Argo e o Direito Internacional
Entenda os cenários político e jurídico que envolvem o filme.
Por: Francisco Fabris, Gabriel Benites, Pedro Longo, Rafael Firme e Tales de Leão (originalmente publicado em 13 de julho de 2021)
Dirigido e protagonizado por Ben Affleck, o filme Argo, de 2012, foi um sucesso de crítica, tendo ganhado prêmios como de “Melhor Filme” do Oscar e do BAFTA de 2013, e de “Melhor Diretor” no Globo de Ouro e, também, no BAFTA. Porém, apesar de ser um bom filme em quesitos técnicos e artísticos segundo a crítica, não focaremos nesses aspectos. Na realidade, é outra característica de Argo que recebe atenção: sua capacidade de elucidar a conjuntura de crise internacional entre o Irã e os Estados Unidos (EUA) no período que circunda os anos 1980. Essa crise, que era tanto política quanto de direito, será o cerne do presente texto, que, para apresentar as questões legais relacionadas ao longa, contextualiza o panorama político e histórico do período exposto no filme. Apresenta também uma recapitulação de questões do Direito Internacional relacionados à trama desta produção cinematográfica e uma análise do caso julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) que aborda eventos correlatos ao filme.
A política internacional presente no roteiro
A fim de compreender o plano de fundo do filme, é necessário contextualizá-lo historicamente. Para tanto, é cabível compreender a dualidade que se fez presente no passar dos anos para os iranianos. Isto é, se por um lado o Irã — terra da antiga Pérsia — é lar de riquíssimas fontes culturais, vívidas em suas artes e cantos, por outro, esteve (e está) sob égide de fortes interesses geopolíticos. Ao longo da história, a região teve papel central na história global: o Oriente Médio foi um dos berços da civilização humana, fez parte da Rota da Seda, esteve sob olhares de ambos os polos da Guerra Fria e hoje está incluso na Nova Rota da Seda chinesa.
Entre 1925 e 1979, o Irã foi governado pela Dinastia Pahlavi, tendo como primeiro governante Reza Pahlavi, conhecido como “o Grande”. Foi com Reza que, na década de 30, foram adotadas medidas seculares no país, de maioria islâmica. Ao longo do início da Guerra Fria, na década de 1950, o país passou a ser governado pelo filho de Reza, o então Xá¹ Mohammad Reza Pahlavi. Por ser um relevante produtor de petróleo, as grandes potências possuíam (e ainda possuem) um imenso interesse no país. O então primeiro-ministro Mohammad Mossadegh, com um viés nacionalista, estatizou produtoras de petróleo, criando, a partir disso, divergências com empresas inglesas e estadunidenses. Temendo uma possível aproximação do Irã com a União Soviética, o Reino Unido e os Estados Unidos arquitetaram um coup d’État no país a fim de remover os líderes nacionalistas do poder, garantindo que suas empresas tivessem livre acesso aos recursos petrolíferos iranianos.
A Operação Ajax, como ficou conhecido o golpe arquitetado por Estados Unidos e Reino Unido, destituiu o nacionalista Mohammad Mossadegh em 1953, passando o cargo de primeiro-ministro ao General pró-ocidente Fazlollah Zahedi e conferindo ao Xá Pahlavi, aliado dos interesses estadunidenses, mais poderes e governabilidade. Dessa forma, estabeleceu-se um governo iraniano pró-ocidente, abolindo a monarquia constitucional e concentrando o poder nas mãos do Xá, tornando o Irã um Estado monárquico autoritário, que desfez as nacionalizações e permitiu a entrada de petrolíferas estrangeiras novamente no país.
