A formação dos jornalistas para as redações no futuro

Sérgio Lüdtke
Digital Media by Interatores
9 min readOct 17, 2017

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Nós todos somos mídia. Comunicamo-nos intensamente e nos valemos de toda e qualquer plataforma disponível, seja ela o nosso próprio corpo ou algum dos vários canais pelos quais nos conectamos e distribuímos informação para as redes. Cada mensagem que emitimos ajuda de algum modo a moldar ou reafirmar a opinião das pessoas e suas visões de mundo. Nesse universo de bilhões de produtores de conteúdo, no qual a informação gira na órbita das pessoas, a sociedade se beneficiaria se o Jornalismo e sua ética fossem uma disciplina também do currículo do ensino médio.

Mas isso talvez seja pedir muito nesse momento em que o Jornalismo está sendo posto à prova e se vê obrigado a lidar com dilemas muito mais sofisticados e urgentes.

Desde o início da digitalização, temos colocado nossa atenção na busca por um modelo de negócios que pudesse garantir a sobrevivência do modelo de operação já estabelecido e plenamente funcional. Embora a preocupação tenha surgido cedo, a solução demora. Sem a sustentabilidade financeira, o modelo de operação agoniza. Ainda que essa busca pela sustentabilidade permaneça vital e urgente, precisamos olhar também para as outras vítimas desse processo. Quero me deter em uma delas, o jornalista.

O modelo de operação a que me refiro é representado em sua maior parte por redações generalistas que estão cada vez menores, com mais atribuições e incapazes de manter seus profissionais mais experientes. Embora esse seja um quadro muito familiar aos jornalistas, vale ler o post de Eliane Brum no Facebook sobre Ricardo Kotscho, um desses experientes profissionais que se viu, repentinamente, desempregado. Ela diz que “parte da crise da imprensa e de seu caminho rumo à irrelevância se dá pela quebra da cadeia de transmissão do conhecimento dentro das redações. A crise ao mesmo tempo causa e é causada por essa quebra da cadeia de transmissão do conhecimento dos mais velhos e experientes para os mais jovens e inexperientes”.

As redações tradicionalmente ofereciam aos novos jornalistas um espaço de aprendizagem, uma espécie de residência, um período em que, orientados por editores e colegas mais experientes, esse novo profissional complementava sua formação com a prática jornalística assistida. É a cadeia de transmissão a que se refere Eliane; a residência, como eu costumo chamar.

O quadro, no entanto, é mais complexo. Mesmo que esse modelo de redação ainda ocupe a maioria dos profissionais, temos um ecossistema nativo digital em formação, que usa outros modelos de operação, que trabalha em rede, novas redações que também não dispõem de um espaço de residência. Os novos jornalistas já ingressam no mercado de trabalho dominando tecnologia e cultura digital, mas qualquer que seja o caminho que pretendam percorrer, eles ganhariam se pudessem passar por uma fase de prática assistida. Essa estação, no entanto, está fechada e eles são obrigados a desembarcar mais adiante.

Vejo nesse contexto uma oportunidade para a universidade, mas tenho dúvidas sobre a capacidade que essas instituições têm para absorver uma etapa da formação que não estava no seu âmbito. Se uma parte da academia já está dissociada do mercado, provavelmente ela tenha enormes dificuldades para operar numa dinâmica tão complexa como é esta trazida pelo digitalismo.

Eu não vejo, porém, um outro espaço que não o da universidade para dar conta dessa tarefa fundamental. Obviamente, a oportunidade será melhor aproveitada pelas instituições mais capazes de se conectar ao mercado, aos meios jornalísticos com e sem fins lucrativos, que consigam atuar em sintonia com as demandas desse mercado, que possam criar laboratórios de mídia eficientes, testar formatos e produzir em modo “valendo” conteúdos para meios de comunicação cada vez mais dependentes da produção de terceiros.

Esse ambiente intermediário, pós-acadêmico e pré-mercado, mais versátil e dinâmico, poderia absorver também profissionais mais experientes, que já estão fora das redações e que, mesmo não atendendo às exigências do meio acadêmico, têm notório saber, são guardiões dos fundamentos do jornalismo, dominam suas técnicas, seus valores e também suas armadilhas.

Eliane Brum diz que não há curso de jornalismo que substitua a cadeia de transmissão. Ela está certa, mas eu diria que terá de haver.

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Para se ter uma ideia dos desafios que os novos e velhos jornalistas têm pela frente, reproduzo abaixo o texto “a reinvenção do jornalista”, sobre as demandas de formação, que faz parte do especial A reinvenção do Jornalismo, que produzi para a edição especial de 22 anos do Jornalistas & Cia. O texto põe o pé no problema e reproduz as principais demandas de capacitação no entendimento de quem contrata, dos editores de algumas das mais importantes redações do Brasil, novas e tradicionais.

