“Nós temos uma tendência de endeusar as pessoas, e eu corro para o outro lado”

Vinícius Sanfelice
Dinheiro e Poder
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9 min readOct 2, 2019
Flavia Bemfica na redação do jornal Correio do Povo de Porto Alegre (RS) — Foto: Vinícius Sanfelice

Por Vinícius Sanfelice

Flavia Bemfica, 48 anos, nasceu em Caxias do Sul, é jornalista formada pela PUCRS e atualmente trabalha no jornal Correio do Povo. Seu primeiro contato com o mundo profissional foi na revista Amanhã na editora Plural, e logo depois que se formou em 1993 passou a trabalhar na redação cobrindo economia pela mesma revista. Trabalhou na editora até 1995, quando se tornou funcionária do jornal Pioneiro em sua cidade natal, onde passou a escrever para o caderno de cultura ‘Sete Dias’. Após um ano, virou repórter da editoria ‘Região’, que cobria cerca de 50 cidades da Serra gaúcha.

Em 1997, Bemfica voltou para Porto Alegre e foi contratada pelo jornal Correio do Povo, parou de trabalhar por dois anos para cuidar de sua filha que nasceu em 1999, no mesmo ano começou a cursar história na UFRGS. Em 2003, ela voltou a trabalhar no Correio do Povo na editoria geral e de economia. No ano de 2007, Bemfica concluiu seu mestrado em história com uma dissertação que tratou sobre o governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. No ano seguinte, passou a trabalhar na editoria de política do Correio do Povo, onde continua até hoje, e começou a trabalhar como freelancer para o site Terra, em 2010 passou a cobrir política para o mesmo site até 2015. Em 2017, Bemfica tirou em segundo lugar na categoria ‘Reportagem Econômica’ do prêmio ARI de jornalismo em 2017 com a reportagem ‘Mais Emprego?’.

Na entrevista a seguir, Flavia Bemfica fala sobre a importância da política no jornalismo, fake news, glorificação de pessoas e sua escolha por não ter redes sociais. “Porque eu acho que vai contra meus princípios, é um porre. Isso toma um tempo e faz as pessoas ocuparem mal esse tempo. Eu acho que é uma invasão de privacidade desnecessária.”

Qual a importância de cobrir política no jornalismo?

Flavia Bemfica: Acho fundamental, porque as pessoas precisam ter acesso à informação de qualidade. Não apenas o que querem te mostrar mas o que é verdade, e quanto mais informações, melhor as pessoas podem fazer o seu julgamento em relação a algum assunto. Acho que na política tem muito daquilo de sair da “espuma”, mergulhar nela e saber o que tem por baixo dessa “espuma”, questionar o porquê de tal coisa estar acontecendo. Isso é essencial para a gente ter mais maturidade, mais entendimento, menos ignorância e mais informação. Eu também acho importante contextualizar o assunto, porque o leitor não está sempre acompanhando política, pois ele tem várias outras coisas para fazer. Acredito que nossa política seja muito demonizada, não existem mocinhos e bandidos, somos todos humanos, acertamos e erramos. Eu fico triste que ficam demonizando o (poder) legislativo, porque é o meu poder preferido, pois ali é obrigado exercer a política e funcionar democraticamente. Mas, acredito que em relação à imprensa, temos muito para caminhar ainda, principalmente quando comparado com jornais dos Estados Unidos.

Qual a matéria mais importante que você já fez? Ou que gostou mais de fazer?

Flavia Bemfica: Eu não sei dizer, porque eu gosto de me dedicar ao máximo, e coloco a obsessão em cima de algo positivo. Eu gostei de fazer muitas matérias, e se eu disser só uma, eu vou me esquecer de outras, e as vezes matéria engraçadas, nem sempre de política. E acho legal que sempre estamos aprendendo algo novo, isso é um privilégio da nossa profissão.

Você já teve que fazer alguma matéria sobre uma pauta que você sabia muito pouco sobre o assunto?

Flavia Bemfica: Várias. Acontece que como já estou há bastante tempo trabalhando na política, é muito difícil eu não saber nada sobre alguma pauta. Mas as vezes eu faço matérias mais voltadas à economia, o que trata de assuntos mais específicos. Por exemplo, há pouco tempo eu fiz uma matéria sobre reforma tributária, e há termos específicos e coisas que eu não estou trabalhando no meu dia a dia, então eu tenho que ler bastante sobre o tema para entender o universo que eu estou me movimentando. Além disso, é necessário o auxílio de pessoas que se dediquem especificamente ao conteúdo a qual eu vou escrever. E para explicar ao leitor, o jornalista precisa antes entender, porque a maioria das matérias que alguém vai escrever, a pessoa não domina e nem acho que precise dominar, o jornalista é um meio, ele precisa passar as informações adiante para que os leitores entendam.