Após o golpe organizado pela Operação Ajax, tornou-se grande a insatisfação popular no Irã. Aliás, vale salientar que o nacionalismo de Mossadegh detinha grande apoio da população à época. Com isso, conflitos entre grupos nacionalistas, contrários ao governo pró-ocidente, estouraram em todo o país e uma ferrenha ditadura foi liderada pelo Xá Pahlavi para controlar a situação. O governo do Xá foi um grande promotor da cultura e dos costumes ocidentais, fato que aumentou sua impopularidade interna e a rivalidade, já existente, com grupos de visão mais arraigada aos preceitos islâmicos. Além disso, a repressão política e policial não somente era muito presente, como também muito violenta: torturas e assassinatos compunham a rotina do governo iraniano. A administração pública também enfrentou gravíssimos problemas: inflação, desemprego crescente e empobrecimento da população e do país.
O regime repressivo e de alinhamento com o ocidente do Xá somente fez crescer sua impopularidade, principalmente diante das parcelas religiosas do país — que era a maioria da oposição. Um movimento populista e fundamentalista organizou-se nas mesquitas do país, onde eram proferidos discursos denunciando o ocidente e as extravagâncias do Xá.
Em 1978, iniciou-se uma série de protestos por todo o Irã contra o regime vigente. Boa parte das manifestações resultaram em confrontos violentos, com mortes e prisões em massa de civis. O exército também encontrava-se fragilizado, uma vez que soldados recusaram-se a atirar na população e se juntaram aos manifestantes. Com o agravamento da situação, o Xá fugiu do país, refugiando-se nos Estados Unidos. As manifestações levaram ao estabelecimento, então, do governo da República Islâmica do Irã, sob liderança de Aiatolá² Khomeini.
É a partir desse momento que o filme Argo tem seu início.
A tensa e cativante narrativa de Argo
O roteiro do filme retrata o resgate de seis membros perseguidos do corpo diplomático estadunidense que obtiveram refúgio pela embaixada do Canadá enquanto o ambiente político e social iraniano estava conturbado e, para os americanos, perigoso. Através de uma história peculiar, cativante e surpreendente, somos capazes de observar os desdobramentos da Revolução Iraniana, bem como a articulação internacional do corpo diplomático.
Em uma das primeiras cenas, mostra-se a embaixada dos Estados Unidos em Teerã sendo invadida por manifestantes. As pessoas clamam pela extradição do Xá Pahlavi, então exilado nos Estados Unidos, para que ele seja julgado segundo a lei islâmica de seu próprio povo. Após a invasão dos manifestantes, todos os diplomatas são tomados como reféns pelas tropas revolucionárias. Para libertar os funcionários estadunidenses, eles demandam a volta do Xá. Entretanto, seis funcionários conseguem escapar antes da invasão: Robert Anders (Tate Donovan), Cora Lijek (Clea DuVall), Mark Lijek (Christopher Denham), Joe Stafford (Scoot McNairy), Kathy Stafford (Kerry Bishé) e Lee Schatz (Rory Cochrane). Eles buscam abrigo na embaixada canadense, que os aceita. O embaixador e a embaixatriz canadenses, Kenneth Douglas Taylor (Victor Garber) e Pat Taylor (Page Leong), os escondem na residência oficial.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, o governo sente as consequências. As tensões mantêm-se altas e a mídia cobre o sequestro dos diplomatas exaustivamente. Os seis foragidos, entretanto, permanecem em segredo, sob conhecimento apenas do governo estadunidense e do casal canadense. Começa, então, uma corrida contra o tempo: os Estados Unidos devem resgatar seus seis cidadãos antes que as forças revolucionárias iranianas descubram sobre a fuga e iniciem a caçada por eles.
O governo estadunidense inicia os preparativos para o resgate. Há diversas ideias para a operação: disfarçá-los de professores canadenses, de empresários ou de filantropos para que saiam do país normalmente e, até mesmo, ceder bicicletas a eles para que saiam do país por terra. Nesse momento, a CIA aciona Tony Mendez (Ben Affleck), um oficial experiente em missões de extradição. Ao ter contato com um filme de ficção científica ao qual seu filho assistia, Tony tem a sagaz ideia de disfarçá-los de cineastas canadenses. À época da missão, o mundo da sétima arte vivia um boom de obras sci-fi. Por conta dos cenários e do imaginário preconceituoso de um “Oriente Exótico”, muitas delas foram gravadas no Oriente Médio: Egito, Iraque e na península árabe. A proposta de Tony é fazer os diplomatas foragidos passarem-se por membros de uma equipe cinematográfica que estava buscando possíveis cenários para um filme em território iraniano.
