Vai no shopping, vai?

Katia Delavequia
Dioramas Modernos
Published in
7 min readJun 17, 2020

boa sorte

— É um vírus?
— Não sabemos.
— Como se espalha? Pelo ar?
— Possivelmente. Não sabemos.
— É uma questão de saúde internacional ou militar?
— Ambas
— Essas pessoas estão vivas ou mortas?
— Não sabemos.

Fila pra entrar em shopping. Faz sentido pra você? Pra mim não. Aliás, certas filas não consigo entender. Tipo fila pra entrar no cinema. Oi? Você já comprou o ingresso, tem seu lugar marcado, vai fazer fila pra que? Enfim…

Quando vi nos noticiários o tamanho das filas para entrar nos shoppings, buguei. Sério. Fiquei pensando que tipo de ânsia pode ser suprida num shopping que realmente seja necessária pra sobreviver em plena pandemia que já matou mais de 40 mil pessoas só neste glorioso país.

Logo me veio à cabeça uma cena do filme Madrugada dos Mortos em que os poucos sobreviventes de um apocalipse zumbi foram se abrigar onde? Num shopping. E de repente todos os zumbis começam a ir pra lá daquele jeitinho legal de aglomeração de mortos vivos.

— Por que estão vindo aqui?
— Lembranças, talvez. Instinto.
— Talvez estejam vindo atrás de nós.

O filme Madrugada dos Mortos (2004) — um dos melhores do gênero, tem no Prime Video — com direção de Zack Snyder é um remake de O Despertar dos Mortos de George Romero.

Romero é considerado o mestre dos filmes zumbi e os usa como metáfora. Sua série de seis filmes se iniciou em A Noite dos Mortos-Vivos (1968), O Despertar dos Mortos (1978), seguida por Dia dos Mortos (1985), Terra dos Mortos (2005), Diário dos Mortos (2007) e A Ilha dos Mortos (2009).

Agora vamos analisar. O zumbi, de fato, é o resultado lógico de ser um escravo: alguém sem vontade própria, sem nome e preso em uma espécie de morte em vida. São seres irracionais, cujas ações não apresentam uma intencionalidade.

“Em Romero, a crítica ao capitalismo, à exploração e às formas de opressão são representados em um trágico apocalipse, ou seja, apresenta-se uma mensagem pessimista de que a degradação ambiental, a deterioração das relações em sociedade e a produção e o consumo marcados pelo estranhamento levariam a humanidade à sua destruição”.

Contudo, a ameaça que a própria humanidade faz a si mesma é algo que quem melhor captou foi Romero, não para apontar o dedo para as massas supostamente irracionais, mas para nos alertar o que a sociedade está fazendo com os amplos segmentos que o capitalismo joga no desespero e na falta de perspectiva.

“ O zumbi de George Romero passa a simbolizar o indivíduo típico da sociedade de consumo: o que o move é o desejo irrefreável de consumir, desejo este que se apresenta como um impulso irracional e incontível, que nada acrescenta a sua existência, já que ele está morto. Desprovido de humanidade, ele retém o impulso consumista como último traço do que um dia foi.

Movido apenas pelo desejo de consumir, o zumbi nada produz, gerando um desequilíbrio que, levado ao limite, significaria a própria destruição da sociedade humana.”

É complexo né? Já no filme anterior A Noite dos Mortos-Vivos (1968) — o remake de 1990, tem na Netflix — alguns sobreviventes se abrigam numa casa NO MEIO DO NADA como acontece em quase todos os filmes de terror. O que te faz pensar:

Como eles têm essa ideia estúpida?

É exatamente esse o ponto. O instinto de se ‘salvar’ indo pra um lugar em que a chance disso acontecer é quase zero.

No grupo de sobreviventes, só desentendimento. Um quer sair, outro não quer. Um acredita na gravidade da coisa, outro não e briga, briga, briga. Alguma semelhança com a realidade? Imaginaaaaa.

— Dizem na tv que é pra atirar na cabeça.
— Dizem muita besteira na tv.

Há uma ironia no fato que os zumbis só morrem pra valer quando são atingidos na cabeça. Ora, como uma criatura desprovida de pensamento pode causar tanto estrago? É exatamente isso que penso quando vejo pessoas se aglomerando em comércios e shoppings.

