorrência?
- contexto: qual é o contexto? como o ambiente está configurado? quem são as pessoas envolvidas? no contexto atual, a pessoa tem oportunidade de se envolver em outras atividades benéficas a ela?
- fisiologia e estado mental: qual fisiologia e estado mental da pessoa que ingere os princípios ativos? a pessoa se sente pertencida e acolhida?
- legislação: qual a legislação vigente sobre esses princípios ativos? isso impacta em como a pessoa se percebe, como as outras pessoas a percebem e reagem, e outras implicações.
Será que isso tudo é realmente levado em conta quando ouvimos uma história recortada de uma perspectiva isolada, cheia de reprovação e censura sobre alguma droga? É possível que você perceba que não tinha informação suficiente para julgamento quando ouviu histórias relativas a drogas e que os recortes delas tinham preconceitos perigosos.
Guerra às drogas
Quem julga o que é moral e o que pode ser usado individualmente ou não? Baseado em quê? Infelizmente a ciência ainda não parece ser a principal ferramenta para decidir políticas de drogas.
A guerra às drogas, talvez esteja mais para uma guerra aos pobres e pessoas negras.
E, ao mesmo tempo, ela é um fracasso, pois não conseguiu acabar com ou diminuir a oferta de drogas ilícitas.
Só traz prejuízos e não protege ninguém. Pelo contrário, causa mortes e violência. Além de gasto público desnecessário com esse modelo ineficiente.
Se você acha que não, eu imagino ao menos um dos dois motivos abaixo.
(1) Você talvez seja uma pessoa branca da classe média-alta. Pergunte a algumas pessoas negras e pobres sobre os impactos que a guerra às drogas trouxe a elas, amigos e familiares. Como complemento ou alternativa, também pesquise sobre isso.
(2) Você talvez tenha vivido ou ficou sabendo de uma história triste de alguém próximo — parente ou amigo — que não conseguiu administrar o uso, ou teve um efeito indesejado, e você considera que, isoladamente, o problema foi a droga em si, sem levar em conta outras variáveis. E daí, acha que o caminho é lutar contra as drogas.
Lamento o que possa ter ocorrido. E respeito sua história.
Porém, apoiar essa guerra talvez faça você contribuir para que mais pessoas sejam impactadas negativamente e tendo experiências tristes como a que você passou. Ou seja, imagino que seja exatamente o inverso do que você desejaria que acontecesse.
A população merece mais pesquisas contínuas para o avanço científico nesses temas, mais informação disseminada e mais apoio na redução de danos.
Proibir, criminalizar, penalizar e evitar o avanço da ciência sobre drogas é perpeturar efeitos perversos na sociedade — discrimação, morte, violência e uso prejudicial.
Quanto menos ciência envolvida, mais potencial para tabu, desinformação e prejuízo.
Eu respeito a ignorância e até o equívoco temporário de nosso julgamento, mas apenas quando não utilizados para prejudicar ou limitar outras pessoas. E quando não utilizados como troféu ou algo perpetuado.
Sou ignorante em diversos temas e perspectivas. E por isso me vigio constantemente com meus julgamentos e tento me questionar e aprender diariamente. Desejo que juntos possamos aprender mais.
Uso recreativo 🆚 uso terapêutico
A dicotomia entre uso recreativo <> uso terapêutico tem rodeado meus pensamentos há um bom tempo. Seja na discussão sobre maconha ou psicodélicos.
Será que há mesmo uma linha que divide estes usos e em quais condições?
Recreação
Para começar a explorar posso definir o que considero recreação.
Há ao menos duas formas de se interpretar. Para esse contexto escolho a definição de recriar, criar de novo, dar novo vigor.
Aberta ao novo. Entretenimento libertário. Estimulante da criatividade e não da produtividade. Artística. Intencional.
