Montagem e memória: o passado enquanto possibilidade

Diego Franco
Diego Vieira
Published in
8 min readSep 22, 2020

O desmonte do monte, dirigido por Sinai Sganzerla (Parte III)

Paisagem com a queda de Ícaro / Peter Bruegel, O velho (c. 1560)

isterra: só uma maneira de abordagem nos comunica com o imenso: a miúda. Guimarães Rosa

Se Deus está nos detalhes, como atesta a célebre frase do historiador de arte Aby Warburg, a minudência e os pequenos elementos podem ser pensados tais como portais através dos quais arriscamos entrar no mundo que o cinema e as obras de arte instauram. Por isso mesmo, a atenção surge como característica fundamental para viver a experiência de adentrar tais portais, a mesma atenção que tem sido constantemente redimensionada pelos dispositivos do mundo contemporâneo. Diferentemente de qualquer modelo de visualidade anterior, a mobilidade, a novidade e a distração se tornaram elementos constitutivos da experiência perceptiva moderna. Parte da lógica cultural do capitalismo exige que aceitemos como natural o ato de mudar nossa atenção rapidamente de uma coisa a outra. Então, acostumados ao fluxo ininterrupto dos estímulos visuais, seja descendo as páginas de sites como o Facebook ou mergulhados no flow das stories do Instagram, a maneira meio apressava com que olhamos as imagens talvez dificulta enxergarmos a justaposição dos elementos - em constante tensão - que as constituem. Por se basear no excesso de estímulos, nossa cultura resulta na perda da agudez da experiência sensorial. Diante disso, Susan Sontag comentava, ainda nos anos 60, que era importante recuperar nossos sentidos. Que precisávamos aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais. Algo que se coloca nos dias atuais como da maior importância.

Com um pouco de atenção é possível identificar, por exemplo, as pernas de Ícaro flutuando entre as pinceladas oceânicas de Peter Bruegel, O Velho. O detalhe é camuflado pela ondulação do mar, talvez também pela composição assombreada na ponta inferior direita do quadro, e ainda pelo olhar do pastor de ovelhas para o céu, onde um leitor de Ovídio poderá imaginar encontrar Dédalo, pai de Ícaro. Ao rememorar o final do mito daqueles que construíram o labirinto onde o Minotauro fora aprisionado, o quadro cria uma tensão entre texto e imagem, passado e presente, entre o que se mostra na imagem e o que é preciso buscar em suas dobras. É preciso abrir a obra, assim como se abre um livro, não com o intuito de interpretá-la, mas para saborear os sumos que escorrem dela com o toque mais sutil do interesse, do olhar atencioso.

Dédalo alertou Ícaro para que não voasse muito próximo do sol ou do mar, mas que o seguisse. Ao superar a vertigem que voar o fez sentir, Ícaro mergulhou na imensidão do céu e, encantado pela luz e o crescente calor que abraçava seu corpo, se aproximou fatalmente do sol. A cera usada para colar suas asas derreteu, selando seu fim nas águas do mar. Curiosamente, o sofrimento do homem-anjo parece passar desapercebido aos personagens representados por Brueghel, que seguem sua rotina pastoril, desinteressados de voar.

Dito isto, voltemos ao filme que tem movimentado esta série de textos que hoje chega ao fim. Até que ponto o detalhe, o miúdo, como fala Guimarães Rosa, pode ser considerado uma chave de análise para os estudos sobre cinema? A tessitura d'O desmonte do monte é composta por centenas de imagens diversas, entre elas, dezenas pinturas. Com o intuito de ilustrar os trabalhadores do Brasil colonial, Sinai Sganzerla retoma alguns quadros do holandês Albert Eckhout (2). O pintor viajante desenvolveu um acurado trabalho documental no continente, patrocinado pela corte de Maurício de Nassau. Eckhout retratou os primeiros habitantes do país, mulatos, mamelucos, negros, índios, assim como frutas, flores, a vegetação e os animais. Minha intenção não é analisar os aspectos documentais inerentes à representação de Eckhout, mas deslocar o olhar para um detalhe que pode, de alguma maneira, ajudar a pensar sobre o detalhe que me fez chegar até aqui, tal como a serpente que morde sua própria calda.

A Negra / Albert Eckhout (1941)

O quadro acima é estruturado em três planos: o primeiro, composto pela vegetação rasteira, a mulher, a criança, o cactos, a carnaubeira; o segundo, formado pelas duas palmeiras, um pé de mamão e pela vegetação ao fundo; o terceiro apresenta a paisagem litorânea, o oceano com três navios distantes da costa e, ao lado direito, alguns personagens representados no cotidiano dos trabalhos ligados ao mar. Com atenção, podemos enxergar o curioso detalhe: entre eles, uma escada está erguida no vazio e, em seu topo, alguém aparentemente pinta o oceano.

A Negra (detalhe)

Em meio à suposta documentação dos tipos e costumes do Brasil colonial, a escada sustentada na planicidade do oceano pictórico formula uma canção silenciosa, de tons surrealistas. O que me faz arriscar que é o detalhe que expõe o lado fantasioso de toda representação! Ao olhar atento, o detalhe reserva a possibilidade de redimensionar completamente a relação estabelecida com a obra de arte ou com o cinema. Ao mesmo tempo, ele cria chaves de leitura capazes de expandir análises preestabelecidas e lançar o observador em um campo de indeterminação, onde ele poderá remontar, a partir das suas experiências pessoais, os sentimentos e sensações que a obra nele evocou. O detalhe abre novas veias de sensibilidade capazes de redimensionar a abordagem com o objeto analisado.

