A imagem e o êxtase da visão: Stan Brakhage

Diego Franco
Diego Vieira
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9 min readDec 23, 2020

Trajetórias da vanguarda (II) / Modernismo e Vanguarda Americana

The Greatest-Ever-Dada-Show / Cabaret Voltaire, 1919

As motivações que atravessaram a vanguarda, assim como suas contribuições para o cenário artístico, servem como pano de fundo para o entendimento do uso do conceito quando este fora transplantado da Europa para os Estados Unidos. A arte desenvolvida nos fins da primeira metade do século XX tinha novamente que atravessar uma onda de revoltas contra a cultura burguesa dominante. Com a quebra do esteticismo e a possibilidade de uma arte politizada e contestadora, é importante entender o poder que as vanguardas históricas tiveram dentro do contexto americano.

No ocidente, a vanguarda dita histórica — a vanguarda europeia, como abordei na primeira parte deste texto — teve uma morte lenta, com razões que variam de acordo com cada país. O movimento alemão dos anos 20 terminou abruptamente quando Hitler ganhou o poder em 1933, e o desenvolvimento no restante da Europa foi gradualmente interrompido pela guerra e a ocupação alemã. Durante a Guerra Fria, a crença política na vanguarda histórica se perdeu e, aos poucos, o centro de inovações artísticas mudou da Europa para os Estados Unidos.

O choque e as rupturas provocadas pelo movimento de vanguarda europeu foram absorvidos pelas manifestações culturais americanas, nas décadas que sucederam à Grande Guerra. Mas, outrora visto por Walter Benjamin como chave para mudar o modo de recepção da arte e romper com a sombria e catastrófica continuidade da vida cotidiana, o choque tornou-se obsoleto. O uso do choque como estratégia passou a explorar o mecanismo mais para reafirmar a percepção do que para mudá-la.

Ao analisar o status da arte nos anos 1960 e 1970, Andreas Huyssen observa que nos anos 60, apesar dos ataques ao modernismo e à vanguarda, a arte estava mais próxima da tradicional noção do conceito de vanguarda desenvolvido na Europa. Para ele, muita confusão poderia ter sido evitada se os críticos tivessem tido uma atenção especial às distinções que devem ser feitas entre Modernismo e Vanguarda, assim como ao diferente relacionamento que cada uma delas manteve com a cultura de massa, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Isso porque os termos Vanguarda e Modernismo não correspondem a uma mesma causa, apesar dos críticos americanos tenderem a usá-los como representações das emanações artísticas da modernidade. (1)

Mesmo que haja semelhanças entre os movimentos, as diferenças estéticas e políticas são bastante difusas para serem ignoradas. A Vanguarda, considerada uma forma artística de extremo negativismo, tem a arte mesma como sua primeira vítima. Já o modernismo, segundo Matei Calinescu,

seja qual for seu significado específico nas diferentes línguas e para os diferentes autores, nunca transmite a sensação histérica e universal tão característica da vanguarda. O antitradicionalismo do modernismo é, muitas vezes, sutilmente tradicional.

Em relação às diferenças políticas, a vanguarda histórica tende predominantemente para a esquerda, com exceção do Futurismo italiano. Já a direita tem ao seu lado um surpreendente número de apoiadores modernistas. Calinescu usa o negativismo, a antiestética e os aspectos autodestrutivos do movimento de vanguarda como oposição à arte reconstrutiva dos modernistas.

A arte modernista mantém a tradicional autonomia do cotidiano, uma autonomia que foi primeiro articulada por Kant e Schieller, no fim do século XVIII. Peter Bürger esclarece que a instituição artística mantém os tradicionais meios nos quais a arte é produzida, disseminada e recebida. Em contrapartida, a vanguarda das primeiras três décadas do século XX buscou subverter a autonomia artística, sua artificial separação com a vida e sua institucionalização como high art, pontos que legitimavam as necessidades da burguesia do século XIX.

A vanguarda buscava como seu maior projeto reintegrar a arte e a vida, em tempos onde a sociedade tradicional, especialmente na Itália, Rússia e Alemanha, passava por grandes transformações em direção a uma etapa qualitativamente nova da modernidade. A partir dessas análises, ao trazer os Estados Unidos para a discussão sobre o vanguardismo, Andreas Huyssen aponta os anos 1960 como o último capítulo da dita vanguarda tradicional.