Apesar de algumas pessoas usarem o termo “recreativo” como algo pejorativo, ele “nem sempre significa frívolo, descuidado ou despropositado”, disse Bob Jesse — uma pessoa que “trabalhou incansavelmente, muitas vezes nos bastidores, para fazer com o que o renascimento das substâncias psicodélicas decolasse”, de acordo com Michael Pollan no livro Como mudar sua mente, que aborda o tema psicodélicos.
A expressão “uso recreativo” costuma ser usada para trivializar a experiência, porém, no sentido literal, recreação implica definitivamente algo não trivial, ainda de acordo com Bob Jesse.
Podemos aqui não limitar essas reflexões apenas ao uso de psicoativos mas expandir para as várias formas de recreação.
Recreação é importante. Assim como lazer e ócio. Atividades que não dependam do acúmulo material. Tempo que não precise ser preenchido constantemente de forma produtiva.
Respeitar as várias formas que as pessoas se recreiam é imporante.
Suporte para recreação de forma responsável e segura para a própria pessoa quanto para as outras é importante.
Não significa que a vida deveria ser apenas recreação. Mas que ela seja um dos aspectos importantes para cuidarmos em nossas vidas, dentre vários outros. E não significa que recreação seja sinônimo de substâncias ou atividades específicas. Recreação é plural.
E como com qualquer atividade ou substância, seja para recreação ou não, é necessário informação e cuidado. Especialmente quando há risco de uso inadequado ou possibilidade de efeitos indesejados.
Na questão de psicoativos, é importante não fazer uso imprudente. Cada um atua de forma diferente e tem suas particularidades.
Vários psicodélicos trazem experiências intensas, duradouras e extraordinárias. Duradouras tanto do ponto de vista dos efeitos psicodélicos, que levam horas, quanto também de memórias e efeitos práticos na vida após o uso.
Falarei sobre os cuidados que considero importantes em um tópico mais abaixo: “Liberdade Cognitiva”.
Terapêutico
E o que seria terapêutico? Aquilo que tem propriedades de cura ou tratamento de doenças. Ou, me arrisco a expandir como aquilo que tem a capacidade ou potencial de tratar problemas emocionais, comportamentais e psicológicos ou cuidar desses aspectos.
Não acho justo associar e dar exclusividade da palavra apenas a algo assistido por um profissional credenciado. Não que eu ache desnecessário esse apoio, pelo contrário, mas acho que há casos específicos para isso — ao menos levando em conta substância ou atividade, intenção, ambiente, efeitos e riscos.
Em contrapartida, nada impede de ter uma experiência recreativa guiada por alguém experiente no contexto, seja em algo classificado como terapia recreativa ou não.
E, ainda é possível, mas não garantido, que o uso terapêutico também revele qualidades do que é recreacional, mesmo quando não sendo intencional. Por exemplo, em algum tratamento farmacológico, pode acontecer dos efeitos no sistema nervoso central potencializar o abrir-se ao novo, recriar, entreter-se de forma libertária e estimular criatividade. Como no caso da recreação.
Recreação é terapêutico
É possível questionar se faz sentido, e até que ponto, diferenciar o uso recreacional e terapêutico da maconha.
Se assumirmos que a recreação, e a própria maconha, possuem propriedades terapêuticas, podemos entender que seu uso também seja terapêutico, mesmo que implícita ou indiretamente.
Talvez apenas não seja comum a escolha de cepas ou dosagens específicas para tratamento de doenças, síndromes ou transtornos específicos, como no caso de quando é usada a distinção para falar de uso terapêutico.
O próprio uso transcedental poderia ser interpretado como terapêutico — minha definição de transcedência aqui são as percepções para além de si. Tomadas de novas perspectivas. Percepção da interconexão das coisas. Nada místico ou sobrenatural.
E considero ambas formas importantes para ajudar a nos distanciar do pensamento linear e rígido, da identidade fixa e da neurose*. Assim como outras formas terapêuticas.
