Foto de capa: Daniel Castelo Branco/IG.

A participação de Eduardo Pazuello no ato político pró-Bolsonaro

O impacto da decisão de não punir o general da ativa nas relações entre militares, política e sociedade civil.

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7 min readMar 29, 2024

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Por Lucas Lixinski (originalmente publicado em 18 de junho de 2021)

Em nota à imprensa publicada no dia 3 de junho de 2021, o Centro de Comunicação Social do Exército informou a decisão do Comandante da Força sobre arquivar o processo disciplinar aberto contra Eduardo Pazuello e não aplicar punição ao General de Divisão. A abertura do procedimento administrativo estabelecido contra o ex-ministro interino da Saúde deu-se em razão da participação do militar da ativa, ao lado do Presidente Jair Bolsonaro, em uma manifestação de apoio ao governo federal e ao mandatário.

O Regulamento Disciplinar do Exército é claro quanto à proibição da participação de militares da ativa em atos ou manifestações de cunho político-partidário. Na seção de transgressões, destaca-se:

Art. 57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;

Em sua defesa, o argumento de Eduardo Pazuello baseia-se no fato da não filiação de Jair Bolsonaro a um partido. Pazuello também afirma que o ato do dia 23 de maio não aconteceu durante período de campanha eleitoral e a passeata com carro de som não configurou uma manifestação de cunho político. Além da defesa apresentada pelo General de Divisão, no dia 29 de maio, o Presidente Jair Bolsonaro intercedeu pessoalmente, por meio de pedido ao Comandante do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e aos outros generais do Alto Comando da Força, para que fosse desconsiderada uma possível punição.

Da esquerda pra direita: O Comandante do Exército Brasileiro, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; o Ministério da Defesa, Walter Braga Netto; o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro; o Comandante da Marinha do Brasil, Almir Garnier Santos; o Comandante da Força Aérea Brasileira, Carlos de Almeida Baptista Júnior. Foto de Marcos Corrêa/PR

A decisão pela não aplicação de medida disciplinar é relevante e impacta diretamente a avaliação da sociedade em relação ao Exército e sua posição como Força de Estado, contudo não carece de precedente. Em 1955, durante o enterro do general Canrobert Pereira da Costa, o então coronel Jurandir Bizarria Mamede manifestou-se clara e favoravelmente à realização de um golpe para impedir que Juscelino Kubitschek, o vencedor das eleições presidenciais daquele ano, e João Goulart, o eleito para a vice-presidência, tomassem posse. Mamede não foi punido por suas declarações e, mais tarde, colaborou com a tentativa de intervenção que fracassou devido ao golpe preventivo comandado pelo general legalista Henrique Teixeira Lott.

Retrato de Jurandir Bizarria Mamede. Reprodução da Internet

São notáveis algumas semelhanças e distinções entre os contextos das situações de Pazuello e de Mamede. Entre as similaridades estão as capacidades de ambos os personagens em suas posições como militares da ativa e, principalmente, o cenário de alta desconfiança e fragilidade das instituições. Já entre as principais diferenças pode-se citar o histórico de atuação política das figuras mencionadas: Pazuello saiu de uma discreta carreira militar para assumir a função de Ministro da Saúde; e Mamede colaborou ativamente na construção da Doutrina de Segurança Nacional na Escola Superior de Guerra e participou na confecção de manifestos e na conspiração contra o governo de Getúlio Vargas. Outro distanciamento importante seria a origem da força disruptiva antidemocrática às quais esses militares se associaram.

Eduardo Pazuello prestou depoimento — como testemunha — na CPI da Pandemia. Hoje, ele é um dos 11 investigados. Foto de Sergio Lima/AFP

Jurandir Mamede foi fruto de um exército que operou como fiador dos governos desde a década de 1930 e atuou do exterior para o interior da política para intervir nas transições eleitorais. Enquanto isso, Pazuello não é uma figura necessariamente atuante, mas está associado ao Presidente Bolsonaro, um símbolo de rompimento e contestação da democracia que vem da direção oposta, ou seja, de dentro para fora da política.

O acatamento ao pedido do Presidente da República para que seu ex-ministro não fosse punido preocupa, não por ser necessariamente um atentado à democracia, mas por representar uma posição perigosa assumida pelo comandante da instituição, que pode causar distorções no comportamento e nas relações entre membros do Exército e também na percepção da sociedade civil sobre as Forças Armadas. Além de enfraquecer alguns generais do Alto Comando que se posicionaram a favor da punição de Pazuello, a decisão pode representar um sinal verde tanto para militares da ativa que têm a intenção de manifestar-se favoravelmente ao Governo Federal, quanto para aqueles que almejam lançar-se na carreira política usando a farda como alavanca.

