A imagem e o êxtase da visão: Stan Brakhage

Diego Franco
Diego Vieira
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7 min readNov 5, 2020

Trajetórias da vanguarda (I)

Primeira Feira Internacional Dada / Cabaret Voltaire, 1920

It is at the same time true that the world is what we see and that, nevertheless, we must learn how to see it - first in the sense that we must watch this vision with knowledge, take possession of it, say what both we and seeing are, act - therefore - as if we knew nothing about it, as if we still had everything to learn.

Maurice Merlaut-Ponty

Durante a elaboração da monografia que concluiu meu curso de História da Arte, problematizar o encantamento inicial que senti ao assistir os filmes de Stan Brakhage se fez necessário para forjar um olhar mais acurado que muito serviu no enfrentamento com seu modo de pensar e fazer cinema. Me pareceu interessante problematizar a trajetória do conceito de vanguarda, de modo a melhor costurar os sentidos que atravessam sua estética, seus experimentos. O que o passado - e o entendimento desse passado no presente - poderia me dizer sobre as cores e as sobreposições de imagens que explodem em seus filmes, desconectadas de uma linearidade convencionalmente narrativa? O que precisou acontecer para que, no final da década de 1950, o campo de experimentações nas artes - sobretudo no cinema - estivesse expandido o suficiente para possibilitar o florescimento do seu trabalho?

Naquela altura, me pareceu fundamental reter a imagem perdida da unidade entre arte e política, o que me levou investigar certas diferenças e continuidades da vanguarda européia dentro do cinema de vanguarda americano. Para tanto, se mostrou importante entender a estrutura social e histórica do sentido de vanguarda, que até 1930 não se limitava às artes, mas também referia-se ao radicalismo político. Um radicalismo que talvez eu enxergasse projetado na maneira com que Brakhage montava seus filmes. O termo, que significa literalmente “guarda avançada”, era usado para definir a primeira linha de um exército em ordem de marcha ou batalha, designando o primeiro grupo a chegar ao combate, os primeiros a experimentarem os horrores do embate.

A expressão ganha o campo artístico em 1825, com o filósofo e economista francês Henri de Saint Simon. Para ele, vanguardista era o artista engajado na construção do estado ideal, do futuro, da nova era do ouro. A arte, a ciência e a indústria eram entendidas como instrumentos que garantiriam o progresso do emergente mundo burguês, o universo das cidades e das massas, do capital e da cultura. A partir de então, o conceito de vanguarda esteve amarrado à ideia de progresso na civilização industrial e tecnológica, permanecendo atrelado ao radicalismo político, por todo século XIX.

Mediador do socialismo utópico, foi Charles Fourier o responsável por reposicionar o termo dentro do anarquismo socialista e, eventualmente, entre segmentos substanciais da subcultura boêmica da virada do século. O pesquisador alemão Andreas Huyssen argumenta não ter sido uma coincidência o impacto do anarquismo nos artistas ter atingido o seu máximo precisamente quando a vanguarda histórica estava em um estado crucial da sua formação. Ele atribui a atração dos artistas e intelectuais ao anarquismo daqueles tempos a dois fatores principais: de um lado, a rejeição de ambos, anarquistas e boêmios de esquerda, para com a sociedade burguesa e sua estagnação cultural conservadora e, do outro lado, a luta que travavam contra o determinismo econômico e tecnológico, assim como contra o cientificismo da Segunda Internacional Marxista, que viam como reflexo teórico e prático do mundo burguês.

Desse modo, ao estabelecer plenamente sua dominação sobre o estado e a indústria, a ciência e a cultura, a burguesia não contava com os vanguardistas à frente da sua luta, como imaginado por Saint Simon. Ao contrário, eles estavam às margens da sociedade industrial, à qual se opunham. No início dos anos 1890, a insistência na revolta cultural, motivada pelo espírito da vanguarda, entrou em confronto com a necessidade burguesa por legitimação cultural, assim como com a preferência da política cultural desenvolvida pela Segunda Internacional, voltada para a herança burguesa.

Já no início do século XX, foi Lênin o responsável por institucionalizar o Partido como vanguarda da revolução, no livro “O que deve ser feito”, de 1902. Mas logo depois, em seu artigo “A organização do Partido e a literatura do Partido”, ele separou a dialética entre política e cultura vanguardista, subordinando a vanguarda ao partido. Nesse ponto, o vanguardismo artístico foi declarado como sendo “apenas um instrumento da política” de vanguarda. Tendo sido a arte reduzida a um pequena parte da máquina estatal, Lênin abriu caminho para a supressão e liquidação do vanguardismo russo, que havia começado suas experimentações no início dos anos 20 e culminou com a adoção oficial de uma doutrina voltada ao realismo socialista, em 1934.