Conhecer bem a substância ou a atividade de recreação pode potencializar seu uso terapêutico, e abranger outras possíves aplicações com suas propriedades de cura.
*Utilizo o conceito de neurose com o significado que a somaterapia traz: “um produto das sociabilidades autoritárias, reproduzida em todas as esferas da convivência social (família, trabalho, meio social como um todo) interferindo nas atitudes, comunicações e percepções da individualidade”. Nos lembrando que “a neurose mediocriza a vida”.
Diferenciações sobre o uso
Acredito que por trás da diferenciação entre recreativo e terapêutico, no momento político atual, exista um desdobramento de:
- uso medicinal receitado ou guiado por profissionais 🆚 uso autônomo da forma que lhe convier.
- cultivo e acesso controlado por terceiros credenciados 🆚 cultivo e acesso livre à planta ou aos elementos naturais sem depender de terceiros.
- componentes isolados ou manipulados — dependendo de um processo para extração e controle dos componentes 🆚 composto natural completo (plantas ou fungos).
Se esse desdobramento fizer algum sentido e a escolha estiver sendo muito mais o lado esquerdo dessas diferenciações acima, então a discussão parece ser muito mais econômica, e até moralista, do que sobre a saúde das pessoas.
Mesmo com proibição ou criminalização, as pessoas já fazem uso de substâncias para o uso autônomo e com acesso mesmo que de forma clandestina. E muitas vezes já fazem o cultivo das próprias plantas e fungos que possam conter componentes psicoativos.
Evitar aceitar essa realidade e evitar dar suporte para redução de danos de forma legal, potencializa ainda mais prejuízos para a saúde da população.
Ao mesmo tempo, apesar do perigo de ter um foco mais na perspectiva econômica, talvez ainda tenha sua utilidade e seja importante para o momento político. Não estou certo, mas veremos ao longo do tempo como isso se desenrolou.
Ao focar em algo aceito por vários grupos, incluindo os mais moralistas, e os que possuem dinheiro, poder ou influência, potencializa um avanço na discussão legal, no ecossistema e na expansão da discussão posteriormente.
Seguindo minha interpretação de Greg Satell sobre mudanças transformacionais, seria quase que improvável avançar sobre todos os aspectos do tema de uma vez, enquanto esses outros grupos se opusessem aos passos iniciais.
O perigo é que enquanto podemos observar avanços em alguns períodos da história, em outros, observamos retrocesso. Não parece existir um progresso linear e contínuo no campo político e moral.
A realidade é complexa. E os desafios são diários.
Apesar de eu restringir a discussão acima apenas ao uso medicinal da cannabis, é importante lembrar que ela oferece várias outras possibilidades de uso em outros setores, como o têxtil. O que dá ainda mais peso sobre a perspectiva econômica.
Greg Satell é autor de Cascades — How to Create a Movement that Drives Transformational Change. Se interessar, veja um resumo em português que já publiquei: Efeito Cascata — Como criar um movimento que impulsione mudanças transformacionais.
Maconha: novos negócios e acesso a medicamentos
Por enquanto, me parece que quem mais tem se beneficiado com a discussão de novos negócios e medicamentos legalizados sejam as pessoas brancas e ricas.
Seja pela possibilidade de investir e criar produtos nesse mercado cannábico ou pelo acesso aos medicamentos caros à base de maconha.
E, curiosamente, para esse grupo de pessoas a maconha já é legalizada há anos:
- podem importar produtos de outros países desde 2014/2015, quando a Anvisa autorizou a importação de alguns medicamentos feitos com maconha.
- podem comprar medicamentos legalizados em farmácia brasileira, como o Mevatyl, desde 2017/2018 por um preço médio de R$2.700.
- quase não há qualquer tipo de punição pelo uso de drogas ilícitas.
- algumas pessoas desse grupo até se sentem mais confiantes em plantar seus próprios pés de maconha para consumo próprio, sabendo que dificilmente terão sérios problemas com a aplicação da lei atual.
