Vida experimental baseada em mecanismos da evolução

Cali (Renato Caliari)
(di.de)vagar
Published in
12 min readAug 11, 2022

Há algum tempo atrás li o livro Why Greatness cannot be planned — The myth of the objective (tradução livre: Por que algo grandioso não pode ser planejado: O mito do objetivo), dos autores Kenneth O. Stanley e Joel Lehman.

Além de eu me engajar com o tema principal do livro — ‘objetivo’ — que foi um dos motivos de eu ter escrito o texto Metas em organizações: perigos e alternativas, o pano de fundo sobre inteligência artificial e evolução, apresentado no livro, também me trouxe reflexões e insights sobre uma vida experimental.

Evolução — busca-descobridora-e-geradora de novidade

A linha que usarei para falar de evolução é inspirada no livro citado. Essa não é a única possível forma de entender a evolução. Mas é uma lente útil para utilizarmos nesse contexto.

Os autores do livro propõem que a evolução não tem um objetivo em si. Ela seria uma busca-descobridora-e-geradora de novidade (novo, original ou incomum), e não algo planejado e dirigido. Não um trajeto rumo a algum lugar.

A tentativa de chegar a um resultado premeditado não permitiria chegar a essa diversidade e complexidade que chegamos.

Os autores usam a expressão “stepping-stones” para falar sobre essa busca-geradora. Isso faz referência àquelas pedras, muitas vezes em caminhos sinuosos ou sobre rios, onde uma pessoa pisa para explorar as proximidades e encontrar novas pedras como possibilidades interessantes para fazer novas explorações a partir dali. E assim vai enquanto encontrar novas pedras.

um rio, aparentemente raso, cheio de pedras expostas, passando entre uma mata. crédito da imagem: https://www.pexels.com/

A tradução literal do termo “stepping-stones” para o português seria algo como “trampolins” mas acho que não daria a mesma nuance dos autores. Acredito que uma tradução livre para nosso contexto poderia ser “pedras de transição”. Experenciamos elas enquanto descobrimos as próximas, a partir delas.

As pedras que vamos pisando, se acumulam como potencializadoras para descoberta de novas pedras e caminhos. À longa distância, não é possível prever onde o caminho dará e nem onde estarão as próximas pedras.

Muitas descobertas só são possíveis a partir do acúmulo dessas pedras de transição. No momento em que chegamos nelas.

Nas palavras dos autores:

Por exemplo, o primeiro computador foi construído com tubos de vácuo, que são dispositivos que canalizam a corrente elétrica através do vácuo. No entanto, aqui está a parte estranha: a história dos tubos de vácuo não tem nada a ver com computadores. Pessoas como Thomas Edison, que originalmente se interessavam por tubos de vácuos estavam investigando eletricidade, não computação. Mais tarde, em 1904, o físico John Ambrose Fleming refinou a tecnologia para detectar ondas de rádio, ainda sem noção de construir um computador. Foi apenas décadas depois que os cientistas perceberam pela primeira vez que tubos de vácuo poderiam ajudar a construir computadores, quando o ENIAC foi finalmente inventado.

Dentre vários experimentos citados que colaboram com evidências para essa linha de entendimento, os autores desenvolveram um software-jogo: picbreeder — reprodutor de imagens. O jogo começa com imagens-abstratas, no qual o usuário pode selecionar uma e fazer reproduções de novas imagens a partir da anterior, sem qualquer objetivo.

Essas imagens resultam em outras, indefinidamente, servindo como “pedras de transição” para outras imagens potenciais.

Em um experimento com esse jogo vários padrões conhecidos em nosso mundo atual foram surgindo. Mas sem qualquer objetivo de chegar neles.

Imagens evoluídas a partir do projeto Picbreeder

Para ficar ainda mais interessante, eles realizaram o experimento de tentar chegar a essas imagens acima com um objetivo automatizado em vez de descobrí-las ao acaso.

Eles calcularam quantos passos levaria para se chegar a imagens semelhantes a essas comparando com os passos levados na exploração aleatória.

E sabe qual foi o resultado desse processo com objetivo? Bem pior.

