Quando a pedra toma a palavra

Diego Franco
Diego Vieira
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11 min readMar 29, 2021

Por Diego Franco e Duda Kuhnert*

Ilustração de Gustave Doré para uma das passagens da Divina Comédia, de Dante Alighieri

Não existe sol sem sombra, e é preciso reconhecer a noite.

O Mito de Sísifo — Albert Camus

Em seu primeiro longa-metragem, Taego Ãwa (2016), as irmanes¹ Marcela e Henrique Borela exploraram os desvios interpretativos e complicações existentes entre camadas temporais diversas. Através de uma estrutura narrativa documental e um olhar atencioso para o registro do cotidiano, assim como para as imagens de arquivo compiladas, o filme revela o arrebatamento latente das pequenas coisas cotidianas. Ao mesmo tempo, afeta o entendimento do espectador quanto às injustiças presentes nos processos de demarcação das terras indígenas, modulando um acerto de contas com as ações que, de maneira alguma, se restringem ao tempo que passou. Os personagens habitam uma cosmologia comum de formas, texturas e ações particulares às comunidades indígenas, como a pintura corporal e a caça. Passado, presente e futuro formam os lados de um triângulo que compõe a luta pela demarcação das terras indígenas originárias do povo Ãwa, sem aproximar o filme de uma abordagem panfletária.

Neste que é o novo filme de Marcela e Henrique Borela, o cotidiano surge como aquilo que enclausura e, paradoxalmente, cria aberturas para a libertação - tal como o veneno que misteriosamente esconde em sua sombra a respectiva cura. Desde os créditos iniciais, Mascarados revela um mundo que remete ao aprisionamento dos corpos em sistemas de trabalho exploratório que, em troca, retribuem o gasto de energia vital com nada ou quase nada, como ouvimos na fala de um dos personagens. Filmado em Goiás, na cidade de Pirenópolis, o filme é estruturado por dois eixos interconectados. De um lado, apresenta o cotidiano dos funcionários de uma pedreira de quartzito micáceo, minério que de tão característico na região passou a ser conhecido como Pedra de Pirenópolis; o outro eixo aborda os personagens em suas vidas fora da pedreira, quando surgem os questionamentos evocados pela presença dos mascarados da cavalhada, que dá nome ao filme, conhecidos também como curucucus. Comemorada na cidade desde 1819, a festa do Divino Espírito Santo atrai turistas e envolve os moradores da região por doze dias, sendo a manifestação popular mais importante de Pirenópolis.

Produzido através de fundos públicos voltados para a realização de documentários, o filme se empodera da ficção como modo de fazer, examinando as camadas narrativas locais para explorar, sob o risco do real, as suas potencialidades. Por isso, dialoga com uma produção contemporânea, nacional e internacional, que vem diluindo as fronteiras entre os gêneros clássicos da criação cinematográficas. Diluição que opera de forma a retroalimentar tais gêneros. Algo semelhante ocorreu no universo das artes visuais que, desde os readymades de Marcel Duchamp, passou a pautar discussões sobre os limites que envolvem a arte e a vida, de modo mais intenso nos anos 1960 e 1970. As estratégias e interrogações lançadas pela Arte Conceitual, muito fértil nesse período, investiram na tendência da desmaterialização da arte e elaboraram uma crítica desafiadora ao objeto de arte tradicional. Assim, as linhas que envolviam os campos “arte” e “vida” passaram a se aproximar e se distanciar, sem se perderem um no outro, mas produzindo prolíficos encontros entre essas poéticas. De maneira análoga, ficção e documentário expandiram seus terrenos de definição no cinema, afrouxando seus limites, ao mesmo tempo que tencionando as linhas entre eles, sem que um fosse cancelado no outro. É importante ficcionalizar para tratar a vida tal como ela é.