A lógica é:

Vê a desgraça acontecendo por causa de um vírus desconhecido e letal > vai pra um lugar que parece seguro, mas é difícil de sair e fácil de se contaminar > tenta sair ileso, mas já é tarde demais > no final sobra quem mesmo?

Deixo essa reflexão aí.

Fontes de pesquisa:

Extermínio (28 Days Later, 2002)
A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1990)
Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, 2004)
O zumbi nas telas: breve história de uma metáfora.
O zumbi como personagem midiático: Desdobramentos Políticos.

Os diálogos são do filme Madrugada dos Mortos.

Destacamento Blood (2020, Netflix). Filmaço tipo soco na cara típico de Spike Lee. O filme conta a história de quatro veteranos da Guerra do Vietnã, todos negros, que décadas depois retornam ao local da guerra em busca dos restos mortais de seu líder de esquadrão e da fortuna de ouro que ele os ajudou a esconder.

O filme já começa com um discurso de Muhammad Ali dizendo por que se recusou a ir pra guerra lutar contra um povo que não fez nada de mal a ele. É a dica que Lee dá para o tom, já que os quatro ex-soldados retornam para um país profundamente traumatizado pela guerra. Eles são negros acostumados a ser oprimidos. Agora, ao contrário, pela primeira vez, se percebem como opressores.

Tudo isso permeado por uma trilha sonora com muito Marvin Gaye, depoimentos reais de ativistas e muita reflexão de como o mundo se encontra hoje em relação à política e a causa racial nos EUA. Também tem muita ação daquelas de te fazer ficar tenso e claro, fazer pensar.

Pra você ter ideia, um dos ex-soldados foi eleitor do Trump e usa o boné vermelho MAGA bem no estilo faixa vermelha do Rambo. Spike Lee é gênio demais.

Reality Z (2020, Netflix). Como estava mergulhada na temática zumbi por motivos desta newsletter, fui prestigiar a produção brasileira que conta com Sabrina Sato numa participação canastrona que só ela.

O começo é doído de tão ruim, mas a produção br caprichada, ótimos efeitos e episódios de 30 minutos me convenceram a continuar. A premissa é boa: um reality show tipo BBB chamado Olimpo. O lado de fora devastado por um apocalipse zumbi. Os sobreviventes “presos” dentro do estúdio de tv.

Alguns atores são o destaque. Nomes como Guilherme Weber (é o Boninho do reality, personagem totalmente insuportável), Emilio de Melo (maravilhoso como um deputado) e Pierre Baitelli (faz um policial numa atuação incrível de boa) entre outros ótimos atores.

A história engrena lá no 3º episódio. A partir do 6º dá uma virada e fica muitooooo bom, parece outra série. Os episódios finais são o puro suco do Brasil atual. Vale a pena dar uma chance.

Zumbi também tem lugar pra comédia, então aqui vai uma listinha:

🧟‍♀️ Fome Animal (1992), o clássico trash dirigido por Peter Jackson, simmmm ele mesmo que dirigiu O Senhor dos Anéis.

🧟‍♂️ Zumbilândia (2009) e Zumbilândia: Atire Duas Vezes (2019), com Woody Harrelson, Jesse Eisenberg, Emma Stone, Abigail Breslin. Bom demais os dois.

🧟‍♀️ Os Mortos Não Morrem (2019), bem despretensioso com um super elenco: Bill Murray, Adam Driver, Tilda Swinton e a participação de Selena Gomez.

O assunto já faz parte das discussões que tomam conta da internet, então, nada melhor do aprender e entender o que é. O racismo tá aí a olhos vistos. Algumas pessoas sentem na pele, outras não, e é exatamente essa a razão deste livro ser tão necessário. Por que não revermos algumas atitudes?

Escrito pela filósofa, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira Djamila Ribeiro que também é pesquisadora e mestra em Filosofia Política, o Pequeno Manual Antirracista dá o tom logo no início:

“Nunca entre numa discussão sobre racismo ‘mas eu não sou racista’. O que está em questão não é um posicionamento moral, individual, mas um problema estrutural”

Ao longo do livro, que é curtinho — dá pra ler numa sentada — vemos 11 lições para entender as origens do racismo e como combatê-lo. Num momento de avalanche de informação e opinião, parar pra compreender um problema é ter consciência do nosso papel no mundo. Recomendo demais!

Adorei a leitura e já quero ler mais coisas da Djamila.

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