[…] mesmo que um conjunto de usuários juntos tenha desenvolvido uma imagem de um crânio em apenas 74 gerações, 20 tentativas automatizadas de 30.000 gerações foram incapazes de reproduzir o resultado. Picbreeder está cheio de tais imagens, ou seja, cada uma evoluiu por usuários em apenas algumas dezenas de gerações e sem objetivos específicos, mas cada um quase impossível de reproduzir quando eles se tornarem objetivos.
— Fonte:
Exploring Promising Stepping Stones by Combining Novelty Search with Interactive Evolution

Se tem interesse em saber mais sobre o experimento, além da opção de ler o livro, você pode:

Mecanismos da evolução

Apesar de eu ser uma pessoa leiga no assunto, me esforcei para reagrupar alguns mecanismos de forma a facilitar o entendimento e utilidade.

Baseado em quatro mecanismos da evolução, apresentarei perguntas que potencializam o acúmulo de novas pedras de transição em sua busca-descobridora-e-geradora para uma vida mais experimental.

um desenho com uma pessoa em cima de uma pedra de transição, avistando e descobrindo outras

Não há jeito certo ou errado. Não há objetivo ou caminho traçado.

É um convite a dançarmos conforme o contexto, humor e música.

As perguntas estão disponíveis caso intencionalmente você deseje descobrir e acumular novas pedras de transição para suas novas versões.

Sem expectativa de um resultado final específico.

1. Seleção natural — Critérios restritivos

Na evolução, a seleção natural é um mecanismo de otimização da busca-descobridora-e-geradora utilizando dois critérios (ou restrições): sobreviver e reproduzir. [1]

Para se manter no fluxo da evolução, os organismos precisam sobreviver e reproduzir para servirem de pedras de transição para outros possíveis organismos ao longo do tempo.

Baseados nessa força, podemos definir nossos próprios critérios e restrições para uma vida mais experimental, ou trazer à consciência e tornar explícitos os já existentes.

Podemos descrever através de algo positivo — o que incluir— , quanto negativo — o que excluir.

Perguntas impulsionadoras:

  • Quais restrições podem favorecer o uso das minhas forças? Uma força é uma atividade que te fortalece e energiza, em vez de te esgotar.
  • Quais aspectos de vida mais desejo experimentar mudanças no momento?
  • Quais princípios de vida desejo usar como direcionadores?
  • O que não está alinhado com o que acredito e desejo limitar?
  • O que não desejo explorar no momento?
  • Quais novas áreas podem fornecer boas analogias ou melhor entendimento ao que venho aprendendo até hoje?

2. Diversificação genética—Prática, Exposição e Curiosidade

A diversificação genética pode levar ao surgimento de novas variantes genéticas, que podem resultar em novas características ou habilidades nos organismos.

Em diversificação genética, é possível incluir Mutação, Deriva genética, Fluxo gênico e outros. Porém, estou tentando simplificar.

Mutação é uma variação genética gerada por um pequeno erro de cópia. [2] Ela potencializa nuances, originalidade e adaptação possíveis a outros contextos.

Deriva genética é uma variação genética entre as gerações devido a eventos casuais, inicialmente imperceptível para a seleção natural. A evolução vai derivar (desviar aos poucos), podendo se tornar um aspecto importante em espécies futuras. [3] São mudanças não perceptíveis instantaneamente e acontecem pelo acaso.

A migração é qualquer movimento de genes de uma população para a outra. Inclui vários tipos de eventos diferentes, como o pólen sendo soprado a um novo destino ou pessoas se mudando para outras cidades ou países. [4] Ela pode gerar uma variação genética pelo processo de fluxo gênico, definido como a difusão lenta de genes cruzando barreiras reprodutivas, podendo ser racial, étnica ou cultural e não necessariamente geográfica e exigindo movimentação física de uma região para outra. [5]

Para favorecer a diversificação genética, podemos pensar em atividades como:

  • Aprender novas coisas e colocar em prática.
  • Compartilhar com mais pessoas.
  • Elevar nosso nível de exposição a experiências de forma despretensiosa.
  • Praticar mais curiosidade com as coisas ao redor.
  • Aproveitar mudanças inesperadas.
  • Integrar novas perspectivas.
  • Descobrir novos métodos.

Perguntas impulsionadoras:

  • O que as pessoas que me inspiram têm feito?
  • Como posso colocar em prática o que me inspira ou o que aprendi?
  • Como posso ensinar ou ajudar pessoas sobre o que sei?
  • O que eu nunca fiz antes e que gostaria de experimentar?
  • O que eu posso aprender de pessoas de diferentes culturas e backgrounds?
  • Como posso variar minhas fontes de inspiração?
  • O que posso aprender mais sobre os métodos que utilizo?
  • O que posso aprender mais sobre as pessoas que conheço?
  • Quais locais podem favorecer interação com novas pessoas?
  • Quais assuntos podem se relacionar com o que estou aprendendo?
  • Quais outros hobbies posso experimentar?
  • Quais outros lugares posso conhecer?
  • Quais outros métodos posso experimentar?

