O movimento das montanhas

Diego Franco
Diego Vieira
Published in
9 min readSep 2, 2020

Parte II

Frame do filme “Navios de terra” (2017), dirigido por Simone Cortezão

O sonho é o olho da vida.

Mia Couto

O primeiro plano de Navios de terra é uma paisagem idílica, onde a câmera fixa captura o voo de um pássaro que atravessa firmemente a imagem ao entrar pela direita do plano e desaparecer na outra extremidade. A cadeia montanhosa ao fundo parece fixa, imóvel, atemporal. O tom da fotografia, juntamente com a neblina que dosava a atmosfera do lugar no momento da filmagem, provoca a sensação de estarmos diante de uma paisagem em duas dimensões, um quadro liberto da tridimensionalidade e dissolvido na planicidade do ecrã. Como espectadores, habitamos aquele rápido instante, deslocado do tempo das coisas: observamos. O ruído de um veículo invade ainda este plano para ganhar sentido no próximo onde, sobre um carro em movimento, a câmera registra árvores banhadas pela densa neblina. No terceiro plano, a câmera volta à terra, à imobilidade do tripé, e vemos outra paisagem, agora marcada por uma extensa camada de poeira que se movimenta lentamente. Surge uma voz over feminina, de timbre envelhecido, desenhando com suas palavras uma cena perdida no Antigo Testamento, sonhada pelo rei Nabucodonosor. Enquanto ela narra o sonho profético, enfrentamos planos fixos, imagens que testemunham o desastre em Mariana — e antecipam o de Brumadinho -, onde paisagens despovoadas, impregnadas pelos tons vermelho-alaranjados da lama tóxica, revelam uma região que fora forçadamente abandonada.

O movimento do sonho narrado tem como epicentro o surgimento de uma estátua de aparência terrível, cuja cabeça é de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de cobre, as pernas de ferro e os pés, em parte de ferro, em parte de barro. Fortemente impactado pela impressão do sonho, mas incapaz de lembrá-lo, Nabucodonosor buscou em seu reino alguém que pudesse não apenas decifrá-lo, como também o lembrar daquilo que tanto afligia misteriosamente sua alma. Os magos, astrólogos, encantadores e caldeus foram incapazes de adivinhar as imagens sonhadas, recebendo sobre eles a ira do rei.

A bíblia revela ainda que, naquele tempo, estava nas mãos de Nabucodonosor a humanidade, os animais selvagens e as aves do céu, sendo tamanho poder permitido a ele graças a Deus. Era ele o rei dos reis, simbolizado no sonho pela cabeça de ouro da estátua, como logo lhe seria revelado. Durante o anoitecer e como que por magia, o profeta Daniel teve acesso ao sonho do rei e, ao acordar, foi ter com ele para revelar o que seus símbolos escondiam. Ainda sobre o sonho, reveleu Daniel que:

(…) uma pedra soltou-se, sem auxílio de mãos, atingiu a estátua nos pés de ferro e de barro e os esmigalhou. Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro foram despedaçados, viraram pó, como o pó da debulha do trigo na eira durante o verão. O vento os levou sem deixar vestígio. Mas a pedra que atingiu a estátua tornou-se uma montanha e encheu a terra toda.

Segundo a tradução de Daniel sobre as imagens oníricas, o enigma do sonho versava sobre o movimento de aparecimento e destruição dos reinos da terra, cada um simbolizado por uma parte da estátua; o último reino, aquele que governará a tudo e a todos, era o império de Deus que toma toda a terra, tal como uma montanha imensa. Desse modo, na lenda ancestral o sonho se configura como uma visão criptografada, o que remete a toda uma literatura sobre as relações entre sonho e visão, enraizadas particularmente no texto romano O sonho de Cipião, de Marco Túlio Cícero. Ao narrar o conto bíblico, o filme de Cortezão une o sonho profético às imagens dos locais atingidos pela lama do rompimento da barragem da Samarco, encadeadas por meio de cortes secos. Se a destruição é iminente, inevitável e anunciada desde os tempos bíblicos, o que assistimos parece ser parte significativa desse processo.

