A reluzente resistência da cena eletrônica de Porto Alegre

Os cinco principais coletivos de música eletrônica da capital gaúcha falam sobre seu papel social e cultural.

Dimas Henkes
Bumbum
9 min readSep 27, 2019

--

Crédito: Giulia Muller

Em uma cidade de partidas, quem fica resiste. Porto Alegre foi uma das cidades brasileiras mais afetadas pela grande crise econômica e de segurança que assolou o país nos últimos anos. Muitos jovens, inclusive protagonistas da cena cultural local, partiram para outras capitais em busca de compreender e criar novas narrativas.

Mas muito antes disso, a cena eletrônica de Porto Alegre já efervecia. O clube Fim de Século, que na virada do ano 2000 se tornou NEO, foi palco de muitos encontros que se tornaram projetos. Depois, veio Disconexo, NEON e outras festas em clubes que consolidaram o nome da cidade na rota da música eletrônica brasileira.

No final dos anos 2000 e início dos anos 2010, as festas itinerantes começaram a aparecer e trouxeram novas perspectivas: Festa Dada, BUZZ, Vorlat, Arruaça e Fennda deram protagonismo para mulheres e pessoas LGBTQI+, levantando questões sociais e políticas para quem comanda o som e curte a pista de dança. Dançar se tornou um ato político. E, hoje, a maioria dos coletivos busca a pluralidade de nichos em suas próprias pistas.

Dentre os coletivos em ativa em Porto Alegre, tenho o imenso prazer de apresentar Goma rec., Coletivo Plano, Greta, Turmalina e DOMA como os principais representantes da cena eletrônica alternativa gaúcha! Conversei com cada coletivo para entender a história de cada um, a importância da música eletrônica em Porto Alegre e a cena eletrônica atual. Confira:

GOMA REC.

Crédito: Kika e Krunshe

O coletivo Goma rec. (gíria para “casa”) começou em maio de 2016 e o ponto de encontro do coletivo era a casa das DJs Kika e Posada. Quando elas moravam juntas, gostavam de juntar todos os outros integrantes, como Nalu, Deborah Blank, BRF, GB, Leo Felipe e outros chegados a mais.

A Goma nasceu a partir da Arruaça (festa de rua que ocupa espaços públicos), para que os artistas pudessem aprimorar suas pesquisas, técnicas e trocas em festas mais intimistas, dando visibilidade para novos artistas. “Nossa proposta é a troca e maior acesso à música como um todo”, comenda Kika.

Como a música eletrônica fomenta a cultura de Porto Alegre?

Kika Lopes: "Fomenta no sentido de propor experiências mais sensoriais, como a música em ambientes que abranjam a arte não só como algo estético, mas que incorporem o viés político como a resistência ao conservadorismo e ao preconceito. Acredito que a ocupação dos espaços públicos tem tido um tensionamento maior por parte das festas de música eletrônica, não só do underground techno e house, mas também da cena do psytrance. Isso possibilita o acesso à outras culturas musicais e à diversidade que os corpos que transitam nesses lugares possam viabilizar."

Como você vê a cena eletrônica de Porto Alegre?

Kika Lopes: "Vejo como algo que tem crescido bastante, abrangendo novos públicos e facilitado a diversidade entre festas, cada uma com uma proposta. Estamos com datas até o final do ano, em quase todos os finais de semana, o que é algo bastante significativo para uma cidade que há 5 anos não enxergava um horizonte neste patamar. Acho também que a hegemonia da elite tem sido cada vez menor, dando possibilidade a festas menores e com o viés mais político e representativo em pauta. O público também tem sido cada vez mais aberto a novos tipos de experiência e sons, o que para nós, artistas, é essencial para que o trabalho não engesse."

COLETIVO PLANO

Crédito: Pyetra Salles

Coletivo Plano é a atual festa de rua que procurar ressignificar os antigos espaços de Porto Alegre que acabaram sendo inutilizados — o próprio nome surgiu da ideia de um “plano” de ação dentro dos espaços urbanos da cidade. Gabriel Scorza, Natasha Valenzuela, Sérgio Barsotti, Fernando Ribeiro, Fernanda Rizzo, Pyetra Salles e Marcos Martinelli são os nomes por trás da façanha que vem alcançando novos níveis de profissionalização e ações sociais e políticas junto com entretenimento.