Como todos os vanguardistas desde Saint Simon, e os socialistas utópicos e anarquistas através do Dadaísmo, Surrealismo e a arte pós-revolucionária na Rússia Soviética no início dos anos 1920, a década de 1960 lutou com a tradição, e essa revolta ocorreu em um momento de turbulência política e social.

A jovem americana Jan Rose Kasmir enfrenta a Guarda Nacional Americana em frente ao Pentágono, durante a marcha anti-Vietnã que ajudou a virar a opinião pública contra a guerra dos EUA no Vietnã, 1967

Vanguarda Americana

A promessa da abundância ilimitada, estabilidade política e novas fronteiras tecnológicas dos anos Kennedy foi rapidamente destruída nos Estados Unidos. Conflitos sociais emergiram, como o movimento pelos direitos civis, o movimento flower child e o psicodelismo. Parece mais do que coincidência que os protestos culturais do período tenham adotado o rótulo contracultura, projetando uma imagem vanguardista que direcionava o caminho para uma forma alternativa de sociedade. No campo artístico, a Pop Art se revoltou contra o Expressionismo Abstrato e deflagrou uma série de movimento artísticos, como OP Art, Fluxus, Conceitualismo e Minimalismo, o que tornou a cena artística dos anos 60 tão viva e vibrante quanto comercialmente rentável.

Nesse contexto, o diretor Peter Brook criou um novo estilo de representação teatral, fortemente influenciado por Antonin Artaud. Sua maneira de fazer teatro diluiu o fosso entre o palco e a plateia, o que o levou a experimentar novas formas de imediatismo e espontaneidade. Houve também, segundo Huyssen, um ethos participativo no teatro e nas artes que podem ser ligados aos teach-ins e sit-ins do movimento de protesto (2). Por um momento, parecia que a Fênix vanguardista tinha ressuscitado das cinzas desejando voar em direção às fronteiras do pós-modernismo.

A polícia remove um grupo de manifestantes anti-Guerra do Vietnã que fazia um protesto em frente à suíte do primeiro-ministro, 1965

Apesar da importância de Man Ray e das atividades de Duchamp e Picabia em Nova York, o movimento Dada desenvolvido na cidade é considerado um fenômeno marginal na cultura americana, e nem o Dadaísmo ou o Surrealismo tiveram, naquele momento, grande sucesso de público nos Estados Unidos. Este foi um grande fator para que o movimento Pop, os happenings, o conceitualismo, a música experimental e a arte da performance dos anos 1960 e 1970 terem parecido mais novos do que realmente eram.

O historiador Jorge Glusberg identifica uma pré-história da performance e do happening ainda no século XIX, com a demolição dos frágeis pressupostos dramáticos de sua época pela peça Ubu Rei. Além de apresentar soluções novas para a cena, particularmente no que diz respeito à forma de atuação, entonação das falas e uso dos figurinos, Alfred Jarry reconfigurou a arcaica tradição realista do teatro e influenciou decisivamente os autores surrealistas, dadaístas e do Teatro do Absurdo. As Noites Futuristas, em 1910, com seus recitais poéticos, performances musicais, leituras de manifestos, dança e representação de peças teatrais são apontadas por Glusberg como movimentos de protoperformance, seguidos pelas ações dos futuristas russos nas ruas de São Petersburgo, Moscou, Kiev e Odessa, pelo Cabaret Voltaire e também pelas turbulentas e agressivas manifestações na sala Waag, que caracterizariam o Dadaísmo. Onde os europeus se posicionariam com um senso de déjà vu, os americanos sustentaram legitimamente um sentimento de novidade, excitação e ruptura.

Adaptação realizada por Michael Meschke da peça Ubu Rei, escrita por Alfred Jarry — 1964

The past is a grotesque animal

Reavaliar cânones é tão significante quanto sua expansão ou ruptura. Ao buscar novas narrativas para a história da vanguarda, o crítico de arte Hal Foster parte de um relato pós-histórico que serve para desmontar a coarticulação do artístico com o político, criando novas genealogias que complexificam seu passado e respaldam seu futuro. Para ele, em vez de anular o projeto da vanguarda histórica, a neovanguarda deveria abrangê-lo pela primeira vez.