A reinvenção do jornalista

Se as empresas de mídia se transformam lentamente, os jornalistas precisam se reinventar com urgência. Um profissional completo domina as técnicas e as linguagens das múltiplas plataformas, entende o universo das redes sociais, conhece métricas e dados e é fiel aos fundamentos do jornalismo. Infelizmente, as redações já não oferecem o espaço de “residência” que complementava a formação dos jornalistas. Esse é um papel que as faculdades de Jornalismo terão que assumir muito em breve.

A seguir veremos quais os principais requisitos para o jornalista profissional na visão de alguns dos maiores empregadores do setor no Brasil.

Entusiasta dos novos arranjos que o digital impôs às redações, Maria Luiza Borges diz que, das 200 pessoas que trabalham nos veículos do Sistema Jornal do Commercio em Pernambuco, não há nenhuma que não atue em ao menos duas plataformas. Até os antigos diagramadores, que agora são designers, conhecem vários softwares e alguns se tornam programadores. Não há mais fotógrafos, quem foi fotógrafo um dia agora ao menos faz foto e vídeo. Não há mais Fotografia, agora é JC Imagem.

Para ela, a fronteira que precisa ser transposta é a dos dados: “Jornalismo não é mais da área de humanas. A orientação para dados precisa estar na veia e a pauta deve ser pensada com o que o leitor irá visualizar. Precisamos entender de monitoramento e nenhum editor pode ignorar redes sociais. O jornalista precisa dominar muito bem todos os passos porque ele já não domina a pauta”.

Com 410 pessoas produzindo conteúdo e mais 30 no back-office, a redação integrada de O Globo, Extra e Expresso é a maior redação de impresso/digital do Brasil, segundo Ascânio Seleme. Hoje, apenas 36 pessoas estão dedicadas ao fechamento das edições impressas. Para o diretor de Redação de O Globo, o jornalista não pode mais se dar ao luxo de desconhecer o que é a indústria e as diversas plataformas em que a marca opera.

A atenção com o negócio também é premissa para os 350 profissionais da NSC. Mario Neves diz que, além da capacitação profissional e atualização constante, que são essenciais em qualquer área, dois pensamentos guiam os profissionais da empresa para o futuro: “O foco em Santa Catarina, em produzir conteúdo que contribua para tornar a nossa sociedade ainda mais desenvolvida e relevante no cenário nacional, e ter em seu mindset uma perspectiva multiplataforma”.

Sérgio Dávila descreve o que espera dos 300 profissionais que trabalham na Folha: “Queremos profissionais que sejam produtores de conteúdo de qualidade, que sigam os preceitos do jornalismo profissional e coloquem em prática os pilares do Projeto Folha (apartidarismo, pluralismo, crítica). Que acreditem no jornalismo profissional como antídoto para notícia falsa e intolerância. Que não se prendam à plataforma em que seu conteúdo vai ser publicado, mas sim em conseguir a informação exclusiva, o olhar original. Que se envolvam na distribuição do conteúdo e se preocupem com sua audiência qualificada”.

A Globo tem cerca de 1.300 profissionais distribuídos pelas cinco emissoras próprias (Rio, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Recife), incluindo TV aberta, GloboNews e G1. Para Sílvia Faria, com o crescimento das notícias falsas, propagadas por web e mídias sociais, o papel do jornalismo profissional ficou ainda mais importante. O desafio, segundo ela, é o de sempre: “Dar notícias de maneira ágil e, ao mesmo tempo, correta. Com pluralidade e isenção. Os profissionais precisam lidar com equipamentos leves de captação de conteúdo, para elaboração do trabalho ou entradas ao vivo quando os fatos se impõem. A integração entre as plataformas (TV aberta, TV fechada e web) também é fundamental. Os novos profissionais precisam estar preparados para esse cenário”.

Ricardo Gandour vê vantagens para quem trabalha no rádio. “O biorritmo que a web introduziu não era nem um pouco estranho para os profissionais do rádio. Pelo contrário, o ritmo da web já era natural para o meio. É fascinante ver que o protocolo de atuação da web já era conhecido do rádio, só o que mudou foi a tecnologia. Ela vai avançando, mas a atitude humana é que vale. O rádio sempre foi interativo, sempre foi uma rede social, só que operava com a tecnologia existente”. Ele entende, no entanto, que há um grande desafio pela frente porque “cada vez mais é necessária a capacitação em novas narrativas, novos jeitos, capacitação técnica-operacional nos modos de fazer. Assim como foi lá atrás, no jornalismo impresso, hoje nós temos essas novas demandas de capacitação, mas nunca foi tão necessário, ao mesmo tempo, revisitar e aprofundar os fundamentos, que em muitos casos estão se perdendo, casos do contexto, das referências e da problematização de uma pauta”.

