Intolerância e violência nas arquibancadas ameaçam Copa do Mundo

Diego Bonetti
Diego Bonetti
Published in
18 min readJun 1, 2018

Por Diego Bonetti

Fatores históricos, culturais e geopolíticos podem criar condições favoráveis para a desordem na Rússia

Torcedores russos aguardam com preocupação a primeira Copa do Mundo no país / Foto: Reprodução Sport Express

Os eventos esportivos sempre receberam o rótulo de união entre povos. Seja Copa do Mundo ou Olimpíadas, acontecimentos de tamanha magnitude, corriqueiramente, trazem à tona ao espectador, uma reflexão sobre a intolerância étnica e o sentido de união entre as nações.

Em clima de Copa do Mundo, essa questão ganha importância como há muito tempo não se via. O motivo central da discussão é sua localidade: a Rússia. Segundo país que mais recebe imigrantes no mundo, e tem o segundo maior contingente de trabalhadores estrangeiros. Ainda assim, parece não lidar bem com a diversidade étnica e cultural existente em seu território. E, pior, os desdobramentos destes problemas culminam em inúmeros casos de violência.

Com uma economia ainda em recuperação e uma política marcada pela corrupção generalizada, episódios de racismo e xenofobia têm se tornado comuns. O governo até poderia exercer a função de mediador do problema, no entanto, a gestão de Vladimir Putin é permissiva à condutas racistas. Foi o caso do grupo que apresentou um show de luzes no qual o então presidente dos EUA, Barack Obama, era exibido comendo uma banana.

Irina Rodnina, tricampeã olímpica de patinação artística, posta foto racista contra o ex-presidente Barack Obama / Foto: Reprodução Twitter

Outro fato não passou despercebido: mesmo depois de twittar uma foto na qual insinuava que o ex-presidente americano era um macaco, a tricampeã olímpica de patinação artística, Irina Rodnina, permaneceu com a incumbência de carregar a bandeira russa na abertura dos Jogos de Inverno de Sochi-2014.

Para piorar, Putin ajuda a fomentar uma ideologia nacionalista russa, no bojo da qual surgem o racismo e a xenofobia. Ele faz isso ao implementar uma política que prega tradicionalismo, autoritarismo e militarismo. Neste contexto, não surpreende que até a TV estatal russa tenha exibido no fim de 2014, um programa no qual recomendava não compartilhar bebidas alcoólicas com a “raça mongol”, termo degradante para asiáticos, como chineses, japoneses, coreanos e mongóis, pois eles teriam um “defeito genético”.

É preocupante, para dizer o mínimo, notar que o governo atual propague conceitos longe do aceitável. Neste caso, não é somente na Rússia que existam casos de intolerância governamental. Em outros países essa ação pode ser identificada em diferentes temas. A religião é o assunto mais comum, onde existe uma grande hostilidade em relação a indivíduos e organizações, por terem práticas consideradas incomuns de maneira geral. Mais estarrecedor ainda é perceber que Putin se molda neste discurso desde 1999, quando assumiu o poder do país. A população, tampouco, parece estar em desacordo com o presidente.

Em fevereiro de 2018, véspera das eleições presidenciais, um vídeo foi veiculado alertando os problemas que os russos enfrentariam se não fossem votar. Com o intuito de ameaçar valores arraigados da população, o produto audiovisual projeta a imagem de um país transformado em um Estado amigável com a comunidade LGBT, onde pessoas com 50 anos de idade seriam elegíveis para um alistamento militar, além de ter de conviver com negros. O vídeo homofóbico, racista e xenofóbico foi publicado nas redes sociais e assistido por milhões de pessoas. Os atores dizem não saber quem mandou produzir o material.

Propaganda política russa tem teor homofóbico, xenófobo e racista / Reprodução YouTube

Muita gente acredita que a “propaganda política” tenha sido produzida pela equipe de campanha do presidente Vladimir Putin. O porta-voz do comitê de campanha do atual presidente, no entanto, disse que o material não foi produzido pelo mandatário, nem por ninguém de sua equipe. Verdade ou mentira, algo é certo: a popularidade do presidente nunca esteve tão em alta.