No livro O Retorno do Real, Foster procura coordenar eixos diacrônicos (ou históricos) e sincrônicos (ou sociais) na arte e na teoria, através de dois conceitos principais. A paralaxe implica o deslocamento aparente de um objeto causado pelo movimento real do observador, figura que acentua o fato de que as elaborações do passado dependem da posição do observador no presente, e que essas posições são definidas por meio de tais elaborações. O efeito a posteriori, tomado de Freud, define o movimento de registro de um acontecimento traumático. Foster explica que, para Freud, especialmente quando lido por Lacan, a subjetividade não se estabelece de uma vez por todas, ela é estruturada como uma alternância de antecipações e reconstruções de eventos traumáticos. “São necessários sempre dois traumas para fazer um trauma”, comenda Jean Laplanche, citado por Foster como quem muito fez para esclarecer os diferentes modelos temporais do pensamento freudiano. Nesse jogo de antecipações e reconstruções, Freud cristalizou a temporalidade psíquica do sujeito, a qual é muito diferente da temporalidade biológica do corpo.

Foster argumenta que a importância dos acontecimentos de vanguarda é produzida de maneira análoga, mediante uma complexa temporalidade que alterna antecipação e reconstrução. Se um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica, com a vanguarda histórica não foi diferente.

A vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneiras semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos — em suma, num efeito a posteriori que descarta qualquer esquema simples de antes e depois, causa e efeito, origem e repetição.

Com base nessa analogia, a obra da vanguarda apresenta-se como não concluída historicamente, não efetivada ou plenamente significativa em seu momento inicial por ter justamente sido traumática, um buraco na ordem do simbólico de sua época", que não estaria preparada para essa obra, que não poderia recebê-la, pelo menos não imediatamente. A partir do modelo freudiano de repressão e repetição, Foster argumenta que, tendo sido a vanguarda histórica reprimida institucionalmente (seja pelo nazismo ou pelas guerras ocorridas na Europa na primeira metade do século XX), ela foi repetida na primeira neovanguarda e não, segundo a distinção freudiana, recordada, o que implica que suas contradições foram (finalmente) trabalhadas.

Foster coloca ainda que, em sua primeira repetição, a vanguarda foi levada a parecer histórica antes de ter a oportunidade de se tornar efetiva, isto é, antes que suas ramificações políticas e estéticas pudessem ser esclarecidas, elaboradas. Dessa maneira, o assim chamado fracasso da vanguarda histórica em destruir a instituição da arte capacitou a neovanguarda a submeter essa instituição a um exame desconstrutivo (3).

Munido por certa consciência histórica acerca da vanguarda européia, o movimento experimental no cinema americano lutou contra a tradição que limitava a forma cinematográfica à estética hollywoodiana. Em meio à turbulência política e social que marcou o período, Brakhage retomou, à sua maneira, o objetivo de reintegrar a arte à práxis da vida, ao cotidiano, produzindo um tipo de cinema independente e pessoal que se manteve muitos anos atravessado pelo registro da vida familiar, reelaborando criticamente os registros domésticos, ao mesmo tempo que aprofundava sua pesquisa sobre os processos inerentes ao ato de ver.

Notas

(1) — Como exemplo, o livro Teoria da Vanguarda, de Renato Poggioli, traduzido do italiano em 1968, foi revisado nos Estados Unidos como se fosse um livro sobre modernismo. O Conceito de Vanguarda (1973), escrito por John Wightman, foi subtitulado Explorações no Modernismo.

(2) — O sit-in é uma forma de protesto não violento em que os participantes ocupam uma área como forma de protesto de ação direta. Normalmente, os manifestantes escolhem uma área significativa para sua manifestação ou, às vezes, áreas que causem mais transtornos às pessoas e, portanto, atraiam mais atenção. O teach-in consistia em um fórum extenso no qual palestrantes opostos debatiam as principais questões levantadas pela guerra no Vietnã e a polêmica em torno dela. Após a onda de protestos em torno do anúncio inicial do envolvimento da Nova Zelândia no Vietnã, parecia haver uma calmaria na atividade e, portanto, com a introdução dos professores universitários, uma nova dinâmica foi instilada no movimento que promoveria seu perfil público.

(3) — No final de 1950 e começo dos anos 1960, os artistas estavam sendo formados em novos programas acadêmicos. O título de mestrado em belas-artes foi implementado nessa época, o que levava os interessados a estudarem as vanguardas do pré-guerra com um novo rigor teórico. Enquanto a maioria dos artistas dos anos 1950 reciclaram os procedimentos da vanguarda, os artistas da década de 1960 tiveram que elabora-los criticamente.

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