Para Marcelo Rech, a chave de toda a gestão do jornalismo profissional é o que vai diferenciá-lo do resto da humanidade que produz conteúdos: “Algumas coisas que são básicas serão aprofundadas e necessárias: expressar-se bem e precisamente, por escrito, por imagem etc., usar técnicas de apuração que se enquadrem no conceito de pre-cisão, comunhão universal com determinados valores comuns ao jornalismo e um mínimo denominador comum de padrões éticos, independentemente de culturas”. Rech visualiza um espaço enorme para quem tem a capacidade de ser mais autoral: “Há uma padronização que abre espaço para o que é diferenciado. Em última análise, a diferença se fará por uma combinação de estilo, rigor e capacidade de ser reconhecido como referência”.

Os novos meios

Os novos meios digitais empregam menos gente, mas são tão ou mais exigentes com os seus profissionais. Alguns deles exigem habilidades específicas e apostam no engajamento dos profissionais com os propósitos de suas marcas. A Agência Pública tem cerca de 20 pessoas trabalhando em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para Natalia Viana, o jornalista que quer trabalhar na Pública precisa ter conhecimento do veículo, propensão para o jornalismo investigativo, engajamento, saber que importa menos a experiência e mais o comprometimento. E deve acreditar no potencial transformador do jornalismo.

O Nexo emprega 30 profissionais e, desses, 26 produzem ou editam conteúdo. Para trabalhar no veículo, Renata Rizzi diz que “o jornalista deve estar apto a explorar de fato todo o potencial do nosso modelo editorial e do jornalismo que é somente digital. Entender a sua natureza e se adaptar bem aos novos fluxos de produção, que envolvem diferentes profissionais e competências variadas. Ter criatividade para experimentar e propor diferentes tipos de conteúdo, saber escolher qual dentre os formatos será melhor para expor cada tema ou pauta (texto, vídeo, gráfico, interativo etc.), ser versátil para produzir bem esses variados tipos, e trabalhar em equipe com arte, tecnologia e pesquisa. E ser extremamente competente e rigoroso do ponto de vista tradicional do jornalismo”.

O Jota emprega 31 profissionais e pelo menos 23 deles estão na área de produção de conteúdo. Felipe Seligman apresenta os requisitos para trabalhar no Jota: “Somos uma empresa que fornece informações aprofundadas e altamente técnicas para um público que precisa delas em seu cotidiano profissional. Não dá para brincar em serviço. Precisamos especializar nossos jornalistas para que eles consigam, no longo prazo, tornarem-se referência em suas respectivas áreas. Por isso, vemos com bons olhos profissionais com formação em Direito, Economia e Ciência Política, mas o conhecimento de dados também será fundamental”.

No Poder360 trabalham 30 profissionais, 23 deles jornalistas. Fernando Rodriguesespera que os jornalistas do século 21 tenham tudo o que os do final do século 20 tinham: excelente conhecimento de português, fluência em outras línguas, ampla cultura geral, alguma especialidade, raciocínio lógico, capacidade de apuração e redação: “Acrescento algo que já era muito útil e tornou-se vital e indispensá- vel: saber lidar com bases de dados, interpretar tabelas e estudos estatísticos, bem como dominar completamente os principais recursos de planilhas de cálculo como o Excel”. Para ele, agora no século 21, é necessário que os profissionais tenham também muito prazer em lidar com os desafios da mídia online, como, por exemplo, saber “taguear” corretamente um texto; saber quando e como postar nas redes sociais; saber fazer excelentes vídeos e fotos com o celular; e saber editar texto, áudio e vídeo no próprio celular.

Outra coisa que o diretor de Redação do Poder360 considera muito importante: ter um hábito de leitura além dos posts de redes sociais. “Há uma tendência de jornalistas hoje passarem muito tempo pescando dicas em redes sociais, o que é bom, mas é necessário continuar a ler o que escrevem os concorrentes, a mídia tradicional do Brasil e do exterior”. Os repórteres do Poder360 recebem MacBookPro, iPhone e iPad para trabalhar. Eles são treinados para usar os equipamentos da melhor forma possível. Ter um equipamento de ponta não é um fetiche vazio, alerta Fernando Rodrigues: “Trata-se de dar ao profissional o melhor ferramental para produzir no meio digital. Não podemos exigir que o repórter se especialize em áudio e vídeo sem fornecer a ele/ela treinamento e bons equipamentos. Dou grande valor a esse tipo de habilidade que os jovens jornalistas desenvolvem ao colocar a tecnologia a serviço da apuração das notícias”

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Sérgio Lüdtke
Digital Media by Interatores

Jornalista especializado em mídias digitais, diretor de interatores.com e editor do Projeto Comprova.