Frame do filme “Navios de terra”

De modo semelhante ao sonho de Nabucodonosor, imagino ter sido inúmeras as vezes em que a catástrofe da barragem do Fundão foi prenunciada nos sonhos daqueles que moravam na encosta do rio Doce, assim como a destruição dos mundos uma dia fora revelada ao rei do Antigo Testamento. Me permita contar um dos meus sonhos. Cresci em um pequeno povoado aos pés de uma barragem, na divisa entre Minas Gerais e Goiás. Uma estrondosa sirene sempre soava antes das comportas da hidrelétrica abrirem, e tal como as sereias encantavam os marinheiros, o som provocava uma tremenda excitação em nós, crianças, nos arrastando para fora de casa — quando lá já não estávamos — em direção às ruas de onde era possível assistir o espetáculo do derramamento das águas. A barragem faz parte da paisagem da minha infância, sendo uma imensa presença no cotidiano daqueles que ainda vivem na região. Embora não tenha sido atormentado pela existência de uma periclitante represa de lama tóxica, lembro de um recorrente sonho que invadia minhas noites e ainda hoje resiste à passagem do tempo, enraizado em como uma importante lembrança do meu passado.

O sonho aparece como a linguagem dos hieróglifos, produzindo significações sob a forma de cenários imaginários. Nestes sonhos da minha infância, o apito da hidrelétrica soava ainda mais ensurdecedor enquanto eu presenciava uma tsunami devorar o que naquele tempo era o mundo inteiro para mim. Eu assistia a tudo do alto, flutuando como os anjos do apocalipse. Desapareciam as galinhas e os bouganvilles da minha avó, assim como as mangueiras e goiabeiras do quintal, e toda minha família era engolida pelas águas; a lembrança que persiste hoje é a de um sonho esburacado, com partes faltando, mas lembro sobretudo de acordar com a sensação de um azul escuro profundo. E o silêncio. Vivia esse sonho como uma alucinação fantasiosa, e sempre assustava meus primos quando, ainda estremunhado, contava sobre o fim do mundo que presenciara pouco antes de acordar. Ainda sonho com essa hidrelétrica, não mais com a tragédia do seu rompimento, convém dizer, mas com visitas exploratórias pelas suas engrenagens, sempre acompanhado por pessoas desconhecidas, com as quais desvendo o interior de sua maquinaria agigantada, que sempre fora tão enigmática para mim.

Usina de São Simão, leiloada em 2017 para a empresa chinesa Spic Pacific Energy PTY

Se acreditarmos que os sonhos são sempre ecos de alguma coisa, qual seria o elemento de distinção entre uma profecia, uma visão de futuro, tal como a de Nabucodonosor, e um simples desejo projetado, seja ele de vida ou de morte, de dor ou de paixão? Qual é a dose de realidade que podemos dar aos sonhos durante nossa vida desperta e consciente? O ato de sonhar identifica uma fenda existente em nós, nos colocando frente ao inconsciente, sendo por essência uma fonte de mistérios imensos. Segundo Freud, o trabalho das imagens oníricas é nos fazer chegar ao umbigo dos sonhos, um nó no qual se interrompem os pensamentos desenvolvidos pelo sonho e nos deparamos com o insondável, o desconhecido. É o encontro com a interrupção de sentido, logo, com o impossível. E se imaginarmos que apenas o impossível é algo passível de se tornar possível, podemos interpretar o sonho como um encontro com o porvir, uma doença do próprio tempo, uma fissura anacrônica no interior da linearidade dos dias.

No entanto, crianças e adolescentes sonhadores não são ouvidos ao se definir mudanças econômicas ou se pensar novas estratégias de contenção de rejeitos de minério de ferro — mesmo quando os laudos técnicos apontam para uma iminente tragédia. Por isso mesmo, milhões de jovens ativistas ocuparam as ruas do planeta, se recusando a estudar nas sextas-feiras. O ato de desobediência civil representou a primeira grande adaptação à emergência climática. Segundo o El País, essa postura provoca um ponto de inflexão na história ao colocar as crianças à frente da luta pela preservação do planeta. Elas precisam se fazer ouvir.

Se o sonho é o olho da vida, como certa vez afirmou um personagem de Mia Couto, a perda de intimidade do mundo moderno com esse modo de enxergar o que nos envolve tornou a nós todos, de alguma forma, cegos? O neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro pensa o sonho a partir de diferentes disciplinas, como a medicina, a literatura e a psicanálise. Ele argumenta que “desde a antiguidade se sabia que sonhos podiam acertar e errar. Havia uma certeza de que não eram confiáveis, mas eram potencialmente preciosos.” Os sonhos eram usados para ampliar a noção de mundo. Em entrevista para o jornal OGlobo, Ribeiro pontua que:

Ao relegar os sonhos ao segundo plano, abrimos mão de um poderoso instrumento para simular efeitos de nossos atos e encontrar soluções para problemas — atributos que os tornam especialmente importantes num momento em que a humanidade se vê paralisada diante de uma catástrofe climática e da crescente desigualdade social.