A negociação para a aceitação dessa proposta foi difícil. A princípio ela soa absurda. Mas paulatinamente o caráter inesperado e ousado do plano — somado à falta de outros planos melhores — faz com que ele seja aprovado. Para os preparativos, é preciso que Tony encontre uma equipe em Hollywood que aceite criar um filme falso que possa ser utilizado como fachada para a operação. Ele entra em contato com John Chambers (John Goodman), talentoso maquiador e ganhador de Oscar que trabalhou com Tony anteriormente. Após aceitar a missão, ambos entram em contato com Lester Siegel (Alan Arkin), roteirista e diretor multipremiado, que também aceita participar da empreitada de resgate.
O trio embarca em uma jornada contra o tempo em busca de um roteiro ideal: eles possuem apenas 72h para ter tudo pronto e receber a aprovação do governo estadunidense. Em meio a pilhas de diversos possíveis roteiros, encontra-se o ideal: uma ficção científica espacial que se passa no Oriente Médio. Seu nome? “Argo”.
Com roteiro em mãos, é preciso fazer o anúncio ao público e à mídia, para que a farsa seja completamente verídica. Na cena, que talvez seja a melhor de todo o filme, o pretenso elenco do filme realiza a leitura do roteiro para a imprensa, ao mesmo tempo em que é criado um mash up com uma declaração feita por uma guerrilheira iraniana. Enquanto de um lado lê-se um roteiro de um falso filme em uma luxuosa festa, do outro são sentenciados diplomatas americanos à morte. No fim, eles não são assassinados, mas o perigo é real.
Após a aprovação por parte da CIA e do governo dos Estados Unidos, Tony Mendez viaja ao Irã com escala na Turquia, onde emite seu visto iraniano. Já no país destino, o oficial vai em direção ao Ministério da Cultura e Orientação Islâmica para que seu roteiro seja aprovado pelo governo e possa, então, ser filmado em solo iraniano. Com uma fácil aprovação, Tony vai ao encontro dos seis diplomatas escondidos na residência oficial canadense. Lá, ele apresenta seu plano, que é recebido com ceticismo e desconfiança por parte dos fugitivos. Muito nervosos e amedrontados, os diplomatas enfrentam dificuldades em confiar em Tony, que é, acima de tudo, um desconhecido. O oficial, então, precisa construir laços com eles para que seja confiado a ele as seis vidas de seus compatriotas.
O Ministério da Cultura e Orientação Islâmica envia um agente para mostrar o mercado público à suposta equipe cinematográfica. Os seis são obrigados, pela primeira vez em mais de dois meses, a deixarem seu esconderijo e a exporem-se nas ruas de Teerã. Em um turbulento encontro no centro da cidade, o representante do Ministério mostra o mercado aos protagonistas, que conflitam com um comerciante local após uma foto ter sido tirada de sua loja. O comerciante os acusa afirmando que “seu filho foi morto por uma arma americana”. No meio dessa confusão, agentes das forças revolucionárias iranianas tiram fotos dos estrangeiros andando em sua terra. Para a sorte deles, a identidade dos seis foragidos ainda não era de conhecimento geral, dado que fotografias e demais documentos foram previamente destruídos durante a fuga dos agentes americanos de sua embaixada.
Após o confronto e o retorno à residência, Tony recebe uma mensagem de seus superiores da CIA: a missão deve ser cancelada e os seis diplomatas devem ser deixados à própria sorte. A operação havia sido cancelada devido ao medo de falha. Caso desse errado, a tentativa iria se tornar chacota internacional. Desolado, o protagonista decide não abandonar os diplomatas e, contrariando ordens superiores, decide seguir em frente com o resgate.
