3 filmes do Estúdio Ghibli para refletir sobre Guerra e Paz

Diplonite
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7 min readMar 30, 2024

Por Amanda Soares (publicado originalmente em 3 de julho de 2022)

O Studio Ghibli, fundado em 1985, para muitos é considerado a “Disney” asiática. Com mais de 21 longa-metragem, o estúdio obteve cinco indicações ao Oscar e ganhou uma estatueta em 2003 com o filme “A Viagem de Chihiro”. No entanto, o estúdio de animação japonesa, sediado em Tóquio, em muito se difere do queridinho americano. Os fundadores, Hayao Miyazaki e Isao Takahata, desde o começo demonstraram e exploraram a subversão dos papéis de gênero tão estritos e comuns na década de 80:

“Muitos dos meus filmes têm fortes protagonistas femininas, corajosas, meninas autossuficientes que não pensariam duas vezes antes de lutar pelo que acreditam com todo o seu coração. Elas precisarão de um amigo ou um defensor, mas nunca um salvador.” Hayao Miyazaki

Foto por: Studio Ghibli Brasil

Para além disso, as histórias contadas pelo estúdio sempre quebram a dicotomia entre bem e mal absolutos. Nesse contexto, muitas vezes, é difícil encontrar um vilão propriamente dito nas histórias: todos os personagens carregam em si uma profundidade humana.

Sob esse prisma, o estúdio Ghibli traz também uma abordagem única ao tratar de Guerra e Paz. Diferente da romantização dos conflitos na maioria das construções cinematográficas ocidentais, Hayao Miyazaki e seus colegas exploram um viés mais real e pacifista que quebra a dualidade de uma narrativa onde o “outro” é sempre a personificação do mal.

Há vários elementos expressos nestes filmes japoneses que remetem ao pacifismo e por isso se faz importante recapitular o contexto histórico da nação na contemporaneidade. Durante o século XX, o prestígio do Japão como potência militar encontrava-se consolidado considerando sua vitória na guerra russo-japonesa em 1905. No entanto, os desgastes acarretados pela Segunda Grande Guerra comprometeram sua posição. Assim, a tragédia das bombas nucleares em Nagasaki e Hiroshima, enviadas pelos Estados Unidos, representaram a dissolução final desse status. Por conseguinte, o Japão passou por reformas estruturais na área econômica [1] e política. Dentro das reformas políticas, a nova constituição outorgada em 1947 se tornou um grande símbolo pacifista: o artigo 9° afirma que o país não pode declarar guerra [2]. Para além da política, os ideais de paz passaram a permear a sociedade japonesa como um todo e isso pode ser observado nos filmes do estúdio Ghibli.

Neste artigo, indicaremos 3 filmes (sem spoilers), dentro desse eixo temático que exploram críticas às guerras.

O Túmulo dos Vagalumes

Foto por: Studio Ghibli Brasil

Hotaru no Haka, ou “O Túmulo dos Vagalumes”, dirigido por Isao Takahata (1935–2008), é um dos filmes mais famosos e aclamados do estúdio. Esse longa-metragem é a expressão das devastação e dos efeitos colaterais da guerra. A narrativa acompanha a história de dois irmãos, Seita e Setsuko, durante o final da Segunda Guerra Mundial. Com seu pai na guerra e a mãe doente em um hospital, as crianças seguem uma jornada tentando sobreviver em meio à devastação e à fome. Nesse contexto, é possível observar os problemas daqueles que não estão no front da batalha: a ausência de alimentos, remédios e estrutura, o medo recorrente da morte e pequenos momentos de esperança.

A história toma proporções ainda mais profundas quando se descobre que ela é baseada em fatos reais. Assim, é possível refletir principalmente sobre a forma como as crianças e os mais vulneráveis são afetados pelas guerras. Segundo a organização não governamental Save the Children [3] (Salve as crianças, em tradução livre), uma em cada seis crianças vive em uma situação de conflito. De acordo, com o relatório “War on Children”, as crianças estão mais em risco hoje do que nos últimos 20 anos. Nesse contexto, a UNICEF categorizou seis violações graves contra crianças em tempos de guerra: I. Extermínio e mutilação de crianças; II. Recrutamento ou utilização de crianças em forças e grupos armados; III. Ataques a escolas ou hospitais; IV. Estupro ou outras formas de violência sexual; V. Sequestros; e VI. Negação de acesso humanitário [4]. Assim, assistir o Túmulo dos Vagalumes, considerando essa perspectiva, é uma experiência dolorosa mas necessária para ponderar a respeito da importância da proteção das crianças em situação de conflito.

Médico: A medicina não pode ajudar. O que ela precisa é apenas de nutrição.

Seita: Nutrição? Mas onde eu posso conseguir isso?

