A sociedade na era do amor digital

Durkheim diz que a sociedade é superior ao indivíduo e que este, por sua vez, deve se submeter e se adaptar aos padrões da mesma. O padrão contemporâneo de relações sociais pode ser facilmente percebido e é quase unânime para geração atual. Nos comunicamos de forma instantânea através de devices totalmente preparados para suprir nossa demanda ríspida e severa de conexão vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. As pessoas gastam boa parte do tempo que possuem nas mídias digitais e, consequentemente, a vida social de cada um também migra, em parte, para o mundo virtual. Dessa forma, é normal que essa migração desencadeie amizades e até mesmo relacionamentos amorosos à distância, inclusive como uma maneira de suprir a solidão e o isolamento dignos da era atual.

O filme argentino “Medianeras” mostra de forma sutil e delicada a claustrofobia social em uma cidade que cresce vertical e desenfreadamente. O próprio título remete à parte inutilizada de prédios que tem como objetivo dar privacidade aos moradores de construções vizinhas. Em uma hora e meia, é mostrado o cotidiano de dois personagens, Mariana e Martin, que partilham os mesmos problemas e ansiedades, moram em endereços extremamente próximos, mas não se conhecem. Este ultimo fator é sintomático da sociedade atual, pois estamos majoritariamente confinados em cidades com milhões de habitantes e mal conhecemos nossos vizinhos. A solidão do mundo urbano é de certo modo irônico, pois à medida que estamos mais próximos, nos afastamos ainda mais. O mundo digital proporciona o mesmo efeito. Estamos a um “enviar” de distância e nossas relações são cada vez mais frágeis. Ou seja, o que há é pura conexão, mas as pessoas não se conectam de fato. A fala de Martin em um dado momento da obra ilustra bem essa situação: “[…] a internet me aproximou do mundo, mas me distanciou da vida”.

Além disso, o dia a dia contemporâneo nos obriga a sermos sempre bem-sucedidos e felizes. Tudo deve causar satisfação e felicidade o tempo todo e o que ferir essa positividade deve ser eliminado, ignorado, escondido, posto em um limbo de vergonha a ser esquecido e descartado. Quando esses padrões idealizadores não são alcançados, tendemos a nos angustiar e nossa fobia se expande, causando, no fim, o isolamento. No filme, Mariana possui um dilema com o livro infantil “Onde esta o Wally?”. A metáfora construída parte da dificuldade que a personagem tem em encontrar o Wally justamente na pagina “O Wally na cidade”. Nesse caso, o Wally pode representar a angústia de estar sozinho e perdido em meio a uma multidão.

Mais do que um soco no estômago, o filme nos coloca frente a frente com um espelho que reflete a sociedade na qual vivemos com um compromisso tão grande com a realidade que chega a nos assustar de alguma forma. Todos nós por vezes nos sentimos anestesiados: não ficamos verdadeiramente tristes, mas também não nos sentimos de fato alegres. O dia se esvai com a mesma facilidade com a qual surge e nós mal percebemos. Vivemos no piloto automático, tentando a todo custo manter a nossa rotina minimamente organizada e contando as horas, mas… para que, ou melhor, para quem? A realidade é que vivemos meio perdidos. Todos parecem querer muitas coisas, mas, ao mesmo tempo, ostentam um olhar vago, vazio, assustado, como o de quem procura algo ou alguém, mas sem sucesso. Na verdade, estamos constantemente procurando nosso Wally em meio à multidão. Nem sempre o Wally que buscamos tem a ver com o amor romântico, embora esteja diretamente relacionado à lacuna vazia que permeia nossas relações pessoais, cada vez mais frouxas, desconectadas e decadentes, mesmo em meio à tanta conexão propriamente dita.

Catfish definitivamente não é um romance, mas também fala de pessoas que “buscam seu Wally”. O programa televisivo exibido pela MTV americana possui um formato de reality show e, embora seja completamente diferente de Medianeras quanto ao formato, não trata de um assunto assim tão diferente. No programa, uma dupla de apresentadores tem o objetivo de desvendar mentiras de relacionamentos online. Pessoas que fingem ser o que não são e, assim, iludem parceiros por dias, meses, anos, criando laços que não têm como se materializarem uma vez que muitas vezes já nascem frutos de mentiras.

A facilidade de se esconder por trás de uma tela e afirmar ser algo que não se é altera, de certa forma, o conceito de evolução. Com esse artifício, não precisamos nos esforçar para nos tornarmos quem gostaríamos de ser. Dependendo do objetivo que se possui e do meio no qual buscamos essa relação, basta parecermos com aquilo que sonhamos. A falsa descrição nas redes sociais é o verdadeiro assumir de quem ou do que gostaríamos de ser e, a partir disso, dar início ao teatro no qual brincamos de transformar essa vontade em realidade, mesmo que no plano binário. A enorme farsa que Catfish esclarece é, com certeza, a incompatibilidade do mundo cibernético com o mundo real. Dentro do plano virtual, eles não são mentirosos pois incorporam, de fato, a máscara social que escolheram para si mesmos.

Apesar das histórias de farsas, o programa acaba se deparando, também, com situações de relacionamentos virtuais verídicos nos quais a ligação entre o casal é tão ou mais bem-sucedida do que em muitos relacionamentos de casais que convivem pessoalmente.

Na era digital, a palavra “distância” perde a ligação necessária com o espaço físico. Podemos nos aproximar de pessoas que moram longe, bem como nos distanciar de quem mora ao lado. A verdade é que o melhor caminho para a resistência à tamanha mudança é preencher o vazio existencial que permeia o cotidiano de cada um.

Aí entra a história da procura pelo Wally. E o ato de encontrá-lo, por sua vez, pode se referir não só a achar uma outra pessoa, mas, principalmente, ao ato de encontrar a si mesmo.

--

--