Em junho de 2017, uma pesquisa do instituto de pesquisas americano Pew Research Center indicou que 87% da população confiava em Putin como líder.

A popularidade do presidente seria inimaginável em qualquer uma das grandes nações ocidentais, principalmente para alguém que está há 18 anos no poder. Ainda que existam diversas acusações de fraude contra os centros de pesquisa controlados pelo governo, a maioria dos especialistas acredita que sua aprovação no país seja, de fato, arrebatadora.

Vladimir Putin foi reeleito em março de 2018 e terá novo mandato até 2024. Com uma votação recorde de 56 milhões de votos a seu favor (nunca um presidente russo foi tão votado em toda fase democrática do país), Putin vai para seu 4º governo no comando da Rússia.

Graças a essa estrutura política direcionada e centralizada, o país sustenta uma cultura de intolerância racial e preconceito sexual e religioso. Tudo isso é encarado com uma naturalidade absurda, já que existe uma desigualdade social muito latente e escalas hierárquicas que são respeitadas quase que militarmente.

Raízes do totalitarismo

Para entender o perfil da sociedade russa é preciso voltar no tempo. O estereótipo dos habitantes do maior país do mundo em termos territoriais pode ser decifrado por seu passado.

No século XIX, os russos foram dominados pela monarquia, por um imperador, identificado como czar, apoiado pela classe nobre.

Por muitos anos a Rússia viveu os efeitos do totalitarismo. Regimes políticos extremamente autoritários, capazes de controlar não só o poder do Estado, como também todo o corpo social de uma nação, incluindo suas esferas privadas. O stalinismo exercido entre 1924 e 1953, é tido por muitos historiadores como um dos maiores regimes totalitários já vividos pela humanidade e suas sequelas são identificadas até os dias atuais.

Estátua de Lenin ainda é preservada na entrada do Estádio Luzhniki, palco da abertura da Copa / Foto: Divulgação Russian Football News

Pautado no nacionalismo e na centralização política, o stalinismo foi um período de militarização do país e de censura dos meios de comunicação, como jornais e rádios, as grandes inovações daquele momento. Com isso, Stalin transformou a União Soviética numa potência militar, onde imensa parte da população russa viveu uma época permeada pela falta de liberdade de expressão, que resultaria em inúmeras mortes, deportações e exílio.

Stalin, durante esse período, foi essencial para uma ação que acabou com parte significativa do Partido Comunista, que dominava o país naquele tempo. A conduta era simples, executar os considerados “inimigos do povo”, pois dessa maneira levaria a Rússia para um melhor caminho, de acordo com o ditador. Diversos expurgos, servindo de exemplo a aqueles que condenavam sua política, acabaram com a noção de poder, criticando ou criando grupos alternativos para derrubá-lo.

Uma nação criada e pressionada pela militarização altamente controlada pelo seu governo, culminou na construção violenta de sua sociedade. Xenofobia, homofobia e comportamentos agressivos são apenas algumas variantes da personalidade russa que se estendem desde os tempos do autoritarismo. No entanto, alguns pesquisadores acreditam que os traços de tais condutas tenham se originado muito antes da instauração da União Soviética e do próprio comunismo, como relata a Professora de Letras Russas da USP, Elena Vássina:

“Toda história da Rússia é uma história de guerras. A Rússia sempre foi um império e sempre teve o desejo de dominação, então muitas guerras que a Rússia participou passaram pelo território russo. Só no século XX foram duas guerras mundiais. A guerra está no sangue, nas veias dos russos”.

Hooliganismo: A violência refletida no esporte

A postura combativa da sociedade russa está evidenciada nas mais diferentes áreas de sua coletividade. E, claro, nem o esporte foi capaz de escapar de comportamentos minimamente aceitáveis.

Russos e ingleses despertam preocupação quanto à segurança na Copa de 2018 / Foto: Reprodução Globoesporte.com

A tradição é inglesa. Entretanto, a prática na Rússia vem sendo recorrente. Estamos falando do hooliganismo. Grupo de torcedores que usam a forma de violência desportiva sob a alcunha de fanatismo por seus clubes e associações. O movimento iniciado na Inglaterra, cruzou a Europa e produziu seus primeiros adeptos na União Soviética na década de 1970, florescendo a distensão do conflito entre Leste e Ocidente.

