O movimento das montanhas

Diego Franco
Diego Vieira
Published in
5 min readSep 11, 2020

Parte III

Frame do filme “Navios de terra” (2017), dirigido por Simone Cortezão

Fantasia, em alemão: Phantasie. É o termo para designar a imaginação, não tanto a ‘faculdade de imaginar’ (…), mas o imaginário e seus conteúdos, as ‘imaginações’ ou ‘fantasias’ em que se entrincheiram, habitualmente, os neuróticos (…). Nessas cenas que o sujeito conta (…), é impossível desconhecer a tonalidade, a nuança da fantasiação. Portanto, como escapar à tentação de definir esse mundo em relação àquele do qual ele se separa: o mundo do real?

Laplanche

Seria a fantasia que avulta o sonho de todo impulso artístico um caminho possível para enfrentar os acontecimentos traumáticos? Conforme se pode concluir a partir do enxerto acima, escrito pelo psicanalista Jean Laplanche, existem duas camadas, porosas e interconectadas, que formam a espessura do real: uma composta pelos acontecimentos objetivos e exteriores, as ações no mundo material, e a segunda, que ele chama “realidade psíquica”, que dá conta da realidade daquilo que sonhamos, imaginamos e pensamos. Ambas possuem pesos equivalentes na balança que mede a realidade das coisas, configurando os dois lados de uma mesma sombra.

Ao fabular sobre um aspecto importante da realidade brasileira, Simone Cortezão provoca o enfrentamento do espectador com os poros e cavidades existentes entre essas duas camadas da realidade. Enquanto o filme segue o percurso das montanhas rumo à Ásia, os personagens entrelaçam os fios de suas memórias ao ininterrupto movimento da embarcação. Eles resgatam as lembranças de outras viagens, desde os acidentes fatais às invasões piratas, o que coloca em pauta a subjetividade do homem comum, aquilo que se busca ocultar dentro do sistema de exploração capitalista. Assim, a cineasta desvenda uma realidade complexa em si mesma, com diversas camadas interconectadas, o que faz com que seu filme contribua para a expansão do entendimento sobre o que pode ser um documentário, enquanto gênero cinematográfico.

Em entrevista dada para aprofundar algumas questões que pavimentaram este texto, Cortezão revelou ter escutado de um dos curadores do Festival Cinéma du Réel, na Suíça, que seu filme não teria entrado na programação de anos anteriores porque era muito ficcional. Apesar de persistir a crença do documentário enquanto algo fidedigno àquilo que se coloca diante da câmera, algo atravessado por uma pseudo realidade, dentro das programações voltadas para produções documentais é possível notar um deslocamento da percepção sobre as potencialidades do gênero e, consequentemente, uma complexificação do entendimento sobre a própria realidade.

Navios de terra se posiciona no profícuo limiar entre ficção e documentário, de modo que, segundo a realizadora, a ficção torna-se “um mote para tocar o real, como processo metodológico de pensar, conhecer e infiltrar lugares blindados e institucionais, trazendo, pela via da imagem e da escrita, os fragmentos invisíveis da história atual.” Além disso, foi através da ficção que foi possível acessar alguns dos lugares filmados. Cortezão revelou que durante a pré-produção das filmagens, quando ligava para as mineradoras e os portos e era questionada sobre o que estava fazendo, ela dizia ser uma ficção, o que era respaldado pela figura do ator Rômulo Braga nas filmagens. A ficção parece ser vista como algo inofensivo, o que possibilita a abertura de um modo de fazer, enquanto o documentário é enxergado como ferramenta de denúncia sobre o real, sobre aquilo que se apresenta frente à câmera.

Os filmes de Cortezão afirmam a vocação e o dever do cinema tal como articulado pelo cineasta Andrei Tarkovski, que o pensou como instrumento para ampliar o domínio sobre o mundo real, de modo a explorar os problemas complexos do nosso tempo, tais como a vida e a morte, a esperança e a fé, o amor e o sacrifício. Enquanto espectadores, flutuamos pelos planos de temporalidade alongada esculpidos por Cortezão, mergulhados na imensidão das imagens em formato scope. (1) Habitamos o tempo do barco e temos a percepção inédita de certas paisagens, a partir de certos enquadramento e composições, como quando um drone captura imagens do encontro perverso entre o rio envenenado e o mar.

Ao inserir na dobra do instante cinematográfico as imagens terrosas do encontro entre o rio Doce e o mar, ela elabora uma decupagem do próprio tempo, através da qual é possível pensá-lo, assim como também se torna possível pensar a tragédia e o próprio cinema. Para Cortezão, o trauma da tragédia estava naquele encontro entre o rio e o mar, mais do que no lugar do acidente em si. Estava lá “em uma fusão (…) que habita o interstício entre o coma, o trauma e o lugar preciso de uma grande ressaca.”

Vínculos entre elementos textuais, sonoros e imagéticos são criados no filme para oferecer um certo agenciamento à percepção do mundo. Na busca por uma imagem em movimento que se equivaleria àquilo que sente quando pensa ou se coloca nas paisagens da sua infância, a cineasta transfigura ela mesma as paisagens que enfrenta com sua câmera. Munindo-se da promiscuidade entre a ficção e o documentário, Cortezão apresenta uma história com contornos vibrantes, sobretudo partindo de uma certa poeticidade das imagens como instrumento para esgarçar a percepção e criar outros mundos. Resta a nós, espectadores, investigar quais paisagens o seu filme provoca dentro de nós, e o que elas sentem. Sem esquecer que é preciso também sonhar a terra pois, como nos lembra o pajé yanomami Davi Kopenawa, ela tem coração e respira.

Nota

(1) - Durante a entrevista citada anteriormente, Cortezão justifica a escolha estética pelo formato scope: “Tive muito trabalho para capturar a imensidão da paisagem, o que era uma questão para mim. Ela não cabia no quadro do filme. Talvez a escolha pelo scope responda essa inquietação, sendo uma tentativa de abarcar aquelas grandezas.”

Suporte bibliográfico:

BESSE, Marc-Jean. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007.

CORTEZÃO, Simone. Terras remotas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 10, página 112–117, 2017.

_________________. Zonas de ressaca. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n.1,p.70–89, jan. 2019.

COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FREUD, Sigmund. La interpretación de los sueños. In: Obras completas. Madrid: Biblioteca nueva, 1967. 2004.

KOPENAWA, Davi. A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das letras, 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

MADERUELO, Javier. El Paisaje: génesis de un concepto. Madrid: Abada Editores, 2005.

MENDES, Hernani Guimarães. Acerca da paisagem. In:

ROSSI, Amanda. Fragmentos de vida e morte. In: https://piaui.folha.uol.com.br/fragmentos-de-vida-e-morte/

PESAVENTO, Sandra. História e história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhias das Letras, 2018.

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