O Castelo Animado

“O Castelo Animado” (Howl no Ugoku Shiro’), dirigido por Hayao Miyazaki, é inspirado nos livros da escritora Diana Wynne Jones. Neste longa-metragem, o telespectador acompanha a jornada de Sophie, uma jovem que, após ter sido amaldiçoada por uma bruxa, tem a aparência de uma idosa. Em busca do fim da maldição, ela embarca em uma jornada onde nada é o que aparenta ser. A nação onde se passa a história está em guerra, e os elementos desse conflito que de início permeiam a trama de forma secundária, começam a ganhar mais relevância com o decorrer do filme: os magos convocados pela nação para lutar transformam-se em monstros e os belos cenários são bombardeados.

No entanto, o mais interessante é observar que essa guerra nunca é explicada e seu fim é simples. Tudo isso é proposital: há uma crítica muito forte do diretor Miyazaki em relação à ausência de um sentido na guerra e como os líderes se perdem em seus anseios egoístas e violentos. Carl Von Clausewitz, famoso teórico da guerra e estrategista, defendeu que a guerra era um instrumento racional e legítimo da política externa [5]. No entanto, a principal antagonista da história, Madame Suliman é a incentivadora e manipuladora do conflito embora tenha todo o poder de acabar com a guerra. É possível traçar um paralelo que se afasta um pouco da noção Clausewitziana e se aproxima dos estudos do impacto dos próprios tomadores de decisão, os líderes do Estado, em contextos de guerra. Afinal, quando se diz que a guerra é racional parte-se do ponto de vista de quem?

Howl (sobre os magos): Depois da guerra eles sequer se lembrarão que eram humanos.

Porco Rosso

Foto por: Studio Ghibli Brasil

Em 1992, Hayao Miyazaki, dirigiu e lançou o filme Kurenai no Buta, traduzido como “Porco Rosso: o último herói romântico”. Ambientado no início dos anos 30, na costa do mar Adriático, o longa-metragem conta a história de Marco Porcellino, um caçador de recompensas que luta contra piratas aéreos. Ao longo da narrativa, o telespectador descobre que este personagem, cuja feição é de um porco, foi um piloto na Primeira Grande Guerra. Embora seja uma história divertida, a estranha maldição que tornou um sobrevivente da guerra em um porco pode ser analisada de uma maneira mais profunda. Em momentos de nostalgia Marco se lembra de seus colegas, questionando sua própria existência apesar de todos os horrores que cometeu. Quando se discute acerca do impacto social da guerra, é importante considerar a dimensão dos sobreviventes e as ramificações de sua vida após a guerra.

No filme, Marco não consegue se afastar da ação de fato, sua escolha de se tornar um caçador de recompensas e combater os “piratas” demonstra sua necessidade de continuar procurando algo pelo qual lutar. As narrativas de guerra são, em sua maioria, construídas sob a dicotomia “nós” contra “eles”. No campo das Relações Internacionais, estudos de caso exploram como a guerra ao terror foi instrumentalizada nos Estados Unidos fortalecendo essa narrativa dicotômica, por exemplo. Ao olhar através dessa lente, é possível analisar que isso não é uma exclusividade estadunidense mas existe uma ação contínua para vilanizar o “Outro” e perpetuar conflitos ao redor do globo.

Por último, o filme faz alusão também ao surgimento do fascismo na Itália que futuramente seria um ponto fundamental na eclosão da Segunda Grande Guerra.

Marco: É melhor ser um porco do que um fascista.

Foto de Capa: Studio Ghibli Brasil

[1] “Doutrina Yoshida é o termo utilizado para definir os princípios norteadores da atuação do Japão após o fim da Segunda Guerra Mundial, por meio da estreita relação com os Estados Unidos, da ênfase no desenvolvimento econômico e do minimalismo diplomático quanto às questões geopolíticas” (SILVA, 2018)

[2] Artigo 9. Aspirando sinceramente a paz mundial baseada na justiça e ordem, o povo japonês renuncia para sempre o uso da guerra como direito soberano da nação ou a ameaça e uso da força como meio de se resolver disputas internacionais.
Com a finalidade de cumprir o objetivo do parágrafo anterior, as forças do exército, marinha e aeronáutica, como qualquer outra força potencial de guerra, jamais será mantida. O direito à beligerância do Estado não será reconhecido.

[3] O relatório pode ser encontrado no website da organização Save the Children, no link: www.savethechildren.net

[4] Essas definições podem ser encontradas em detalhes no seguinte artigo da UNICEF: https://www.unicef.org/stories/children-under-attack-six-grave-violations-against-children-times-war

[5] “Da Guerra”, é a obra mais famosa de Clausewitz e nela o autor explora o conceito de guerra e estratégia após as guerras napoleônicas

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