Desde maio de 2017 o coletivo realiza ações no espaço urbano, se tornando uma plataforma de facilitação de acesso. Sérgio Barsotti comenta que“os objetivos [da Plano], num geral, são ressignificar o espaço público, o comportamento social e fomentar a criação de novos coletivos”. Aqui, a necessidade por protagonismo fica de lado e quem entra é o impulso de fomentar novos nomes e artistas.

Como a música eletrônica fomenta a cultura de Porto Alegre?

Marcos Martinelli: "Acho que a música eletrônica fomenta uma cultura de ativação de vários fluxos urbanos e relações de sociabilidade jovem que a nossa cidade precisa para sair um pouco da mesmice em que vive há vários séculos. As pessoas vão pra rua para curtir música eletrônica, se envolvem e dançam junto com várias personalidades por aí noite adentro. E isso só já vale o bagulho."

Como você vê a cena eletrônica de Porto Alegre?

Marcos Martinelli: "Essa é uma pergunta difícil. Vejo várias perspectivas da mesma coisa. Cada grupo acredita, impõe ou relativiza a sua cena de diferentes formas, em diferentes tempos, diferentes eventos. Existem várias perspectivas da mesma cena aqui em Porto Alegre. Eu acredito que ela é muito intensa e tem artistas muito fodas. A régua aqui é alta, os DJs aprendem a mixar para sair tocando, se propõem a entender uma CDJ. Então acredito que tenha Cultura DJ. As festas, também, acontecem seguidamente. Festas na rua e festas fechadas, quase todo final de semana."

GRETA

Crédito: Marini Bataglin

Ao perceber a falta de representação feminina e LGBTQ+, Fernanda Rizzo, Paula Vargas, Kika Lopes, Mare Viscaino e Marini Bataglin criaram a Greta, para fomentar, criticar e fazer as pessoas enxergarem a problemáticas de lineups construídos majoritariamente por homens e para homens.

A cena de Porto Alegre se reconfigurou por completo depois da primeira festa da Greta, no início de 2019. Nenhum lineup do circuito alternativo é composto mais somente por homens: as mulheres ganharam destaque (mas o caminho ainda é longo). A origem do nome carrega o papel do coletivo: “Greta é ‘rachadura’ e nosso trabalho é interferir, criar uma rachadura no sistema”, conta Fernanda Rizza. Paula Varga sentimentalmente, completa: “minha primeira paixonite se chamava GRETA”.

Como a música eletrônica fomenta a cultura de Porto Alegre?

Paula Vargas: "Temos muitos produtores de música eletrônica em ascensão nesse momento e, sinceramente, a maioria já estaria em um nível nacional se não estivéssemos tão longe de tudo. A música eletrônica underground produzida agora em POA tem beats quebrados, afiados, é suja, rápida e contém vocais brasileiros. Cada produção fala muito sobre a vivência do produtor. As festas têm dado mais espaço pra esses produtores e a galera tem se inspirado muito neles. O que é produzido aqui tem mudado a cena local, se você olhar de perto. Pesquise: Saskia, Pianki, Tabu, Marcelulose, Nara Vaez."

Como você vê a cena eletrônica de Porto Alegre?

Fernanda Rizzo: "Eu vejo a cena eletrônica de Porto Alegre em vários estágios. Sou nova e produzo festas há quase 3 anos. Anos atrás, clubes como o Fim de Século bombavam muito e tinham um público fiel. Muitas festas, produtorxs e DJs surgiram. Hoje eu vejo que a grande potência da cena são as festas de rua. Os coletivos se uniram mais por conta da repressão. Tem muitos momentos em que a cidade fica sem festa, nossa cena é pequena, mas está crescendo. Vejo muito dos artistas daqui indo tocar em outros estados. Artistas de todo o Brasil vindo pra cá, artistas internacionais também. Os novos núcleos são os que fomentam nossa cena, que fazem as coisas acontecer e que têm posicionamento político, o que é necessário nos dias atuais."

TURMALINA

Crédito: Marini Bataglin

Nos fazendo refletir ainda mais, o coletivo Turmalina (nome inspirado na pedra negra turmalina) veio para “fazer refletir enquanto a gente dança e luta os jogos de poder e posições em locais normalmente tão hegemônicos”, conta Suelen Melo. Para conquistar espaços antes negados, o coletivo provoca a maioria parte branca dos rolês (na pista e na pickup).

Suelen Melo, Marcus Felis, Saskia, Chico, Leo Pianki, Tabu, Iago Gutierre, Mari GuGu, Tom e Faylon começaram rodas de conversas em 2016 e perceberam que se sentiam mais confortáveis quando se viam no rolê. Assim, começaram a criar a própria pista e planejar festas com protagonismo negro. Como a maioria vem da periferia, o grupo se tornou apoio de estudos de técnica musical e de trocas sinceras de afeto e conhecimento. E, assim como a pedra, repele as energias negativas do rolê.

