Montagem e memória: o passado enquanto possibilidade

Diego Franco
Diego Vieira
Published in
8 min readSep 18, 2020

O desmonte do monte, dirigido por Sinai Sganzerla (Parte II)

A lembrança (…) não passa, muitas vezes, de uma amnésia organizada, um engodo, um obstáculo à verdade para além de qualquer exatidão factual, em suma, uma função de encobrimento” Georges Didi-Huberman

A relação entre cinema, história e memória estabelecida nos filmes produzidos majoritariamente a partir da montagem de arquivos estimula a reflexão sobre a potência política dessa prática cinematográfica, quando o cinema se propõe a contar a história do mundo. O desmonte do monte pode ser visto como um filme radical por ter sido realizado fundamentalmente a partir do que existe, estabelecendo conexões e disjunções entre os arquivos selecionados por Sinai Sganzerla. Para a pesquisadora Isabel Castro, a escolha por trabalhar com arquivos está ligada a uma importante função crítica acerca da ordem estabelecida, a um questionamento dos modos de ver e das formas de contar existentes.

Como evocada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, a ligação entre o cinema e a história acontece porque a imagem é, por si mesma, carregada de história: é uma impressão do mundo, devido à técnica, mas também de sentido, graças à condensação, na imagem, do passado no presente. Em meio à complexa espessura de temporalidades emaranhadas que forma o contemporâneo, Agamben enxerga a montagem como um pontente dispositivo capaz de articular o anacronismo que sustenta aquilo que entendemos como presente (1). Isso coloca o cinema e o audiovisual, se não no centro, em um importante lugar na reflexão sobre os processos mnemônicos contemporâneos. Somos atravessados por um fluxo ininterrupto de imagens e sons que faz crescer os bancos de dados e gera uma avalanche de novos arquivos todos os dias. Isso expande os acervos pessoais, ao mesmo tempo que torna tais arquivos cada vez mais acessíveis e, portanto, passíveis de serem manipulados. No entanto, as mídias digitais em rede criam um paradoxo entre a sedução pela memória — o massivo armazenamento de dados, o registro dos mínimos momentos do cotidiano — e a inclinação ao esquecimento.

O pesquisador alemão Andreas Huyssen aponta a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais, uma importante questão a ser construída, elaborada e compartilhada. Huyssen argumenta que um novo tipo de discurso de memória emergiu na década de 1960, no rastro da descolonização e dos movimentos sociais inclinados à construção de histórias alternativas. Eles foram impulsionados, a partir de 1980, primeiramente pelo debate cada vez mais amplo sobre o Holocausto e, um pouco mais adiante, pelo movimento testemunhal atrelado a toda uma série de eventos relacionados à história do Terceiro Reich.

Agamben esclarece seu pensamento acerca da ligação entre a história e o cinema em um texto sobre Godard, publicado no jornal Le Monde. Segundo ele, a história que o cinema retoma não é a história comum, cronológica, mas uma história messiânica, uma história que se relaciona com a salvação. Além disso, o que faz com que a imagem ganhe poderes messiânicos é a montagem e, embora não seja todos os gestos de montagem capazes de tal proeza, ele se detêm no que chama de condições transcendentais da montagem: a paragem e a repetição.

Ao voltar aos grandes filósofos da repetição, como Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Deleuze, Agamben define a repetição não como o retorno do mesmo, mas como o retorno da possibilidade de algo que passou, de algo que aconteceu. Consequentemente, ele fala de uma memória que pode transformar a realidade em possibilidade, e a possibilidade em realidade. Por outro lado, a paragem surge como poder de interrupção, uma potência que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo do filme para a expor enquanto tal. Assim, a paragem possibilita ao espectador penetrar nas camadas da imagem com uma atenção diferente, fora da ilusão impulsionada pelo movimento. Quais filmes você lembra ter visto que usaram destas técnicas para contar suas histórias?

Apesar dos arquivos não contarem a verdade sobre o que ocorreu, eles guardam algo desse passado, tal como nossas cicatrizes. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin afirma que o “rastro está sempre ameaçado de ser apagado ou de não ser mais reconhecido como signo de algo que assinala”. Uma precariedade que, segundo Ginzburg, representa um confronto sério e qualificado com as políticas do esquecimento (2).

Não há como desvincular a lembrança do esquecimento, eles estão sempre conectados, de forma difusa. A historiadora Arlette Farge salienta que o arquivo é capaz de falar uma certa verdade sobre o que passou. Como vestígio de algo, ele enfrenta o observador atento com um olhar oblíquo, tanto no passado quanto no presente. Complementando esse pensamento, e tal como Agamben, a pesquisadora e cineasta Anita Leandro julga ser na montagem que se abre a possibilidade de ouvir o que o arquivo tem a dizer. É ela que possibilita ao arquivo voltar para o espaço de enfrentamento com o presente. Articulado com outros materiais, por vezes heterogêneos, é possível criar camadas de entendimento cada vez mais profundas sobre o passado e, consequentemente, sobre o presente. Esse gesto dialético faz com que a memória aflore e a imaginação acione uma viagem ao rio das sobrevivências, da Mnemosyne (3).