“Mascarados”, de Marcela e Henrique Borela (2020)

Na produção cinematográfica nacional contemporânea, referências diretas podem ser observadas em Arábia (2017), A Vizinhança do Tigre (2014) e Baronesa (2017), filmes realizados por membros da equipe de Mascarados. A primeira assistente de direção, Juliana Antunes, assina a realização de Baronesa, enquanto o montador, Affonso Uchoa, dirigiu A Vizinhança e Arábia. Marcela e Henrique Borela parecem inspirados ainda nas ficções das subjetividades familiares elaboradas pelo diretor André Novais, em filmes como Ela volta na quinta (2015) e Temporada (2018), nos quais não atores performam suas identidades frente à câmera, ficcionalizando a si mesmos, tal como nos filmes anteriormente citados. Felizmente, isso evidencia a existência de um profícuo diálogo entre os realizadores brasileiros, proporcionado pela facilidade dos meios de compartilhamento de filmes e ideias, e fortalecido pela manutenção de festivais e mostras de cinema importantes, como a Mostra do Filme Livre, a Mostra de Tiradentes, o Olhar de Cinema, o Festival de Brasília, a Janela Internacional de Cinema do Recife, para citar alguns exemplos.

Sobre a pedra

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, freqüentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela dicção ela começa as aulas).

(…)

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e, se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha a alma

João Cabral de Melo Neto

Um gesto vai e vem em meio aos planos de Mascarados: a escavação. São múltiplas as formas de encarar essa ação, mas nos parece que todas vão de encontro com as facetas coloniais das economias globais. A extração é, por excelência, o paradigma deste sistema, o que imprime uma visão de mundo nas diversas geografias, a fim de converter tudo e todos em recurso capitalista. A vida colonial, com seus corpos e afetos, foi um imenso continente a ser explorado. Embora por vezes o tratemos como algo que pertence ao passado, o colonialismo se encena diariamente na nossa vida presente. É importante lembrar que esse passado é uma ferida profunda que nunca foi tratada, como afirma Grada Kilomba, “ela sempre dói, está sempre lá.”².

Arrancar, remover, permutar e roubar são ações comuns a um sistema econômico que caracteriza as relações exploratórias entre os países, desde o capitalismo baseado no duo extração-exportação, do século XVI, até as privatizações da esfera do comum, tão características do neoliberalismo contemporâneo. Nenhum aspecto da existência parece escapar da organização extrativista. Em contraponto a essa árida perspectiva sobre o real, em Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak argumenta que, para diversas culturas, os bens naturais possuem outros significados. As montanhas, por exemplo, são compreendidas como seres vivos, possuem sentimentos e afetam os dias e as noites de diversas comunidades. Por vezes, falam sobre o futuro. Frente à imensa capacidade imaginativa dos povos originários, que articulam narrativas tão apuradas sobre a realidade, o líder indígena se pergunta o motivo pelo qual a imaginação é alijada em prol de uma narrativa globalizante e artificial, que formula a cruel fábula na qual tudo é transformado em mercadoria. Por meio dessa perspectiva, florestas, rios e montanhas são esgotadas pelos aparatos extrativistas. Adiar o fim do mundo é, para Krenak, a possibilidade de criarmos novas narrativas sobre aquilo que nos rodeia, desenvolver novos significados para mundo, de modo a postergar a iminente catástrofe que nos espreita. Nos envolver, portanto, com aquilo que o psicólogo James Hillman chamou de ficções que curam.

Em Mascarados, a geografia física se confunde com a geografia humana. No primeiro plano, uma esteira leva estilhaços de pedra até a máquina que a transforma em poeira. Pedras que em seguida descobrimos serem removidas pela ação humana de uma montanha pulverizada no interior do Brasil. A poeira entra nos poros e cola na pele dos personagens. Sobre o Pico do Cauê, serra arrasada pela exploração de minério de ferro em Itabira, cidade natal de Carlos Drummond de Andrade, o poeta escreveu:

Esta manhã acordo e não a encontro

britada em bilhões de lascas,

deslizando em correia transportadora

entupindo 150 vagões,

no trem-monstro de 5 locomotivas

trem maior do mundo, tomem nota

foge minha serra vai,

deixando no meu corpo a paisagem

mísero pó de ferro,

e este não passa.³

São histórias de montanhas roídas, processos que consomem lembranças e possibilidades de futuro. Drummond narra a perda da montanha fundamental da sua infância itabirana, fruto do impacto da máquina mineradora naquela pequena cidade de origem colonial, localizada entre jazidas de ferro amplamente exploradas pela Companhia Vale do Rio Doce, a partir da década de 1940. Nesse caso, perder uma montanha é perder uma imagem-paisagem carregada de memória. Arrasar uma montanha é arrasar um passado.