Bem diferente do que acontece com pessoas pobres e negras.
Não possuem dinheiro para investimento para novos negócios no setor. Não possuem dinheiro para as medicações legais. E sofrem consequências negativas de outro nível ao fazer uso pessoal de maconha.
Ao fazerem uso, sofrem maior discriminação. Violência. Abuso de autoridade. Muitas vezes são encarceradas como traficantes em vez de usuárias, em casos que não são. E, às vezes, sofrem com terceiros plantando evidências.
O texto Guerra às drogas, guerra aos pobres diz que “o artigo 28 da lei prevê que os consumidores de entorpecentes só podem ser punidos com advertência, prestação de serviços à comunidade ou obrigação de comparecer em programas ou cursos educativos. Os traficantes, porém, são enquadrados no artigo 33, com penas que variam de 5 a 15 anos de prisão em regime fechado. Porém, ao não estabelecer critérios claros, como quantidade de drogas, para diferenciar usuários de traficantes, o texto legal deixou margem para interpretações mais rígidas da lei.”
E, continua, dizendo que “na prática, a diferenciação passou a ser feita por policias, promotores e juízes com base em vieses de raça e classe social. Pesquisadores e ativistas apontam que a polícia e o sistema de justiça criminal passaram a enquadrar usuários de drogas pobres e negros como traficantes, transformando a lei em uma ferramenta de controle da população negra”.
Precisamos ter cuidado ao julgar um ato apenas por ser considerado ilegal e ao ler relatos de casos de aplicações das leis.
O que torna algo ‘ilegal’ são as leis e as interpretações que autoridades legais fazem delas. E em alguns momentos o problema são as leis, não as pessoas. Como o jurista uruguaio Eduardo Juan Couture (1904–1956) registrou em LOS MANDAMIENTOS DEL ABOGADO, numa tradução livre: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”.
É importante continuarmos lembrando das pessoas que mais sofrem discriminação com esse assunto hoje.
Não dá pra depender apenas das grandes indústrias e de medicamentos caros.
Defender o cultivo próprio e coletivo de maconha são pautas importantes neste contexto.
Aos poucos, o STJ tem liberado o cultivo para algumas pessoas e associações por meio de habeas corpus preventivo, com o intuito de se evitar, futuramente, uma condenação com sua posterior restrição de liberdade.
Atualmente temos associações como Abrace, Apepi, Cultive e a Flor da Vida nesse contexto. Ajudando milhares de pessoas no Brasil.
Tomar decisões sobre leis não é algo fácil ou simples.
Há diversos fatores envolvidos. É difícil prever os efeitos por se tratar de um cenário complexo. E, por isso, as leis precisam ser mais ágeis e adaptáveis à realidade.
O que sabemos é que a guerra às drogas não funciona. A leis atuais precisam de revisão, assim como suas aplicações.
Liberdade cognitiva
Além disso, precisamos respeitar e promover a liberdade cognitiva: “a liberdade de um indivíduo de controlar seus próprios processos mentais, cognição e consciência”. Ou, “direito pessoal e intransferível de exercer com autonomia a gestão das tecnologias disponíveis para alteração dos próprios processos químicos cerebrais”.
Caso deseje saber um pouco mais sobre o assunto na forma de vídeo, recomendo assistir esse vídeo com menos de 15 minutos: Liberdade Cognitiva: Por que precisamos URGENTEMENTE falar sobre isso?
Além da discriminação sob aspectos do tipo de uso terapêutico (medicinal) versus recreativo (uso adulto) como falado mais acima, também há discussão entre uso religioso versus uso secular versus uso por profissionais de saúde.
Mas não dá pra classificar o seu próprio uso como importante, sagrado ou moralmente correto, e da pessoa ao lado como futil ou moralmente errado. E nem classificar algo como mais seguro, apenas por estar em um contexto místico ou ser rotulado como espiritual.