Inicialmente, o movimento se concentrava em metrópoles como Moscou. Hoje existem em torno da maioria dos clubes um ou até mesmo vários grupos hooligans. Tais brigas acontecem geralmente nos arredores da cidade ou territórios afastados dos grandes centros.

O amor ao clube é cultuado quase como uma religião. Pedro Camargo, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, acredita ser “uma ligação muito forte desses torcedores com seu time, eles defendem aquilo como se fosse uma pátria, disputando uma guerra como se fosse uma luta, uma família contra outra, um estado contra o outro”.

(Veja aqui a entrevista completa)

Mas nem só de amor ao clube são feitos os arruaceiros. A ideologia política tem grande parcela no posicionamento dos grupos que incitam a violência nas ruas. Por onde passa, a extrema-direita deixa suas marcas e, assim como no Ocidente, entre os russos, também existem neonazistas. Alguns observadores acreditam que a cena hooligan russa seria mais nacionalista do que, por exemplo, a inglesa.

Para o Promotor, “o nacionalismo europeu é mais exacerbado que no Brasil”. Isso decorre do “fato de pertencer a um país que já teve problemas históricos com outros podendo gerar problemas”.

Segundo ele, o contexto de guerras na Europa enfatiza essas complicações: “Evidentemente que na Europa, onde a Rússia experimentou duas grandes guerras no século passado, existem muitas rixas locais”. Já no Brasil, percebe-se que o problema se caracteriza mais como a “violência de torcedores de um time contra o outro”. Camargo trabalhou em jogos da Seleção Brasileira e revela ter tido “pouquíssimas ocorrências em comparação com os jogos de clubes de futebol”.

A preocupação em ter uma Copa do Mundo segura é tratada como prioridade pelo governo russo. Autoridades do país anfitrião têm plena consciência da influência que seus “torcedores” podem causar à imagem da federação russa. Violência televisionada ao vivo nos quatro cantos do mundo é o último desejo de Putin neste momento.

O documentário produzido pela rede britânica BBC, Russia’s Hooligan Army (Exército Hooligan da Rússia), lançado em 2017, ligou o sinal de alerta nos organizadores da próxima Copa do Mundo. Os hooligans do país dizem estarem prontos para fazer “um festival da violência”. Isso é que promete o grupo Orel Butchers, que teria sido responsável por muitos dos confrontos ocorridos durante a Eurocopa de 2016.

Documentário produzido pela BBC "Russian’s Holligan Army" / Reprodução YouTube

“Todos estão ansiosos com a Copa do Mundo. Para uns, será a festa do futebol. Para outros, um festival da violência”, disse um dos membros do grupo no documentário exibido pela BBC. “Nossos adversários naturalmente são os ingleses porque eles são os precursores do hooliganismo e naturalmente são sempre esperados”, completou.

O “profissionalismo” dos hooligans russos é tão grande que existe até uma espécie de treinamento para confrontos. Os violentos torcedores são preparados para brigas e passam até por sessões de preparação física.

O presidente da Fifa, Gianni Infantino, disse não estar preocupado com eventuais problemas de violência durante o Mundial de 2018, apesar das ameaças.

Torcedores russos e ingleses protagonizam cenas de violência na Eurocopa 2016 Foto: Reprodução Daily Mail

Durante a disputa da Eurocopa 2016, na França, o Comitê Disciplinar da Uefa ameaçou excluir as seleções de Rússia e Inglaterra da competição por conta das confusões criadas por seus torcedores. Mais de 300 pessoas foram detidas por desordem durante o torneio.

Após a exibição do documentário da BBC, o governo russo se manifestou para criticar a produção do mesmo, ressaltando que a matéria veiculada pela rede britânica é uma “propaganda” dirigida para “desacreditar” a Rússia como organizador do Mundial.

O vice primeiro-ministro Vitaly Mutko afirmou, em entrevista à agência russa Tass, que o “festival de violência” prometido pelos hooligans do seu país durante a Copa “não é nada mais do que ficção”. A autoridade, que também é o presidente da União Russa de Futebol (RFU, na sigla em inglês), ainda destacou que vê o seu país como vítima de uma campanha de “difamação da mídia” após ter sido eleita sede do Mundial de 2018.