Em Mascarados os personagens também perdem sua montanha, momento que revela a virada narrativa do roteiro. O fechamento da pedreira que concentra a fonte de trabalho e garante o sustento de boa parte da cidade anuncia o fim de alguns sonhos e a construção de outros, possíveis e impossíveis - ou possíveis justamente por serem impossíveis. Sonhos que aparecem no não-dito, na iminência de um acontecimento que não se dá enquanto imagem, mas nas elipses da montagem. Afinal, os sonhos são esburacados, fragmentados, e surgem no filme enquanto estilhaços - assim como as pedras -, ainda que formem o arco narrativo de uma vida inteira.

A montanha se mistura ao corpo dos personagens, os brutalizando enquanto produz e fortalece as memórias da exploração. Nos leva a crer que uma porção destes sujeitos está impregnada de algo que vai permanecer para além do tempo das coisas orgânicas. Assim, confunde-se o mundo dos sujeitos com o mundo dos objetos, a cultura e a natureza. Os territórios são físicos, mas também afetivos, e arrastamos conosco o espírito dos lugares que atravessamos. Por isso, explorar as montanhas, rios e mares é como explorar as histórias do mundo. Da mesma forma, abrir fendas nas rochas de Pirenópolis é expôr a vida dos homens que trabalham naquele lugar, como se a pedra fizesse parte da dura sensibilidade construída naqueles homens e mulheres. O filme nos apresenta, de um lado, a montanha no coração do mundo, onde habita uma intensa atividade mineradora que a tudo atropela com suas explosões, suas máquinas e seus modos de produção. Do outro lado, temos a festa, o enigma da máscara. O mundo em Mascarados não se assemelha nem à natureza nem à cultura, mas a algo entre esses dois universos. Uma topografia social e afetiva, explorada em dois elementos fundamentais na narrativa: a pedra e a máscara.

Entre os personagens destaca-se a figura do forasteiro Vinicius. Além da influência religiosa de matrizes africanas, evidenciada pela guia de Exu que carrega no pescoço, quase nada sabemos sobre sua história. Estranho àquela terra, começa a trabalhar para a pedreira. A prefeitura arrenda a extração e o beneficiamento das pedras para a iniciativa privada, que monta equipes de trabalho, sobretudo mão-de-obra informal. Isso intensifica o caráter de imprevisibilidade que os moradores locais tecem entre o trabalho e a vida. Ouvimos da boca de outro personagem que “nós mesmos não ganhamos nada não”, que os patrões passam “a vida inteira enrolando nós”. Aos poucos, os elementos do que parece ser uma explosão ganham contornos, fortalecidos pelos movimentos violentos necessários para o trabalho na pedreira.

“Mascarados”, de Marcela e Henrique Borela (2020)

Se as pedras extraídas naquela montanha nos ensinassem algo, o que seríamos capazes de aprender? Existe um idioma próprio para nos comunicarmos com elas? Como soam suas palavras? “Esta pedra no meio do caminho ela já não disse tudo, então?”⁴. Escreveríamos sua linguagem atirando-as? Se sim, em que direção seriam apontadas? Se a pedra se entranha na alma dos que moram nas cidades que rodeiam as pedreiras, de que modo ela habita os diferentes corpos? De todas as qualidades de uma pedra, a impenetrabilidade é aquela que caracteriza a existência pétrea de Vinicius. Seu corpo é sólido, fechado e maciço, não se diluiu ao longo do caminho percorrido até chegar em Pirenópolis. Ele parece saber muito bem o motivo de estar ali, o que o trouxe e para onde vai. Trabalhar naquela montanha roída é tal como o seu destino mineral: frequentar a pedra até ela se entranhar em seus poros, deixando entrar um pouco daquele lugar, o transformando através das angústias e desejos daquela cidade.