Podemos ampliar essa questão da liberdade de escolhas pessoais do que fazer ou usar para outros assuntos.
Algumas pessoas preferem viver sob efeito contínuo de remédios controlados, sem experimentar qualquer mudança no estilo de vida.
Algumas pessoas decidem se alimentar quase que exclusivamente de produtos industrializados. Outras se entopem de alimentos com açúcar, sal ou óleo.
Outras se viciam em trabalho e não investem tempo para manutenção das relações ou para cuidar de si mesmas emocionalmente.
Algumas se fecham no conforto da modernidade e praticam o sedentarismo em seus sofás.
As escolhas desses exemplos acima, podem ser consideradas maléficas para saúde a longo prazo da própria pessoa já que tendem a piorar a qualidade de vida.
E, em geral, mesmo assim respeitamos. Afinal, a pessoa faz o que deseja com sua vida. Mesmo que nossa intenção é que tenham uma boa vida.
Então, por qual motivo não respeitarmos também a liberdade cognitiva de cada pessoa?
Muitas pessoas fazem bom uso dessa liberdade, influenciando seu processo mental, cognição e consciência através de atividades ou substâncias.
Mesmo atividades físicas comuns, como uma longa caminhada ou corrida, podem alterar nossos processos mentais pelas substâncias que nossos próprios corpos fabricam ou manipulam. E muitas vezes fazemos isso de forma intencional, buscando os efeitos que produzem.
Algumas pessoas ouvem músicas para alterar seu estado emocional. Algumas intencionalmente escolhem músicas para focar, para relaxar ou para energizar.
Algumas pessoas utilizam técnicas de meditação ou técnicas de respiração — até mesmo a respiração holotrópica, que pode exercer efeitos intensos na psique.
Algumas usam psicoativos, como maconha ou psicodélicos, como ferramentas para melhorar sua saúde, ampliar sua percepção de si e do mundo, e colaborar positivamente para sua interação com o mundo e para a própria sensação de satisfação, enquanto mantendo habitos saudáveis.
Ainda que, algumas pessoas possam também fazer mau uso de sua liberdade cognitiva e prejudicar a si mesmas. Como tudo na vida.
Sei que o assunto liberdade é um assunto filosófico muito mais profundo e com linhas tênues dependendo da complexidade do contexto. E é necessária uma discussão sob várias interpretações e até caso a caso por vezes.
Porém, por regra geral, a liberdade deveria existir e ser respeitada enquanto não se expresse em ações ou opiniões públicas que coloquem em risco a vida de outras pessoas.
Desejo que cada pessoa faça um bom proveito de sua liberdade, seja mais intencional e tenha um maior conhecimento dos possíveis efeitos do que utiliza ou faz.
Cuidados
Seja qual for o uso de substância ou realização de atividade na vida, considero importante:
- entender as intenções com o uso de substância ou realização de atividade.
- pesquisar e conhecer o que desejamos ingerir ou fazer.
- entender os possíveis efeitos, sob quais dosagens ou intensidade.
- avaliar interações medicamentosas com outras substâncias.
- avaliar a procedência e se é mesmo o que você imagina, caso seja uma substância.
- avaliar se você tem potencial de estar no grupo de risco. Toda substância tem grupo de risco.
- entender o seu contexto atual: ambiente, estado mental e físico. É o melhor momento, ambiente, ritual e grupo? como está se sentindo?
- entender se o mais adequado é fazer algo a sós, acompanhado ou guiado por alguém.
Além disso, considero de extrema importância:
- tomar cuidado para que não se torne apenas uma ferramenta contínua de fuga, supressão emocional e não-aceitação do momento de vida.
- tomar cuidado para não prejudicar outros seres, incluindo a si mesma, ou indiretamente potencializar esse risco.
- tomar cuidado para não abrir mão de valores de vida e outros aspectos de vida que considere importantes.