No dia esperado, Tony os leva ao aeroporto com seus passaportes e identidades falsas. Eles são parados na porta do hangar por revolucionários, que os levam à interrogação. Duvidando do estranho caso em que cineastas canadenses decidem visitar o país em meio a um conflito, os agentes obrigam os seis diplomatas (disfarçados de cineastas) a convencê-los de que o filme e a gravação eram reais. Os americanos utilizam os jornais, que apontam o cartaz do filme, e mostram desenhos de cenas do storyboard desenvolvido para o filme de mentira. O agente, ainda desconfiado, decide ligar para o escritório da produtora do suposto filme, em Hollywood, onde estão John Chambers e Robert Anders, que atendem o telefone e confirmam a viagem de Tony — que utiliza uma identidade falsa. Após toda essa tensão, os diplomatas e o oficial da CIA conseguem embarcar em seu voo, tendo alívio apenas quando deixam o espaço aéreo iraniano. A missão foi um sucesso. Como em todos filmes hollywoodianos — ou quase todos — , os protagonistas celebram sua chegada em solo americano, ganham medalhas e a capa dos jornais. Tony Mendez, o silencioso agente da CIA, retorna para casa e encontra sua família, sem poder ser condecorado publicamente, pois seu serviço deveria ser mantido em segredo. Um clássico e um clichê. Sem sombra de dúvidas, é uma curiosa história; é uma operação digna de Hollywood.
Argo e o Direito Internacional
Acima de tudo, o filme permite analisar o tenso momento do sequestro do corpo diplomático por parte das tropas iranianas, que depois geraria implicações jurídicas para o Estado do Irã. Em pequenas sutilezas, é possível entender o funcionamento e a dinâmica tanto da política quanto do direito internacional: a seguridade dos diplomatas após a saída do espaço aéreo iraniano, as implicações para o Estado do Irã, o jogo político entre os dois países para a extradição ou não do Xá, a amizade diplomática entre Canadá e Estados Unidos, entre outros. O filme Argo, e esta é uma característica de relevância em considerar a qualidade de uma produção artística, pode ser analisado para além do que é exposto em tela, sendo nosso objetivo apresentar elementos do Direito Internacional que são suscitados pela trama do longa-metragem.
Como apresentado, o estabelecimento da República Islâmica do Irã, consolidada em fevereiro de 1979 após a Revolução Islâmica, iniciada em 1978, sucedeu o Estado Imperial do Irã (1925–1979) e precedeu a Crise dos Reféns, ocorrida em novembro do mesmo ano. Com o surgimento do novo país, tornou-se necessário a criação de novas leis e, em dezembro de 1979, foi ratificada a nova constituição iraniana; contudo, no âmbito internacional, a República Islâmica seguia representando o substituído Estado Imperial, devendo cumprir e respeitar os protocolos e normas formalizadas antes de 1979.
Como introdutoriamente apresentado no filme, após a deposição do comandante do Estado Imperial, o Xá Reza Pahlavi foi protegido por Jimmy Carter, então presidente norte-americano, que negou a extradição do ex-líder persa. O novo governo iraniano fez o pedido para que Pahlavi fosse julgado em seu país pelos crimes ocorridos em sua gestão. Porém, com a negativa de Carter, iniciaram protestos anti-estadunidenses pelo Irã inteiro que culminaram na Crise dos Reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerã. Essa crise foi marcada por várias violações ao direito internacional, seja do lado do novo governo iraniano, principalmente através da Guarda Revolucionária, seja pelo governo dos Estados Unidos.