Para o Governo de Bolsonaro, o arquivamento da ação disciplinar representa uma vitória expressiva no que tange tanto à retórica política como à eleitoral. Desde a eleição, um dos principais pilares de sustentação e vetores “eleitoreiros” do mandatário é a sua proximidade com os militares. No fim de março de 2021, contudo, após a dispensa de Fernando Azevedo e Silva do cargo de Ministro da Defesa e a subsequente entrega dos cargos pelos Comandantes de Aeronáutica, Marinha e Exército, a posição do Presidente da República junto às Forças Armadas pareceu enfraquecida. Além disso, a carta de demissão entregue por Azevedo e Silva sugeriu não tão sutilmente que de dentro do Palácio do Planalto surgiram movimentos de cooptação das Forças para a execução de um projeto de poder e que houve um esforço para que houvesse a manutenção das Forças como instituição de Estado. Com a decisão que protegeu Pazuello, Bolsonaro readquire a capacidade plena de reafirmar seu discurso sobre o “seu Exército” perante seus apoiadores.

Bolsonaro (E) ao lado do ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva (D). Foto de Sérgio Lima/Poder360

Além de fortalecer o discurso do presidente, o episódio de Pazuello estremece as relações tanto entre os generais do Alto Comando do Exército, que eram, em sua maioria, favoráveis à aplicação de medida disciplinar, quanto entre o Alto Comando e os chamados “generais de Bolsonaro”, os oficiais de alta patente da reserva que compõem parte expressiva do Executivo Federal. Esses cismas dentro do oficialato de altos postos refletem no comportamento da tropa com relação à disciplina e à hierarquia, e possibilitam o avanço do discurso político sobre o corpo militar. Na medida em que esses discursos avançam dentro dos quartéis, torna-se cada vez mais complexo restringir o imaginário militar ao campo da estrita atuação profissional e da submissão ao controle civil, o que reacende um antigo ideal quase messiânico, muito característico das Forças Armadas no Brasil ao longo da história, e facilita a cooptação, por políticos com aspirações autoritárias, como Bolsonaro, de lideranças militares importantes que não pertencem necessariamente ao alto escalão das Armas, mas que não deixam de ser relevantes tanto no campo da retórico quanto no da ação.

Os comandantes dos três ramos das Forças Armadas do Brasil. Reprodução via Ministério da Defesa

Ainda não é evidente qual é a real intenção do Presidente da República ao impor-se perante o Regulamento Disciplinar do Exército e ao evocar frequentemente sua atribuição como Comandante Supremo das Forças Armadas para afirmar sua capacidade de utilizar tropas com o objetivo de efetivar suas vontades. É perceptível, todavia, que qualquer que seja a finalidade por trás dessas ações, ela não corresponde ou representa um ideal democrático.

No último sábado (12), Bolsonaro realizou “motociata” na cidade de São Paulo. Foto de Amanda Perobelli/Reuters

É relevante e válido ainda apontar alguns questionamentos pertinentes: Qual é o limite de tolerância do Exército para com os pequenos, mas frequentes, exercícios de ruptura institucional promovidos pelo Presidente da República? Em caso de avanço autoritário expressivo, é de se esperar o respaldo ou a rejeição por parte das Forças Armadas? Como se dará, daqui para frente, o tratamento disciplinar para militares da ativa que participarem de atos como os que Eduardo Pazuello participou no dia 23 de maio de 2021? Qual será a reação do Alto Comando do Exército caso militares da ativa apareçam lado a lado com políticos que não pertencem ao núcleo do Governo Federal?

Eduardo Pazuello cercado por correligionários durante a “motociata” realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 23 de maio. Foto de Foto de Brenno Carvalho/Agência O Globo

As análises e respostas para as perguntas apresentadas, contudo, só poderão ser dadas com o passar do tempo.

Como membro da sociedade civil e observador, proponho algumas conclusões. É fundamental, como sinalizado na carta do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que as Forças Armadas mantenham-se como instituições de Estado. Ao acatar o pedido da Presidência da República e não punir o General Pazuello, argumentando que o ocorrido não foi uma evidente e claríssima participação ativa em um ato que foi essencialmente político, o Comandante do Exército colocou em jogo o status da Força, dando a entender que a Arma tem um lado. Por fim, com relação ao tamanho do prejuízo que pode ser causado pela politização das Forças Armadas, é imprescindível citar um ditado comum ao meio militar e aos estudiosos de defesa que foi expressado, em setembro de 2020, pelo vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão: “Se a política entra pela porta da frente do quartel, a disciplina e a hierarquia são as primeiras a se retirarem pela porta dos fundos”.

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