Caso uma pessoa caia nessas armadilhas, recomendo fortemente que:
- pare, reflita sobre sobre os vários aspectos da sua vida e tome medidas apropriadas para administrar o uso da substância ou realização da atividade com os outros aspectos;
- e/ou procure ajuda especializada para apoio.
Estou abordando esse tópico sob a perspectiva de uso por pessoas adultas, por vontade própria, de forma segura e responsável, com conhecimento e ambiente apropriados. Sabendo que algumas substâncias e atividades demandam mais cuidados que outras.
Psicoativos
Jamais pressione alguém a tomar qualquer psicoativo.
Por questão de saúde, crianças ou adolescentes deveriam evitar substâncias intencionalmente psicoativas — lícitas ou não — e só fazerem uso com recomendação médica — preferenciamente tendo uma segunda opinião — para casos específicos ou como último recurso para tratamento de alguma doença, síndrome ou transtorno.
É o caso de muitas crianças e adolescentes, no qual o óleo da maconha é utilizado para tratar problemas severos. Uso estritamente medicinal.
Por falar em adolescentes, o perigo deles usarem maconha de forma autônoma e sem recomendação médica, não é dela “matar neurônios”. Pelo contrário.
Numa entrevista, Sidarta Ribeiro (neurocientista), disse que a maconha “promove neurogênese e as conexões entre os neurônios de novas sinapses”. E, continua, “se essas substâncias induzem isso, por que é ruim para os jovens? Eles já têm muitos neurônios e sinapses, mais do que os adultos e as pessoas longevas, e, portanto, um excesso de neurônios e sinapses pode ser deletério.”
Em outro texto, Sidarta complementa que “maconha é mais benéfica para os mais velhos do que para os mais novos, e não deveria ser consumida por adolescentes — a produção de neurônios e novas sinapses é abundante na juventude e vai decaindo com a idade.”
Mas, mesmo adultos precisam de cuidado. Não só os cuidados comentados mais acima, incluindo saber se está no grupo de risco. Pessoas com predisposição à psicose podem acabar vivenciando experiências psicóticas com o uso de psicodélicos e maconha com alto teor de THC. [*]
Quanto mais proibição, criminalização e penalização MENOS pesquisa científica, informação, suporte adequado e confiabilidade sobre as substâncias. MAIS ignorância, tabus, riscos, uso inadequado, discriminação, violência e mortes.
O status de ilegal carrega os efeitos colaterais pois “você não sabe a procedência do que está consumindo, não tem informação adequada sobre como consumir e não consegue aproveitar o real potencial dessas substâncias psicoativas naturais, por serem proibidas”.
A militância moralista não salva ninguém. Mas ela tem o potencial de criar conflitos e matar direta ou indiretamente.
Considero importante continuarmos trazendo à tona mais informações científicas, incentivar mais pesquisas, difundir conhecimento, discutir leis, benefícios e perigos de substâncias, fomentar mais rigor de qualidade às substâncias, escancarar preconceitos, reduzir danos e falarmos mais abertamente sobre esses assuntos.
Seja para maconha, psicodélicos e outras substâncias.
Essas ações podem ser especialmente importantes a serem tomadas por pessoas que já possuem algum escudo de privilégios, influência na discussão de leis, na propagação de informações ou possuam pesquisas ou atividades científicas nessa área.
E, por sorte, há muitas pessoas no Brasil ajudando na discussão mais ampla sobre esses assuntos. Para citar apenas algumas que me vêem a mente de forma rápida: Sidarta Ribeiro (neurocientista), Eduardo Schenberg (neurocientista), Emílio Figueiredo (advogado), Carlos Minuano (jornalista) e Priscilla Praude (psicóloga).
É necessário continuarmos avançando contra a guerra às drogas de forma geral e ampla. Por menos tabus, discriminação, imposição, submissão e produtividade constante. Por mais informação, reflexão, lazer, recreação das mais variadas formas, liberdade cognitiva e flexibilidade psicológica.