Você já marcou uma entrevista com alguma fonte que não apareceu, e teve que improvisar para fazer a matéria?

Flavia Bemfica: Sim. Em relação a isso eu tenho uma frase, “alguém sempre fala”. Claro que há assuntos que tem fontes específicas, porém antes eu já tenho alternativas caso dê errado, porque eu acho que não dá para ficar dependendo apenas de uma fonte.

Você já sofreu alguma espécie de crítica ou ataque de um leitor em relação a suas matérias políticas? Com acusações de ser parcial?

Flavia Bemfica: As pessoas muitas vezes se acham no direito de pegar o telefone, ligar para o chefe do teu chefe para reclamar de uma matéria. Mas em relação a isso é algo que eu tenho orgulho da casa (Correio do Povo), que sempre me defendeu, dizendo “se ela fez, a gente confia nela”. E, muitas vezes são pessoas anônimas, ai é fácil reclamar de qualquer coisa, mas nós botamos a cara para bater todos os dias.

Hoje você trabalha com jornalismo político e econômico, pretende sempre trabalhar com esses assuntos?

Flavia Bemfica: Eu não faço a menor ideia, mas talvez se eu fosse escolher eu faria viagem. Mas mais para viajar mesmo, porque eu continuo com essa perspectiva de que tem muita coisa para aprender ainda.

Qual foi o lugar que você mais gostou de já ter viajado?

Flavia Bemfica: Eu não acho um lugar melhor que outro para abrir a cabeça, mas eu gosto muito de praia, então provavelmente o melhor lugar que eu já fui é alguma praia. Eu acho engraçado o que as pessoas falam em relação à Brasília, que é um lugar chato e ninguém quer ficar lá, mas eu gosto, eu acho um local diferente e tem todo um simbolismo. A cidade representa muito o nosso amálgama, porque nós somos uma república, saímos de um império, e ali tem palácio modernos.

Por que você como jornalista decidiu não ter redes sociais públicas?

Flavia Bemfica: Porque eu acho que vai contra meus princípios, é um porre. Isso toma um tempo e faz as pessoas ocuparem mal esse tempo. Eu acho que é uma invasão de privacidade desnecessária. Por exemplo, eu estava numa situação com uma amiga, a filha dela e uma amiga da filha, ai elas estavam falando de como se sentiam mal no Facebook, porque as pessoas lá estavam sempre felizes, e às vezes ela já não estava bem e ficava pior. E, eu concordo inteiramente com o que elas estavam dizendo, porque isso é falso, é um simulacro, as pessoas deixam de viver a vida para ficar no aplicativo. Se eu quis ser repórter a vida toda para ficar na rua, olhar no olho da pessoas e interagir gente com gente, é porque eu não quero ficar escondido atrás de uma tela e me expor através dela. Tem gente que é uma pessoa na rede social e outra na vida real, e outra coisa, eu não sou tão importante assim, não sou notícia nem celebridade, o jornalista não é a notícia.

Em 2017, você ficou em segundo lugar na categoria ‘Reportagem Econômica’ do prêmio ARI com a matéria ‘Mais Emprego?’ Qual a importância desse reconhecimento para você, para o veículo que você trabalha e para o jornalismo de maneira geral?

Flavia Bemfica: Eu acho que é mais importante para o veículo, eu fiquei bem feliz pelo reconhecimento. Porém, eu acho que há grandes matérias que não ganham prêmios. Eu acho que mais importante para o jornalismo é se a matéria ajudou as pessoas a compreenderem tal contexto. Eu não sei se o leitor fica sabendo que o jornalista ganhou um prêmio, mas é um prêmio, e às vezes tem premiação em dinheiro, então não é algo ruim.

Como foi a apuração dessa matéria ‘Mais Emprego?’

Flavia Bemfica: Com certeza não demorei menos que quinze dias. Essas matérias tu sai da pauta diária para fazê-las, eu pelo menos quando faço fico fora da pauta, e fico dedicada apenas a matéria especial.

Tem algum jornalista que você admira ou gosta muito de acompanhar?