Qual a data de criação do seu coletivo? Como ele nasceu?

Suelen Melo: "Começamos há uns três anos, nos reunindo pra criar ações pra Semana da Consciência Negra. No diálogo, acabamos descobrindo que havia outras demandas, e outras pessoas que poderiam somar.
A gente frequentava o mesmo rolê e, quando se via, a gente se sentia mais confortável, saca? Além de trampar com musica, a gente também dividia aquela sensação de ser “o único preto do rolê”. Perceber isso se torna sufocante depois de um tempo.

Os lines eram sempre compostos por pessoas brancas e a gente, que acompanhava tudo isso no front, nunca era chamado pra tocar. Era como se eu, enquanto pessoa negra, precisasse me esforçar muito mais do que qualquer outro DJ pra conseguir esse reconhecimento. Daí resolvemos criar nossa própria pista. Na Turmalina a gente se vê no front, no backstage, na cdj, no bar, atuando, existindo em tudo! Sem falar na dificuldade de acesso aos equipamentos, que são caríssimos! A maioria de nós vem da periferia, trabalha em sub-empregos, não tem como bancar… A gente procura junt_s compartilhar o que sabe e aprender junto, produzir junto. O Tabu e o Pianki participam do álbum da Saskia, por exemplo. Ela, que sempre trocou figurinha de trampo com o Chico, que já trampou várias vezes comigo, etc. Essa trocas se deram antes da e durante a existência do coletivo."

DOMA

Crédito: Fagner Damasceno

Buscando formas criativas para sustentar as próprias festas, DOMA decidiu investir em outros caminhos para fazer o negócio acontecer (e render), trazendo colaboradores, designers, fotógrafos, performers e diversos artistas para dentro do seu time. O DOMA se tornou um ambiente seguro para artistas do underground se encontrarem, construírem suas personalidades e se expressarem. São inúmeros os colaboradores, entre eles: Xarão, Leonardo Lague, Paula Vargas, Fran Piovesan, Pedro Moser, Bruno Louzada, Mateus Neiss, Bella, Amy Babydoll, Alan Lague, Fagner Damasceno, Paola Pilla, Alanna Pingray e Andi Morais.

Questionando o seu redor, o coletivo também sentiu falta de representatividade nos lugares que frequentavam. Bruno Louzada comenta que “Porto Alegre é uma cidade provinciana e atrasada em muitos aspectos sociais” e que vê a cena eletrônica underground movimentando um grande grupo de pessoas a questionar uma série de comportamentos e padrões já estabelecidos.
Fran Piovesan acrescenta que “é interessante observar como artistas gaúchos bastante talentosos só conseguem encontrar espaço dentro da cena de música eletrônica underground”. DOMA é quase como uma casa de irmandade, onde todos somam com o que podem, criando uma irmandade pronta para novos desafios.

Como a música eletrônica fomenta a cultura de Porto Alegre?

Xarão: "Em uma cidade do tamanho de Porto Alegre, existem diversos cenários e nichos da cena noturna. É importante salientar que trabalhamos com apenas um deles, em busca da construção de uma cena plural e mais democrática que as festas mais populares, que atraem centenas e até milhares de pessoas. Com foco na diversidade, buscamos construir um espaço que possibilite o máximo de liberdade e novas descobertas para o público. Acreditamos que uma festa não é só uma festa. Uma festa representa uma comunidade. E por isso, representa a sua cultura. Nesse sentindo, a música eletrônica faz parte da cultura do público que vem encontrado nas nossas ações um ambiente que também os represente."

Como você vê a cena eletrônica de Porto Alegre?

Xarão: "O crescimento de coletivos, selos e festas independentes prova que a cena eletrônica alternativa de Porto Alegre busca cada vez mais um caminho customizado. A oferta proporciona o poder de escolha e torna o público mais exigente. Esse comportamento faz com que cada vez mais as iniciativas trabalhem para uma entrega maior, principalmente de estrutura e serviços.
É uma cena que esta crescendo e que ainda vai amadurecer muito de acordo com as necessidades."

--

--

Dimas Henkes
Bumbum
Editor for

Curador cultural, estrategista de conteúdo e conector de projetos e pessoas. Diretor do programa Bumbum na rádio Veneno.