3. Exaptação — Adaptar para outros contextos

É uma adaptação biológica na qual uma característica que tinha uma função em dado contexto começa a ter outra função em um novo contexto. [6]

Lembra da história do tubo de vácuo, contada mais acima? Veja como ela tem relação com exaptação, nas palavras dos autores do livro:

O tubo de vácuo que foi inventado apenas para a ajuda nas primeiras investigações sobre eletricidade foi exaptada mais tarde para permitir a computação. Desta forma, a exaptação é uma das principais propriedades que potencializam a busca não-objetiva. Um padrão intrigante que observamos em muitos tipos diferentes de processos de pesquisa é que descobertas interessantes para um propósito muitas vezes se mostram úteis em o futuro de várias maneiras inesperadas.

Perguntas impulsionadoras:

  • Quais habilidades tenho ou posso adquirir que são valorizadas em outros contextos?
  • Quais princípios ou práticas que utilizo para um contexto também seriam benéficos em outros aspectos da minha vida?
  • Quais pessoas, comunidades ou organizações me inspiram em determinados tópicos e posso saber suas perspectivas sobre outros tópicos?
  • Quais experiências tive no passado e que hoje consigo ter novas perspectivas e aprendizados sobre elas?
  • Quais habilidades e conhecimentos adquiridos até hoje me permitem experimentar algo novo que antes não era possível?
  • Como posso experimentar novos jeitos com o que aprendi?
  • De que outras formas as pessoas lidam com desafios semelhantes aos meus?

4. Concorrência local — Ser sua melhor versão

Concorrência local, em evolução, é uma competição restrita por vários fatores, como localização geográfica e o próprio nicho (ex: aves não competem diretamente com búfalos). Diferente da concorrência global que levaria à convergência e acabaria com a diversidade e sobrevivência de diferentes espécies. [7]

A concorrência pode ser a menos interessante das forças evolutivas porque tende a diminuir a diversidade. Diferente a acumulação de diferentes formas de viver que resulta da descoberta de novos nichos, a competição não é uma força puramente criativa. É mais uma força que otimiza criaturas dentro de um nicho específico, ou de forma limitada em nichos. — Trecho do livro o Why Greatness cannot be planned — The myth of the objective

Perguntas impulsionadoras:

  • O quanto sou diferente de que minha versão X anos atrás?
  • Quais meios me inspiram a ser minha melhor versão? E quais me vulnerabilizam a ponto de eu ceder para uma versão de mim que me desagrada?
  • Quais pessoas já podem me inspirar e colaborar com meu aprendizado?
  • Quais meios me oferecem desafios que eu me engajo e potencializam aprendizado de novas perspectivas e habilidades?

Adote um estilo de vida experimental

Se você deseja adotar um estilo de vida experimental, conheça o projeto EstiloDeVidaExperimental.com.br.

Notas e Referências:

O texto acima foi inspirado em meu outro texto sobre Produtos Evolutivos.

Forças da evolução

[1] Seleção natural

A interpretação do que é seleção natural pode influenciar como entendemos evolução. Às vezes, a seleção natural é confundida como sendo a própria evolução. Mas, de acordo com a linha apresentada no texto, seleção natural é apenas uma das forças que levam à evolução, restringindo o espaço de busca de exploração e, por isso, otimizando.

Alguns organismos não serão selecionados para se reproduzir e seu potencial não servirá de base para possíveis outros organismos. Ou seja, a seleção natural não promove a evolução e sim uma otimização na exploração.

Ela faria isso utilizando ao menos dois critérios como estratégia, sobreviver e reproduzir.

Para se manter no fluxo da evolução, os organismos precisam sobreviver e reproduzir para servirem de pedras de transição para outros possíveis organismos ao longo do tempo. E dependendo das características de um organismo para o contexto do momento, ele pode conseguir passar pela seleção natural ou não.

Os organismo que sobrevivem tornam-se elos de uma cadeia crescente para novas descobertas.

[2] Mutação é uma mudança na sequência de DNA do gene, sendo fonte de novos alelos em uma população.

Há diferença entre gene e alelo: “Um gene é uma parte do DNA ou RNA que controla determinada característica, como a cor da pele ou dos olhos, já o alelo é a variação específica do gene, que vai determinar como essa característica irá se expressar no indivíduo. Por exemplo, o gene da cor dos olhos possui muitos alelos, como alelos para a cor dos olhos azuis, castanhos ou verdes. Os genes que nós herdamos são os mesmos para todos os seres humanos, já os alelos são herdados da mãe e do pai.”fonte

Ela é um pequeno erro de cópia que, às vezes, acontece quando um organismo se reproduz.