Flavia Bemfica: Tem vários que eu admiro, mas eu sempre tento fugir dessa coisa de escolher um. Porque daí tu diz que admira muito o fulano, e depois, amanhã o cara larga uma pérola que tu fica com vergonha da pessoa. Então, eu gosto de acompanhar muita gente mas eu não gosto de citar. Na verdade, eu sou contra essa coisa da pessoalização, o que importa é a informação, claro que tem a ver com a capacidade do jornalista de fazer a apuração, mas no final não é ele que interessa. Nós temos uma tendência de endeusar as pessoas, e eu corro para o outro lado.

Qual sua maior motivação para fazer jornalismo?

Flavia Bemfica: Uma vez alguém me disse que os cursos de direito, história e jornalismo possuem uma mesma base, que é a busca pela verdade. Talvez, para alguns eu esteja em busca de alguma coisa que nem exista, mas eu discordo. Nós podemos cair nessa relativização, de não existir verdade, depende do ponto de vista, ok, mas os fatos existem. Eu gostaria de deixar registrado que a terra é redonda, é um fato isso, isso não é uma questão de fé, os fatos são os fatos. E, eu acredito que minha motivação é essa no fim das contas. Eu julgo que há um equívoco de que a pessoa precisa ser ensinada a pensar, têm que dar subsídios para que a pessoa pense, ande com as próprias pernas e faça suas próprias conexões.

Em relação a esse assunto, você acha que o jornalismo, atualmente, está numa batalha contra as fake news?

Flavia Bemfica: Eu acho que essa batalha é mais antiga. Mas, acho que isso faz bem para o jornalismo, por exemplo há poucos anos surgiram as agências de checagem (de notícias) no Brasil. E, se não checar a informação, a pessoa vai dizer tudo o que ela quer, é preciso contextualizar, porque esse é o nosso trabalho. Nesse contexto de fake news, eu acho que tem muita gente dando opinião e que essas opiniões se transformam em verdade. Porém, esse processo é anterior e está ligado à democratização da informação. Eu acho que o jornalista precisa estar muito qualificado, é uma profissão que demanda muito tempo, muito trabalho intelectual e braçal, e é muito mal remunerada.

Bastidores da entrevista

Flavia Bemfica durante entrevista realizada na redação do jornal Correio do Povo — Crédito: Reprodução de tela

Eu estava procurando algum jornalista para entrevistar do setor de política ou economia, então comecei a buscar matérias da área em jornais de Porto Alegre, foi então que me deparei com reportagens do Correio do Povo sobre economia no Rio Grande do Sul. Observei que eram escritas pela Flavia Bemfica, entrei em contato com o atendimento do jornal e no mesmo dia recebi uma mensagem da jornalista pelo WhatsApp. Então, marcamos a entrevista para a mesma semana no próprio Correio do Povo.

A entrevista estava marcada para uma quinta-feira de manhã, porém no dia anterior eu fui assaltado e levaram meu telefone, e o único meio de contato com a jornalista que eu tinha, era pelo celular. Mas, como a entrevista já estava marcada, eu fui até a sede do Correio do Povo e perguntei pela Flavia Bemfica na recepção, me disseram que ela não estava lá, mas se encontrava na Assembleia Legislativa. Resolvi ir até a Assembleia, mas novamente me disseram que ela não estava.

Alguns dias depois eu consegui outro celular, e imediatamente entrei em contato com a jornalista. Vi que ela tinha mandado mensagens dizendo que não poderia realizar a entrevista no dia que marcamos, pois surgiu uma pauta que ela deveria cobrir. Assim, eu disse que não havia respondido ela devido ao assalto. Portanto, resolvemos remarcar a entrevista novamente para a próxima quinta-feira de manhã.

Na segunda vez, conseguimos realizar a entrevista, me encontrei com a Flavia Bemfica na recepção do jornal Correio do Povo, subimos até a sala da redação onde ela trabalha e conversamos um pouco. Então, fomos até uma sala fechada para realizar a entrevista, que durou um pouco mais de uma hora.

O processo todo, desde marcar a entrevista com alguém que eu não conhecia, a realização da entrevista na redação de um jornal conhecido de Porto Alegre, até a edição final, me ajudou a sair da minha zona de conforto. Além disso, tive que enfrentar desafios como, marcar a entrevista duas vezes e correr atrás para que ela ocorresse, o que só foi possível devido à programação antecipada e a gentileza de Bemfica.

Entrevista realizada para a disciplina de Jornalismo Político e Econômico do curso de jornalismo da UniRitter campus FAPA. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.

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