[*] Há um estudo que sugere que a desregulação imunológica modifica a associação cannabis-psicose e de que indivíduos com predisposição biológica são mais sensíveis quando em exposição à cannabis. E um outro estudo, com adolescentes, sugere que experiências psicóticas com o uso de cannabis foram associados à expansão reduzida dentro de uma região específica da formação do hipocampo/para-hipocampo direito, o uncus.
Psicodélicos, rituais religiosos e estudos
É importante levar em conta e aprender com o conhecimento empírico de alguns povos com determinados psicoativos e rituais.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar possibilidade de mau uso em determinadas situações, particularidades relacionadas ao contexto e limitação no conhecimento adquirido. Afinal, conhecimento é dinâmico e temos oportunidade de continuar aprendendo.
É importante respeitar outras formas de usos e contextos, além de integração de outros conhecimentos e vivências.
E também é importante incentivar o avanço contínuo nos estudos e nas metodologias utilizadas para estudar essas substâncias.
A forma de se estudar psicodélicos está passando por aprendizados e avanços já que “[…] é difícil, se não impossível, conduzir pesquisas com psicodélicos utilizando placebos: a maioria dos participantes sabe dizer se recebeu a psilocibina ou o placebo, e o mesmo vale para seus guias. Além disso, ao testar essas drogas, como os pesquisadores poderão separar o efeito químico da influência decisiva do ambiente e do cenário? […] como a medicina ocidental poderá avaliar uma droga psiquiátrica que parece funcionar não exatamente por seu efeito farmacológico, e sim por provocar certo tipo de experiência na mente?” — Michaell Pollan no livro Como mudar sua mente.
Mas Dráulio Barros de Araújo, pesquisador científico em temas de psicodélicos, já realizou estudo com Ayahuasca no Brasil no qual “a substância utilizada como placebo não foi psicoativa, mas induziu um leve desconforto gastrointestinal e simulou algumas propriedades organolépticas da ayahuasca. É um líquido marrom com sabor amargo e azedo, contendo água, fermento, ácido cítrico, sulfato de zinco e corante caramelo.” — Cortisol Modulation by Ayahuasca in Patients With Treatment Resistant Depression and Healthy Controls.
Apêndice
Sobre a lista de substâncias que a Anvisa regula
Na lista da Anvisa, a planta da maconha encontra-se na lista E (plantas proibidas) e o THC (tetrahidrocanabinol) na lista F2 (substâncias psicotrópicas proibidas), item 155. Já o CBD (cannabidiol) está na lista C1 (substâncias sujeitas a controle especial).
Lembrando que mesmo em proporções diferentes ambos componentes são psicoativos. E ambos podem ter benefícios terapêuticos.
De qualquer forma, alguns medicamentos contendo THC têm sido liberados pela Anvisa, que especificou dosagens máximas de 30mg por mililitro ou menos de 0,2%.
E isso nos leva a uma discussão ética-filosófica sobre a proibição do próprio cultivo e consumo de plantas ou fungos.
No caso de cogumelos mágicos (psilocybe cubensis) não há referência na lista da Anvisa, apesar de um dos seus componentes, a psilocibina, estar como item 147 da lista F2 (proibido).
De igual forma, o cacto são pedro (echinopsis pachanoi) também não está na lista, mas um de seus componentes, a mescalina está no item 139 da lista F2 e o cacto peyote (lophophora williamsii), que também possui mescalina, é citado no adendo da lista E (plantas proibidas).
Esses casos trazem ambiguidade pois o cultivo e consumo para fins próprios tanto do cogumelo mágico quanto do cacto são pedro não são explicitamente proibidos, apesarem de conterem substâncias psicotrópicas.
E além de tudo isso ainda há a discussão sobre tentativa das indústrias em criar patentes dos derivados, sintéticos ou não.