Esses erros muitas vezes causam as pequenas mudanças visíveis entre pais e prole, e podem ser impactados pela seleção natural.

Quando uma mutação devasta a aptidão de um organismo, então a mutação quase certamente desaparecerá do ambiente rapidamente.

Se a mutação favorece a sobrevivência e reprodução, nesse caso chamamos de adaptação, passando pela seleção natural.

Contudo, se a mutação não afeta muito a aptidão, ela tem destino mais incerto, porque a seleção natural será indiferente a ela.

[3] Deriva genética é o nome dado à mudança aleatória na frequência de alelos. A deriva genética ocorre porque os alelos em uma geração de descendentes são uma amostra aleatória dos alelos na geração dos pais. Os alelos podem ou não chegar à próxima geração devido a eventos casuais, incluindo a mortalidade de um indivíduo, eventos que afetam o encontro de um parceiro e até mesmo os eventos que afetam quais gametas acabam em fertilizações. [saiba mais]

Inicialmente a seleção natural não direcionará essa característica de uma maneira ou outra, e sua evolução irá derivar (desviar aos poucos), podendo se tornar um aspecto importante em nichos futuros.

Nesse sentido, alguma diversidade floresce não por causa da seleção, mas apesar dela.

Quanto menos a seleção estiver agindo, mais seguro é para a deriva explorar.

[4 e 5] Fluxo gênico. A migração pode alterar a frequência de alelos pelo processo de fluxo gênico. ScienceDirect — Gene Flow: https://www.sciencedirect.com/topics/immunology-and-microbiology/gene-flow

[6] Exaptação. Por exemplo, acredita-se que o surgimento de penas ao longo de muitos anos, sobreviveu à seleção natural por ser um benefício, permitindo regulação de temperatura corporal, e posteriormente se tornou uma exaptação para voar.

Assim como os ossos dos vertebrados podem ter originariamente tido a função de armadura protetora ou de armazenamento de fosfato de cálcio nos ancestrais aquáticos, e apenas mais tarde funcionaram como alavancas para os músculos e suporte esquelético.

[7] Concorrência local e global.

Em um primeiro momento pode parecer que a competitividade leve à diversidade, mas talvez não seja bem assim. Os autores do livro dizem que “a evolução é criativa apesar da competição que tolera — não por causa de competição”.

Veja mais o que eles dizem nesse trecho sobre a competição:

Curiosamente, não é por competição que a evolução natural leva à diversidade, mas muitas vezes evitando a concorrência. Em particular, se um organismo pode ganhar a vida de uma nova forma, então ele efetivamente fundou seu próprio nicho.

Por se tornar o primeiro organismo a viver desta nova forma, a competição é menos intensa para os sortudos recém-chegados e pode se reproduzir mais facilmente. Por exemplo, se uma mutação aleatória dá a uma criatura a habilidade de digerir um composto anteriormente não comestível, ele poderia reivindicar toda uma nova classe de alimentos inteiramente para si. Com o tempo, seus descendentes podem se especializar principalmente para consumir este tesouro recém-descoberto, fundando uma nova espécie como resultado.
[…]
Além disso, um novo nicho geralmente possibilita a fundação de novos nichos, e tais nichos mais novos geralmente levam a nichos ainda mais novos. Como uma reação em cadeia, novos nichos emergem continuamente do antigo.

Então, de acordo com eles, surge a pergunta: por que a competição não faz a evolução natural convergir para um única criatura ideal? Já que, assim, haveria uma convergência e acabaria a diversidade e os possíveis nichos que levam a outros.

A resposta pode ser devido à competição não ser global. Ou seja, um organismo não compete com cada outro organismo existente.

A competição é local, restrita por vários fatores, como localização geográfica e próprio nicho (ex: aves não competem diretamente com búfalos).

Esse tipo de competitividade apenas local leva a encontrar novos ambientes livres de concorrência, onde permite a sobrevivência e reprodução, e assim promovem diversidade. Ela cria e adapta organismos dentro de seus próprios nichos. E, ao contrário da competição global, encoraja a criação de novos nichos para escapar da concorrência.

Ao descobrir uma nova maneira de viver livre de concorrentes anteriores, a concorrência é reduzida — fugindo dela.

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