Ao mesmo tempo ligação e corte, a montagem desarquiva a documentação e a leva de volta ao convívio social; ela compõe novas séries de documentos; aproxima o que foi separado pelos processos de arquivamento e de preservação; restaura o que foi apagado pelo tempo; faz recortes em fotografias, textos e falas; restitui um contexto que produz um adensamento histórico do material encontrado. A mesa de montagem dos documentos da história é, nesse sentido, a confluência dos conhecimentos do historiador, do restaurador e do arquivista. (LEANDRO:2015:119)

É importante frisar que o passado tal como ele propriamente foi nunca será conhecido. Walter Benjamin argumenta que articular historicamente o passado significa apoderar-se de uma lembrança, tal como ela cintila num instante de perigo. O historiador afasta-se da herança positivista que acredita na imparcialidade do conhecimento histórico, ele desconfia de uma verdade única e segura sobre o passado. Debruçar-se sobre o passado, articular suas histórias está, para Benjamin, mais próximo das inseguras e movediças recordações que se apoderam dos nossos corpos, do que da pretensa exatidão científica. Quando nos lembramos de algo, esquecemos um imenso espectro de acontecimentos, lugares e pessoas. Tais são os liames que a construção da memória história mantém com o esquecimento e a degeneração, o que torna ainda mais frágeis as perspectivas sobre a história que se declaram exatas e imparciais.

A tomada de consciência sobre as camadas e anacronismos do tempo impulsiona a luta, rememora os que sofreram antes, mune o presente com as experiências passadas. Ao estudar as teses de Walter Benjamin, Michael Lowy salienta que o constante perigo de uma derrota no presente aguça a sensibilidade pelas derrotas anteriores, suscita o interesse dos vencidos pelo combate e estimula um olhar crítico pela história. Quando os eventos passam a não mais flutuarem em um espaço uniforme e atemporal, quando o passado volta como possibilidade, articulado entre os elos produzidos na mesa de montagem, o engajamento político pode florescer como um sistema de defesa, de modo a evitar que o sofrimento se repita. Embora seja impossível voltar atrás e modificar o que passou, podemos olhar para trás e buscar meios de evitar novas desgraças, munidos com o messiânico poder das derrotas passadas.

Sinai Sganzerla retoma a história de uma cidade marcada por remoções, onde corpos são constantemente arrastados, de acordo com os desejos políticos. No entanto, vivemos outros tempos. É importante olhar atentamente para o que acontece ao nosso entorno, para captarmos os lampejos que emergem em meio à noite que nos envolve, para enxergarmos as diferenças que se instauram na história. A remoção da Vila Autódromo não aconteceu completamente, como a do Morro do Castelo e muitas outras que sujam a história carioca. Das 600 famílias que lá moravam, 20 permaneceram na comunidade, sendo que alguns despejos foram evitados graças a cordões humanos e a transmissões ao vivo, realizadas por veículos da imprensa. A história não se repetiu, não totalmente. A urgência que reveste o presente se mostra ainda mais pungente quando olhamos para os acontecimentos do passado, como se eles anunciassem um incêndio que podemos evitar, juntos.

Em todo caso, não se pode perder de vista que a escrita da história tem um caráter essencialmente ficcional, atrelada à memória do historiador/cineasta e ao contexto social, político e geográfico no qual ele está inserido. O cineasta monta os fatos dos quais se lembra ou aos quais teve acesso durante a pesquisa. Ele articula uma fábula que serve de casulo para se fortalecer e, assim, enfrentar o presente. Apresentando uma visão polêmica, paradoxal e constrangedora da tarefa do historiador , Gagnebin o define como aquele que luta contra o esquecimento e a denegação, luta, em suma, contra a mentira, mas sem cair em uma definição dogmática de verdade.

Notas

1 — Em seu texto sobre o que é um dispositivo, Agamben posiciona o termo dispositivo como sendo decisivo na obra de Foucault, onde relaciona-se a um certo conjunto de práxis e saberes, de medidas e instituições cujo objetivo é administrar e orientar, em um sentido que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens. Ampliando a possibilidade de leitura do conceito, o filósofo define o dispositivo como qualquer coisa que “tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”.

2 — Os arquivos que sobrevivem às intempéries experimentam ainda constantes investidas políticas quanto à sua existência, como o Projeto de Lei 7.920, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), que autoriza a destruição do patrimônio documental brasileiro após digitalização. O pesquisador e professor Charlley Luz salienta que essa atitude legaliza a queima dos arquivos históricos. Segundo Charlley, a digitalização gera um representante digital que nunca será igual ao documento original por motivos diplomáticos e de garantia histórica e da verdade. O professor distingue arquivo e informação, sendo definido como arquivo aquilo que atesta, o resultado de uma ação realizada em um contexto que usou ou gerou este ou aquele documento. A informação é definida como uma estruturação de dados, podendo representar uma modificação no conhecimento, quantitativa ou qualitativa, sobre o que passou.

3 — Diferentemente do sentido da Nachleben warburguiana, uso o termo sobrevivência para me referir a algo que resiste às intempéries do tempo, um fragmento do passado, um rastro, um arquivo que se conserva até o presente de sua retomada, no caso, pelo cinema.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Le cinéma de Guy Debord. In: Image et mémoire. Hoëbeke, 1998

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CASTRO, Isabel. Só me interessa o que não é meu. In. Devires, V. 12, N. 2, p. 94/119. Belo Horizonte, Jul/Dez 2015.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

LEANDRO, Anita. Montagem e história. Uma arqueologia das imagens da repressão. In: Alessandra S. Brandão e Ramayana Lira de Souza. (Org.). A sobrevivência das imagens. 01ed.Campinas: Papirus, 2015.

LOWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.

WILLIAMS, James. Silence, gesture, revelation: The ethics and aesthetics of montage in Godard and Agamben. In.: GUSTAFSSON, Henrik e GRONSTAD, Asbjorn . (Org). Cinema and Agamben. Nova York: Bloomsbury, 2014.

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