“Somos pessoas adultas e sabemos bem que cada grande país, seja ele a Inglaterra ou a Rússia, tem seus próprios problemas em várias esferas do dia a dia”, afirmou Mutko, ressaltando que a violência praticada por torcedores é um problema global e que o comportamento de muitos deles pode ser “imprevisível” em qualquer lugar do mundo.

“O movimento dos hooligans do futebol hoje é um movimento jovem e uma subcultura frequentemente vulnerável à influência extremista”, finalizou.

Se o vice primeiro-ministro rechaça a ideia de violência na Copa do Mundo, outros integrantes do governo parecem ser favoráveis à perpetuação da violência no país. É o caso de Igor Lebedev, parlamentar que propôs uma solução pouco ortodoxa para acabar com as brigas entre torcedores. Certo de que não há policiamento e fiscalização capaz de impedir a violência, ele recomendou como solução regulamentar a pancadaria.

Hooligans entram em confronto na Eurocopa 2016, realizada na França / Foto: Reprodução LÉquipe

A ideia surgiu após o político ver grupos de russos organizados, muitos praticantes de artes marciais, combinarem o confronto contra torcedores ingleses nas ruas de Marselha durante a disputa da Eurocopa em 2016. O parlamentar pensou em uma lei que ele chamou de “draka”, que significa “luta” em russo. Os torcedores que gostam de brigar seriam divididos em times, com 20 para cada lado, e lutariam entre si dentro de uma arena.

Em comunicado no site do partido nacionalista LDPR, Lebedev disse que brigas organizadas “poderiam transformar a agressão dos torcedores rumo à paz”. Ele ainda disse que a medida poderia se tornar exemplo para os torcedores ingleses, considerados por ele como indisciplinados e lutadores ruins.

“A Rússia poderia ser pioneira em um novo esporte”, escreveu. Ele também sugeriu que as lutas entre diferentes grupos de torcedores poderiam atrair uma plateia com milhares de pessoas. E, sendo organizada em um espaço pré-determinado, poderia haver fiscalização e regras. Isso porque hoje em dia, na Rússia, torcedores organizam brigas pelas redes sociais em áreas isoladas, longe de qualquer policiamento.

Não é a primeira vez que Lebedev causa polêmica em relação aos hooligans. Após a confusão em Marselha, o parlamentar publicou uma série de mensagens nas redes sociais, nas quais diz “não ter nada de errado nos conflitos”. “Pelo contrário, muito bem, garotos! Que continuem assim!”, completou em seu Twitter. Dias depois, os tweets do parlamentar foram apagados de seu perfil.

Lebedev representa a oposição ao Partido Democrático Liberal da Rússia e também faz parte do conselho da União de Futebol do país.

A violência está enraizada no perfil da personalidade russa e o que acontece no futebol acaba sendo apenas um reflexo de sua sociedade. Como afirma o Promotor de Justiça Pedro Camargo em entrevista ao LabJor FAAP, “a violência no futebol é uma extensão do que se vê na sociedade. Tanto num Estado que assiste essa criminalidade alta, como também a dificuldade que nós temos em punir adequadamente os criminosos”.

Além disso, para ele aimpunidade, com certeza, gera mais crimes e imagino também que isso ocorra na Rússia. Onde uma eventual violência do povo em geral também possa influenciar no futebol”.

Há quem possa questionar a eficiência das leis e, por este motivo, o problema da violência possa permanecer sem soluções. No entanto, na opinião do Promotor, “as leis são adequadas. O problema da violência no futebol é o problema da violência na sociedade em geral, nós precisamos de organismos com mais recursos. As leis são boas, o que precisa aprimorar é o aparato estatal”, conclui.

Já a Professora de Letras Russas da USP, Elena Vássina, tem outra explicação para o comportamento violento da sociedade russa e traça um paralelo interessante entre os costumes de seu país e do Brasil. Para a professora, que divide sua vida entre Rússia e Brasil, sentir medo é algo vergonhoso para a os russos.

“O que me surpreende muitíssimo nos brasileiros é assumir o sentimento de medo. Para o russo dizer ‘eu tenho medo’ é uma vergonha absoluta. Para os russos, não existe vergonha maior que admitir que tem medo”.