Kazimir Malevich / Composição 14t (Suprematismo: Sensação do Elétron), 1916

Durante o século XIX, houve uma categórica separação entre arte e realidade, arte e cotidiano, e a insistência em uma autonomia da arte. O que outrora libertou a arte dos grilhões da igreja e do estado, buscava então colocar a arte e os artistas nas margens da sociedade. No movimento da arte pela arte, a quebra com a sociedade imperialista levou a arte para um caminho sem saída, um fato claro para os maiores representantes do esteticismo. O vanguardismo histórico tentou, então, transformar o isolamento da realidade da l’art pour l’art em uma ativa rebelião que faria a arte produtiva para mudanças sociais. A partir de então, é inaugurado as críticas à institucionalização da arte, como ela tinha se desenvolvido dentro da sociedade burguesa desde o século XVIII.

O professor alemão Peter Bürger apontou como o maior objetivo de movimentos artísticos como Dadaísmo, Surrealismo, e da própria vanguarda russa pós-1917, a reintegração da arte à práxis de vida. Como se tais práticas artísticas buscassem fechar a lacuna que separava a arte da realidade. Bürger interpretou o alargamento da separação entre arte e vida, a qual se tornou praticamente intransponível no esteticismo do final do século XIX, como um desenvolvimento lógico da arte na sociedade burguesa. A negação da instituição de arte burguesa seria, portanto, o limite da transformação da própria sociedade burguesa.

Desde que tais transformações não aconteceram, a tentativa vanguardista de integrar arte e vida quase veio a falhar. Uma falha que foi posteriormente rotulada como a morte da vanguarda, motivo pelo qual Peter Bürger a chamou de vanguarda histórica. Ele argumentou ainda que, a partir do Dadaísmo, os movimentos vanguardistas distinguiram-se daqueles que os precederam, como o Impressionismo, o Naturalismo e o Cubismo, não apenas pelo seu ataque à instituição de arte como tal, mas na sua radical quebra com o referencial estético mimético e sua noção do trabalho de arte orgânico e autônomo.

A partir da leitura do clássico texto de Bürger sobre a vanguarda, Huyssen enfatiza que, apesar das diferenças que tomou em cada país onde se desenvolveu, a revolta vanguardista esteve diretamente contra a totalidade da cultura burguesa e seus mecanismos de dominação e controle psicológico e social (1). E vai além, ao afirmar que nenhum outro fator teve maior influência no aparecimento da nova vanguarda artística como a tecnologia, que não apenas abasteceu a imaginação dos artistas com a beleza das técnicas, dinamismo, culto à máquina, construtivismo e atitudes produtivistas, mas penetrou no âmago do trabalho de arte. (2)

Alexander Rodchenko / Torre de transmissão Shuchov, 1929

De modo semelhante, Walter Benjamin pontuara que foi precisamente o mecanismo de reprodutibilidade o que mudou radicalmente a natureza da arte no século XX, transformando suas condições de produção, distribuição e recebimento/consumo. Em seu famoso ensaio sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, argumentou sobre a destruição da aura da obra de arte, a aura de autenticidade e singularidade que constituía a distância entre o trabalho e a vida e exigia contemplação e imersão por parte do espectador. Huyssen reconhece que a intenção de destruir essa aura estava incubada nas práticas artísticas Dada, mas argumenta que a decadência da aura não foi imediatamente dependente das técnicas da reprodução mecânica, como articulado por Benjamin, pontuando ser importante evitar analogias redutivas entre técnicas industriais e artísticas.

É possível que uma nova experiência de tecnologia tenha deflagrado a vanguarda mais do que apenas o imanente desenvolvimento das forças artísticas de reprodução. Os dois pólos dessa nova experiência tecnológica são descritos por Huyssen como a estetização da técnica, com as exposições mundiais, as cidades jardins, a Città Nuova de Antonio Sant’Elia e, do outro lado, o horror das técnicas inspirado pela impressionante máquina bélica da Primeira Guerra. Esse horror às técnicas pode ser considerado como um lógico e histórico desenvolvimento da crítica à tecnologia e à ideologia positiva de progresso, articulada primeiramente pelos radicais culturais do final do século XIX, os quais eram fortemente influenciados pela crítica à sociedade burguesa desenvolvida por Nietzsche. Apenas depois da vanguarda pós-1910 foi que se conseguiu dar expressão artística a essa experiência bipolar de tecnologia no mundo burguês, integrando tecnologia e imaginação tecnológica na produção artística.

Notas

(1) — O movimento Dada em Zurich e Paris desenvolveu uma sensibilidade artística e política que difere substancialmente do de Berlim, assim como Mayakovsky e o Futurismo revolucionário não pode ser nivelado ao produtivismo de Boris Arvatov.

(2) — A invasão da própria estrutura do objeto de arte pela tecnologia e o que se pode chamar vagamente de imaginação tecnológica é melhor compreendido em práticas como a colagem, a assemblage, a montagem e fotomontagem, e encontrou sua realização final na fotografia e no cinema, formas de arte que não podem apenas ser reproduzidas, como são projetadas através de mecanismo de reprodutibilidade.

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