Nesse momento, os oficiais do governo iraniano alegavam que Pahlavi era um criminoso e não um refugiado político: de acordo com o artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a concessão de asilo está reservada aos perseguidos por ordem política ou religiosa e “não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum”, o que, segundo as autoridades iranianas, era o caso de Pahlavi — que, sendo assim, não teria o direito de ser recebido pelo governo estadunidense como uma vítima, visto que seria culpado e deveria comparecer aos tribunais da República Islâmica para ter o devido julgamento. Entretanto, ao mesmo tempo em que reclamava cumprimento do Direito Internacional, o governo iraniano nada fez para impedir a invasão da população à embaixada dos Estados Unidos, violando princípios legais básicos. A República Islâmica do Irã acusou Pahlavi de crimes como ignorar as vontade do povo, agir contra os interesses da nação ao se alinhar com o ocidente, corrupção, reger uma ditadura entre outros.
É interessante manter em mente que duas foram as situações que guiaram a tomada de decisão dos oficiais da República Islâmica recém formada durante os eventos que marcaram a crise apresentada no filme: o Golpe de Estado de 1953, apoiado pelos Estados Unidos — que depôs o primeiro-ministro iraniano, Mohammed Mossadegh, dando ao Xá Reza Pahlavi plenos poderes no país — , e a não extradição de Pahlavi por parte do governo norte-americano de Jimmy Carter.
Alguns dias após o início da crise em Teerã, em 29 de novembro de 1979, os Estados Unidos entraram com Requerimento contra a República Islâmica do Irã junto à Corte Internacional de Justiça. No mesmo dia, o governo dos EUA fez o pedido para indicação de medidas provisórias, na qual afirmavam que, além de violar o direito internacional, a República Islâmica do Irã estava violando outros três tratados: o Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares, de 1955 — bilateral e assinado dois anos após a posse do Xá Reza Pahlavi — e as Convenções de Viena de 1961 e 1963. Por uma Ordem de 15 de dezembro, a Corte indicou as medidas provisórias.
Quanto ao Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares (1955), o Artigo I, por exemplo, afirma: “haverá uma paz firme e duradoura e uma amizade sincera entre os Estados Unidos da América e o Irã.” A partir disso, há uma controvérsia. Os estadunidenses afirmavam que o Tratado foi desrespeitado com a Crise dos Reféns. Destaca-se, no processo analisado pela CIJ, que “a detenção como reféns de dois indivíduos privados de nacionalidade dos Estados Unidos acarreta uma nova violação das obrigações do Irã nos termos do Artigo II, parágrafo 4, do Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares de 1955” (International Court of Justice, 1980, p.36, tradução livre). Dessa forma, no caso julgado pela CIJ, de fato o Irã estava desrespeitando as normas de direito estabelecidas entre os dois países em questão. Na conjuntura recente, em 2018, trinta e nove anos após a Crise dos Reféns, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, anunciou o encerramento do Tratado; no mesmo dia, o Chanceler do Irã, Javad Zarif, afirmou que os Estados Unidos eram um regime fora da lei, pois seguiam violando as decisões da Corte Internacional de Justiça.
Quanto às Convenções de Viena (1961 e 1963), segundo os EUA, o Governo do Irã, ao tolerar, encorajar e falhar em prevenir e punir os atos contra os diplomatas e cônsules americanos, violou (de acordo, primeiro com a Aplicação e, depois, com o Memorial apresentado à Corte) os artigos 22, 24, 25, 27, 29, 31, 37 e 47 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, assim como os artigos 28, 31 ,33 ,34 ,36 e 40 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Destaca-se, no contexto dessas acusações, a inviolabilidade diplomática dos agentes, da própria embaixada e de qualquer instalação consular. Nesse âmbito, o Artigo 29 da Convenção de 1961 afirma que:
A pessoa do agente diplomático é inviolável. Não poderá ser objeto de nenhuma forma de detenção ou prisão. O Estado acreditado deve tratá-lo com o devido respeito e adotará todas as medidas adequadas para impedir qualquer ofensa a sua pessoa, liberdade e dignidade (International Court of Justice, 1980, p.36, tradução livre).
O Artigo 31, parágrafo 2, por sua vez, afirma que:
[…] o Estado receptor está sob dever especial de tomar todas as medidas apropriadas para proteger as premissas consulares contra a intrusão ou o dano e prevenir qualquer distúrbio à paz do posto consular ou violação à sua dignidade. (International Court of Justice, 1980, tradução livre).