Vássina acredita que o comportamento mais agressivo se dá por conta das guerras enfrentadas pela população russa: “É um comportamento bem mais corajoso”. Ela afirma que em casos de roubo, “o russo parte para o enfrentamento. Muitos amigos que foram assaltados aqui no Brasil, reagiram. A primeira reação é bater no assaltante, é protestar, é brigar”. Neste sentido, ela confessa que o russo apresenta um comportamento violento, quando comparado com os brasileiros, que parecem estar acostumados com esse tipo de situação.

Racismo, homofobia e xenofobia

Como se não bastasse, os problemas percebidos entre os torcedores russos não param por aí. Se a violência dos hooligans fica do lado de fora dos estádios, dentro de suas arenas outros problemas são recorrentes entre os frequentadores. Extremismo, racismo, homofobia e xenofobia são cultuados de maneira ostensiva, principalmente em jogos do campeonato nacional.

Torcedores russos carregam bandeira nazista em partida da liga nacional / Foto: Reprodução Agência Tass

Ao que parece, alguns clubes ajudam a fomentar este comportamento abominável por parte de seus torcedores. Clubes de direita e extrema-direita do futebol russo são (ou agem) de forma conservadora, tradicionalista e, algumas vezes de forma opressora. A consequência disso não poderia ser mais óbvia, seus torcedores acabam se posicionando do mesmo modo.

E, segundo a professora da USP, o comportamento intolerante não permanece apenas no âmbito do futebol: “é vergonhoso dizer isso, mas é história. Na Rússia sempre existiu um forte anti-semitismo. A extrema-direita é muito poderosa na Rússia. Essa extrema-direita é extremamente homofóbica em todos os sentidos”.

Vássina ainda vai além. Para ela, essa xenofobia está presente em toda Europa: “Essa direita, que é fascista, existe em toda Europa. Como na Inglaterra, na Alemanha. Existe essa xenofobia, existe racismo, existe anti-semitismo, e é horrível. No Brasil eu nunca senti isso. O Brasil neste sentido é um país abençoado. Mas na Rússia existe sim”.

Quem encabeça a lista de clubes com posições políticas muito bem definidas na Rússia é o Zenit, de São Petersburgo. Enquanto a cidade é uma das mais importantes e modernas do país, por outro lado, sofre com extremismo e preconceito racial de uma parte da sua população. Seus torcedores causam vários problemas e enchem de vergonha quem tem o mínimo de caráter.

Torcida do Zenit expõe faixa com os dizeres: "Ratko Mladic — Herói sérvio". Mladic foi comandante na guerra da Bósnia, causando a morte de oito mil muçulmanos sérvios / Foto: Zuma Press

O nome do clube é constantemente atrelado ao racismo, algo que é tratado com uma naturalidade espantosa pelo Zenit e na própria Rússia. Episódios de racismo e homofobia são mais do que normais entre as condutas das torcidas russas de modo geral.

Entretanto, a equipe que estamos abordando aqui bate recordes nesse quesito. Em 2006, o jogador brasileiro Géder (ex-Vasco da Gama) foi recebido no estádio Petrovski, do Zenit, com imitações de sons de um macaco. Em março de 2008, durante uma partida da Champions League, André Ayew (filho do Abedi Pelé), Charles Kaboré e Ronald Zubar, todos eles jogadores negros, foram recebidos com a mesma “saudação” que Géder recebeu todas as vezes que pegava na bola. Em 2011, numa partida entre Zenit e Anzhi, o lendário Roberto Carlos foi o alvo dos torcedores do time russo que jogaram uma banana em sua direção. Como se não bastasse o comportamento abjeto dos torcedores, Dick Advocaat, técnico holandês que dirigiu o Zenit de 2006 a 2009, certa vez contou que, enquanto era treinador do clube russo, havia tentado a contratação do meia francês Mathieu Valbuena e ouvirá a seguinte indagação como resposta: “Ele é negro?”.

Curiosamente, se assim podemos dizer, o Zenit jamais havia contratado um jogador negro em sua história. O comportamento da torcida acaba influenciando na maneira como o clube é gerido pelos dirigentes, que por sua vez são torcedores e, em muitos casos, fazem uma ponte entre o que é sentido na arquibancada para dentro do clube, algo bastante normal entre os clubes que seguem esse tipo de filosofia conservadora e hierárquica.