Uma inquietação aflige o coração de Vinícius, quando ele toma consciência do absurdo que envolve seu trabalho, da falta de sentido da sua condição humana. O personagem descobre, depois de trabalhar violentamente por quinze dias, que existe a possibilidade - e não a certeza - de receber o pagamento pelo serviço. Então, ele passa a se questionar sobre seu presente, a inquietar-se por um trabalho que lhe dê mais satisfação, que o deixe contente, porque “na pedreira tá complicado”. Ele se espelha no fazedor de máscaras local, que tem muito gosto no trabalho que faz porque, segundo ele, as máscaras permitem que as pessoas tenham liberdade, mesmo que “por dois, três dias”. Esse diálogo corta a fluxo narrativo do filme. Logo depois, somos apresentados à festa que ouvimos falar em diversos momentos. Depois dos registros documentais das festividades, somos levados novamente para a pedreira, por um corte seco. Se são poucos os dias de festa, muitos são os do trabalho.

Quando os trabalhadores descobrem que a pedreira vai fechar, vemos um close no rosto de Marcos Caetano, o personagem mais resignado com sua posição no mundo. Em seguida, uma explosão na montanha. O efeito Kuleshov é muito bem trabalhado neste momento, sobretudo em um filme que, a partir de então, passa a mostrar menos e a sugerir mais. Marcos reclama que, depois de treze anos de trabalho, vai sair “com uma mão na frente e outra atrás”, evidenciando a brutalidade que se esconde nas sombras do trabalho informal - atualmente formalizado. O que fazer, então, sobre o futuro? Diferentemente de Marcos, Vinicius já havia começado a romper o looping que o aprisionara, talvez por toda a vida. Encarcerado pela repetição de uma ação fadada ao fracasso, Vinicius pensa sobre a vida que continua além da pedreira, implacável. Algo deseja esmagar os homens, e começar a pensar é um campo minado: “Nós merece mais do que carregar pedra”, ele argumenta, acompanhado pelos sons do entardecer. Como no provérbio Lamba, que abre o livro Necropolítica, escrito por Achille Mbembe, Vinicius “deixou sua pegada na pedra / Ele mesmo a seguiu.”.

Para o filósofo franco-argelino Albert Camus, o trabalho repetitivo e absurdo passa a ser trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Ele ilustra sua tese através do mito de Sísifo, personagem famoso por sua insubordinação aos Deuses, tendo sido esperto suficiente para, entre outras versões das suas histórias, enganar e aprisionar Thanatos, a personificação da morte. Seu castigo foi para sempre empurrar uma pedra até o cume de um monte, onde ela rolaria para baixo, o obrigando a novamente rolar a rocha para cima. Camus comenta ser a volta de Sísifo o que interessa sua reflexão, a suspensão antes do retorno para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Para o filósofo, esse é o momento da consciência, aquilo que torna o mito trágico porque, se pergunta Camus, se Sísifo sustentasse a esperança de ser bem-sucedido em sua provação, onde estaria sua pena? “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce” para buscar a pedra que rolará até o pico da montanha uma vez mais, e para sempre. Os deuses “pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”⁵.

Se a descolonização é o desfazer do colonialismo e, por consequência, a conquista da autonomia por parte dos que foram colonizados, existe um corte paradigmático no momento em que Vinicius desmonta a repetição. Ele se torna fonte de seu próprio movimento, passa a depender somente de si, chegando mais próximo daquilo que chamamos de liberdade. Algo que só é possível quando encara em sua composição pétrea o aspecto mais fascinante das pedras: a força de revolta concentrada em sua massa, pronta para ser atirada. Toda pedra carrega em si mesma o gesto sem fim da insurreição. Nos cabe entranhar na pedra para aprender a resistir.

*Texto originalmente publicado em junho de 2020, na Revista Beira.

  1. Como sabido, a flexão de gênero dos substantivos que têm como sujeitos personagens masculinos e femininos são, via de regra, flexionados para o masculino. A problemática das relações de violência da língua portuguesa, portanto, evidencia a sua profunda herança patriarcal e colonial. A artista Grada Kilomba argumenta que a barbaridade vai se repetir eternamente se não fizermos uma revisão daquilo que normalizamos como universal, se não criarmos uma nova narrativa, uma nova linguagem, se não criarmos novas imagens para narrar nossas vidas.
  2. “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”, de Grada Kilomba.
  3. “A montanha pulverizada”, de Carlos Drummond de Andrade.
  4. “Pedra lume”, de Ana Cristina César. Em Inéditos e dispersos: poesia prosa (1985).
  5. “O Mito de Sísifo”, de Albert Camus.

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