No filme de Sinai Sganzerla, o desmonte do Morro do Castelo é interligado a outro desmonte, contemporâneo à realização do filme. Por meio de um raccord temático, o amontoado das casas demolidas na Vila Autódromo conecta-se a uma fotografia antiga, em preto e branco, onde duas figuras enfrentam os escombros da demolição das casas do já desmoronado Morro. A passagem entre os arquivos heterogêneos mantém a mesma trilha sonora, onde escutamos o barulho das marretas e o intenso sibilar do vento. Estratégia que indica uma certa relação, um continuum entre as remoções, ontem e hoje.

Apesar da forma clássica com que O Desmonte do Monte é estruturado, esse detalhe evidencia a potência da desarticulação cronológica para a práxis do cinema de montagem. Ele sinaliza um movimento anacrônico em meio à narrativa linear, é o salto e a descontinuidade em ação. A criação desse elo entre arquivos heterogêneos conduz a reflexão a formular conexões e ara o terreno para que novas memórias possam surgir, através do tensionamento entre o passado e o estado de coisas atuais. Assim, o tempo se mostra em sua complexidade, tal como nos lembra Didi-Huberman: ele desliza, cai e renasce em outro lugar ou de outra maneira, em tensões ou latências.

O Desmonte do Monte / Trecho

Montado por Rodrigo Lima, O desmonte do monte coloca em xeque a pretensiosa historiográfica mantida sob a rigidez da linearidade cronológica. Foi este o detalhe que me trouxe até aqui. Detalhe que, apesar da sua pequenez, foi capaz de movimentar, inquietar, fazer com que o sono se perdesse em meio à vigília da leitura. Ele provoca na estrutura interna do filme uma fratura que julgo essencial para a produção de um conhecimento renovador, messiânico, para usar o termo caro a Walter Benjamin (3).

Ao optar retomar o passado através dos arquivos, Sinai lança-se na vertiginosa espiral do tempo, com suas sobrevivências e repetições. Ela entrelaça passado e presente, possibilitando novas leituras sobre a história fluminense. Espaço de trânsito entre o vivido e o imaginado, o filme negocia as visibilidades e invisibilidades da história como forma não apenas de estar em um espaço híbrido, mas sobretudo de refletir sobre este espaço. A imagem está intimamente ligada com a história e o passado. É a imagem que sobrevive. Por isso, e como o filme de Sinai faz magistralmente, é necessário montar as imagens do passado, de modo a retomar aspectos esquecidos, mas também tensiona-las em conflito dialéticos, junto aos registros do presente.

O filme de Sinai inicia-se com um vulcão em erupção. A lava escorre, espirra, arde os olhos do espectador com seu vermelho vivo, pastoso. Só depois somos transportados para a Baía de Guanabara, palco da história que será contada. Curiosamente, o último plano do filme é uma imensa geleira se partindo, uma escolha de montagem que faz da natureza o princípio e fim de toda e qualquer história. O homem, pequeno grão em meio ao turbilhão infinito do tempo, parece desintegrar-se junto à dor que provoca em si mesmo, aos outros e ao planeta. No entanto, é importante não se deixar cair nas graças dos finais distópicos, mas treinar o olhar para enxergar o espaço das aberturas, dos lampejos que levem a imaginação a outros futuros possíveis, apesar de tudo. (4)

Notas

1- Gosto especialmente da descrição do quadro dada por William Carlos Williams, em um poema que leva o nome do quadro holandês: According to Brueghel / when Icarus fell /it was spring // a farmer was ploughing / his field / the whole pageantry // of the year was /awake tingling / near // the edge of the sea / concerned / with itself // sweating in the sun / that melted / the wings’ wax // unsignificantly / off the coast / there was / a splash quite unnoticed / this was / Icarus drowning

2 - Os quadros de Eckhout escolhidos pela realizadora foram: Dança Tapuia (1641), A mulher Tupi com criança (1641), Homem Tupi (1641) e Mulher Tupi (1641).

3 - A desvalorização do tempo presente pelos partidários do progresso lançou o homem em uma marcha sem descanso para um futuro que nunca chegou, mas para o qual se continua caminhando. Walter Benjamin buscou redimir o tempo presente, ressaltando sua importância e articulando sua inegável dimensão política. O presente é, para ele, o lugar onde se torna possível romper com o continuum da história linear. É o espaço onde a revolução se torna possível. Contrariando a perspectiva histórica teleológica, o pesquisador alemão pensa o presente como momento de imobilização dialética da história, do “choque” que interrompe seu fluxo contínuo.

4 - Quando escrevi o texto, tive acesso a uma versão do filme com esta montagem que não é a versão final e oficial.

BIBLIOGRAFIA

BRUM, Mario. Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. In: O Social em Questão, Ano XVI, nº 29, p. 179/208. Rio de Janeiro, 2013.

CASTRO, Isabel. Só me interessa o que não é meu. In. Devires, V. 12, N. 2, p. 94/119. Belo Horizonte, Jul/Dez 2015.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: 34, 2006.

GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin. In: SEDIMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime. (Orgs). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

OTTE, Georg. VOLPE, Miriam Lídia. Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin. In: Fragmentos, número 18, p. 35/47. Florianópolis/ jan — jun/ 2000

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídias. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

SONTAG, Susan. Contra a interpretação. https://medium.com/@mauroreis/contra-a-interpreta%C3%A7%C3%A3o-66723e38a261

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