O Spartak Moscow, clube de maior tradição na Rússia e maior torcida, sempre esteve sob uma administração conservadora, e a exemplo do Zenit, possui uma torcida intolerante nas questões raciais e religiosas.

Os torcedores do Spartak já foram banidos de jogos por várias rodadas no campeonato russo devido à faixas com dizeres de baixo calão contra jogadores e torcedores muçulmanos, jogadores negros e faixas condenando homossexuais ao redor do país.

Torcedores do Spartak entoam canto racista contra o goleiro brasileiro Guilherme Marinato / Foto: Globoesporte.com

O último caso aconteceu em julho de 2017, quando Guilherme Marinato, goleiro brasileiro naturalizado russo, foi chamado de macaco. O atleta do Lokomotiv sofreu ofensas racistas pela torcida do Spartak, na final da Supercopa da Rússia. Guilherme é constantemente convocado para seleção russa de futebol, algo inaceitável pelos torcedores nacionalistas.

Já o Lokomotiv, clube do brasileiro, e um dos maiores do país, não fica atrás em nenhum quesito. Os fãs desse clube, inclusive, ficaram famosos em toda Europa, recentemente, por causa de uma bandeira que agradecia o West Brom, clube inglês, por ter contratado o atacante nigeriano Peter Odemwingie.

Torcida do Lokomotiv Moscow "agradece" West Brom por ter contratado o jogador nigeriano Peter Odemwingie / Foto: Divulgação BBC News

A bandeira consiste especificamente num “Thank You West Brom” com uma banana desenhada no meio.

Odemwingie, filho de uma uzbeque com um pai nigeriano, sofreu horrores enquanto atuou pelo clube moscovita.

O Lokomotiv, apesar de ser grande e tradicional, sempre teve em suas raízes uma ligação muito estreita com o partido nazista da capital, cujas opiniões são fortes e influentes até hoje. Alguns diretores do Spartak e Lokomotiv usam os clubes como trampolim para conseguirem cargos no governo. O idealismo de supremacia branca e nacionalista são dogmas, que assustadoramente, não são combatidos na sociedade russa.

Apesar da abertura do mercado, que possibilitou aos clubes russos a contratação de jogadores estrangeiros para qualificar o elenco, muitos torcedores e jogadores russos não viram com bons olhos a quantidade de “intrusos” em sua pátria justamente pela diferença cultural entre eles.

Vássina acredita que essa ideia nacionalista sempre esteve presente na história europeia. Segundo ela, as sociedades sempre viveram sob essa superioridade como “os ingleses em relação aos indianos, espanhóis em relação aos latinos. É a história europeia de não aceitar outras etnias. Isso é muito triste”, conclui.

A União Russa de Futebol, órgão que regulamenta o esporte no país, tem tentado diminuir a incidência destes acontecimentos dentro dos estádios. Em julho de 2017, na primeira rodada do Campeonato Russo, Spartak e Dínamo de Moscou estrearam com o pé esquerdo. Cada clube foi multado em 250 mil rublos (R$13.300) pelo comportamento inadequado de suas torcidas.

Apesar da tentativa de inibir atos discriminatórios, um estudo realizado pelo Sova Center, organização russa não-governamental, em parceria com o grupo europeu Fare, que combate o racismo no futebol do Velho Continente, revela que os dados ainda preocupam.

Entre maio de 2015 a junho de 2017, o estudo contabilizou 190 incidentes entre manifestações de racismo, homofobia, xenofobia e intolerância religiosa nos estádios russos.

Os gráficos abaixo ilustram como os atos discriminatórios foram representados no período:

O diretor-executivo da Fare, Piara Powar, lamenta o resultado da pesquisa e afirma que "os números revelam a imagem horrível de um campeonato nacional que é cheio de aspectos racistas e xenofóbicos".

Segurança: prioridade e preocupação

A maior preocupação da Rússia será manter a segurança dos torcedores comuns, principalmente os estrangeiros, diante da presença de torcedores xenofóbicos, racistas e hooligans. O medo de estrangeiros serem alvos de intolerância preocupa o Comitê Organizador do Mundial.