Mas oque provocaria esse nó entre o agora e o futuro? O que possibilita a criação de imagens tão provocantes, inquietantes? Qual seria a matéria sensível oferecida aos sentidos durante o sonho? Ao se fazer tamanha pergunta, o filósofo francês Henri Bergson intuiu sobre uma poeira óptica que ocupa o campo visual e serve para a fabricação das imagens sonhadas, como as imagens luminosas que percebemos quando as pálpebras encostam na retina. Mas também, os sonhos seriam influenciados pelo ambiente que envolve a pessoa adormecida, como quando a luz inesperada da chama de uma vela o atinge, movendo o devaneio onírico para paisagens incendiadas; ele discorre ainda sobre a influência das sensações táteis e sonoras para a formação dos sonhos, de modo a concluir que, quando dormimos, os sentidos não estão fechados às impressões exteriores, como o senso comum acredita. As sensações, apesar de vagas e indeterminadas, tanto do exterior quanto do interior do corpo, das vísceras e do movimento dos órgãos, juntam-se ao corpo fantasmático das lembranças, e nesse jogo entre matéria e memória as imagens-sonhos são formadas.

Frame do filme “Navios de terra”

O sonho para Bergson surge como ressurreição do passado, mesmo que este passado não seja reconhecido, tal como um detalhe esquecido nas profundezas da memória. O sonho é fabricado com uma estranha e poderosa sensação de realidade, de modo que, para nosso corpo, as sensações entre o que foi sonhado e o que é lembrado do passado vivido adquirem uma fluidez inebriante. Onde um acaba e o outro começa é terra onde ninguém pisa. Relembramos o passado como quem rememora um sonho quase esquecido, e preenchemos os buracos das lembranças como quando tentamos ligar imagens oníricas incoerentes entre si, dando certa continuidade racional ao efervescente fluxo de imagens que, ao acordar, lembramos ter sonhado. Nesse ponto, Bergson supõe que “o erro do sonhador é antes o de raciocinar muito”. O filósofo fala ainda sobre certas doenças que são previstas pelos sonhos, pois eles nos leva a reentrar em nós mesmos; ao dormirmos, nos distanciamos da distração da ação que nos exterioriza e realizamos um mergulho que nos torna conscientes dos pontos do organismo, particularmente das vísceras. E talvez, também mais conscientes daquilo que nos rodeia e nos aflige. Portanto, as lembranças-fantasmas que aspiram carregar-se de materialidade em nossos sonhos podem sobretudo revelar o que ainda está por vir, tal como esclarece a história de Nabucodonosor narrada em Navios de terra.

Voltando ao filme, Navios de terra se desenvolve silenciosamente na fissura aberta por traumas provocadas nas paisagens — e nos corpos — pela estrutura capitalista extrativista. Nos primeiros escritos freudianos sobre a histeria, o trauma foi definido como algo que vem de fora, um choque que, de tão violento, exclui o próprio sujeito. É algo do reino da imensidão, do incomensurável, suficientemente intenso para inviabilizar a capacidade de domínio e reação do sujeito, que se torna psiquicamente refém do ocorrido. Por isso, o trauma é difícil de afastar, arrastando os pensamentos a um incontrolável retorno à situação traumatizante. Sua temporalidade é a da ruptura, como aqueles instantes capazes de promover mudança permanente em nós. Frente a uma situação traumática, não somos capazes de reagir com uma resposta que permitiria descarregar os afetos mobilizados pelo acontecimento; por isso, Freud afirmou que as memórias do trauma ficam carregadas de um afeto represado, e se comportam como verdadeiro corpo estranho no psiquismo. Nos resta o desafio de compreender como seria possível elaborar a aridez daquilo que se vivencia como traumático. Como habitar a ruptura instaurada pelos acontecimentos devastadores?

Entre a paisagem corrompida pela tragédia do progresso, o cinema e os sonhos, uma paisagem incomum pode ser identificada. Se, por um lado, o sonho da modernidade brasileira produziu monstruosas aberrações, como as enxurradas de lama tóxica, se transfigurando em uma distopia perversa, por outro, o cinema carrega a potência poética de construir informações em estruturas semelhantes àquelas que germinam os sonhos. Por meio das suas especificidades, pode criar descontinuidades temporais e espaciais entre os planos, criar imagens impossíveis de serem presenciadas durante a vigília, assim como acelerar ou acalentar a temporalidade das imagens em movimento. Isso possibilita inscrever a vida no tempo - com tudo o que nela não se mostra, como o universo quase invisível das emoções -, dando forma e visibilidade a outras maneiras de enfrentar os traumas contemporâneos.

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