A Copa das Confederações de 2017, evento teste para Copa do Mundo, foi palco de incidentes envolvendo racismo, chamando a atenção da imprensa estrangeira. Torcedores de Camarões alegaram maus-tratos por parte do staff dos estádios, apenas para citar um caso.

Gritos homofóbicos a cada tiro de meta se popularizaram no evento. Na ocasião, as federações foram punidas com multas, e a FIFA realizou uma campanha de conscientização nas arenas.

A entidade também anunciou a emissão de um cartão de identificação para todos os torcedores que comprarem ingressos, servindo como visto. O objetivo é impedir que o futebol, em sua grande festa mundial, continue sofrendo sua maior derrota: medo, violência, racismo e homofobia no interior dos estádios.

Torcedor camaronês com seu cartão de identificação durante a Copa das Confederações em 2017 / Foto: Divulgação FIFA.com

Em um comunicado mencionado no portal Globoesporte.com, citando o jornal russo Sport Express, a FIFA manifestou sua total confiança nos acordos de segurança para a Copa e saudou o amplo conceito desenvolvido a respeito das autoridades russas e pelo comitê organizador local.

Putin se manteve tranquilo e disse não haver dúvidas sobre a natureza das suas prioridades. Nas palavras do presidente, o Mundial deve ser preservado no nível mais alto e, em primeiro lugar, garantir o máximo de segurança dos atletas e fãs.

Segundo ele, o Ministério do Interior do país terá um papel fundamental para a segurança do evento. Para Putin, o trabalho competente e transparente do ministério deve impactar diretamente o modo como o evento acontecerá.

O cenário geopolítico, que envolve o país, deixa o Comitê Organizador Local ainda mais atento a possíveis ataques violentos durante as partidas e até mesmo fora dos estádios. As tensões entre o governo de Vladimir Putin e os principais países ocidentais não podem ser comparadas ao período da Guerra Fria, mas a presença de milhares de torcedores de nações consideradas “não-amigas” liga o alerta na Rússia.

Tanto Síria quanto os Estados Unidos saíram nas suas respectivas eliminatórias e não disputarão o Mundial de 2018. A ausência das duas seleções pode gerar um alívio para as forças policiais russas.

A seleção americana decepcionou e não conseguiu classificação para a Copa, cedendo lugar ao estreante Panamá. Já a Síria fez campanha surpreendente nas eliminatórias asiáticas, e só foi derrubada pela Austrália na repescagem do continente. Enquanto os torcedores sírios lamentavam o fim do sonho de disputar a primeira Copa do Mundo, os russos viam com certo alívio a derrota do país, já que o apoio russo ao governo de Bashar al-Assad afeta de forma negativa suas relações com a União Europeia, outros países árabes e os EUA.

Apesar da Síria e EUA ficarem de fora da Copa, a Rússia se prepara para receber França e Alemanha, países europeus que sofreram ataques terroristas recentemente, além da Arábia Saudita, um dos principais financiadores do Estado Islâmico no Oriente Médio. A Copa do Mundo ainda irá contar com a presença do Irã, país de maioria xiita que vive sob a mira e ataques constantes dos rebeldes de grupos terroristas.

A questão geopolítica ganha contornos ainda mais inquietantes se considerarmos o local da próxima Copa do Mundo, no Catar em 2022. Diferente da Rússia, o país do Oriente Médio não possui uma cultura de futebol fortificada, sua seleção teve campanha vergonhosa nas Eliminatórias, e seus clubes vivem apenas do dinheiro dos sheiks milionários. Para piorar, o Qatar sofre investigações de compra de votos na escolha do país-sede do Mundial de 2022.

Ao que parece, o futebol da FIFA caminha para capítulos preocupantes sob a ótica de conflitos políticos, étnicos, comportamentais e de corrupção. Quem discordou que esporte e política um dia estiveram lado a lado, desta vez está cada vez mais convencido: muito mais do que uma bola deve rolar nos gramados da Copa.

Diego Bonetti é publicitário, estudante de Jornalismo da FAAP e Editor de Esportes da segunda edição do LabJor FAAP

--

--