Os Estados Unidos entraram na CIJ alegando a violação desse Tratado, dado a situação da embaixada e dos agentes, elucidada já no início do filme. Com os holofotes sobre o caso, a CIJ exigiu que o Irã libertasse os reféns e restabelecesse o pleno funcionamento da embaixada norte-americana, contudo, mesmo condenado, o país não cumpriu as exigências da Corte. É importante ressaltar que a sentença da Corte é definitiva e inapelável (em primeira instância), mesmo podendo ser objeto de revisão e interpretação sob a luz de novas informações.
A respeito do processo, a Corte analisa os fatos a partir de dois pontos de vista. O primeiro trata-se do quanto, em termos legais, os atos em questão podem ser imputados ao Estado Iraniano. O segundo trata-se da compatibilidade ou incompatibilidade desses atos com as obrigações do Irã derivadas de tratados e do Direito Internacional. Para tanto, esses dois pontos de vista são analisados a partir de duas fases.
A primeira engloba:
O ataque armado à embaixada dos Estados Unidos por militantes em 4 de novembro de 1979, a invasão de suas instalações, a apreensão de seus ocupantes como reféns, a apropriação de seus bens e arquivos e a conduta das autoridades iranianas em face daquelas ocorrências. (International Court of Justice, 1980, p.29, tradução livre).
Assim como também considera o ataque aos consulados de Tabriz e Shiraz. Nesse aspecto, conclui a Corte que o Estado Iraniano não pode ser imputado como o ator que iniciou estes ataques, não implicando, contudo, que o Estado não tem responsabilidade pelos ataques. Segundo as convenções de Viena, o Irã deveria tomar medidas para a proteção da embaixada, dos consulados, do seu pessoal, dos seus arquivos, dos seus meios de comunicação e da liberdade de movimentação do pessoal; sendo assim, o Irã falhou em tomar essas medidas para proteção das instalações, dos funcionários e dos arquivos das missões estadunidenses e em prevenir ou parar o ataque antes que se completasse.
A segunda fase aborda os fatos que seguiram após a ocupação da embaixada e o cerco dos consulados. A partir disso, pensando nas duas Convenções de Viena e no Direito Internacional, seria necessário que o Irã tomasse todas medidas para que cessassem as violações da inviolabilidade das instalações, arquivos e funcionários diplomáticos e consulares, bem como restaurar o controle dos EUA à embaixada e aos consulados, restabelecer o status quo e oferecer reparações.
Nesse sentido, as autoridades iranianas não seguiram nenhum desses passos; várias autoridades iranianas (como o Aiatolá Khomeini) expressaram apoio às ações de tomada da embaixada e dos consulados e da tomada de reféns. Por conseguinte, a contínua ocupação dos prédios e a detenção dos agentes diplomáticos/consulares tornou-se um ato do Estado do Irã e os militantes perpetradores de violações tornaram-se, sob a perspectiva da Corte, agentes do Estado Iraniano, tornando-o, então, responsável internacionalmente.
A partir disso, a Corte constatou a violação dos artigos 22, 24, 25, 26 27, 29 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 acerca dos temas supracitados e do artigo 33 Convenção de Viena de 1963 sobre facilidades para o desempenho de funções, liberdade de movimento e comunicações para funcionários diplomáticos e consulares. Todos os artigos circundam violações sobre o corpo diplomático, a violação da embaixada e dos consulados, do apossamento de documentos, no contexto da sua ocupação por militantes iranianos — todas presentes no filme.
Outro fato levantado foi que, frequentemente, autoridades iranianas posicionaram-se de forma a defender que alguns reféns fossem colocados em julgamento. Obviamente, esses posicionamentos poderiam ser apenas parte do campo da retórica, das ameaças, mas caso fossem postas em prática, representariam violação das obrigações do artigo 31, parágrafo 1 da Convenção de Viena de 1961, que expressa que o agente diplomático deve ter imunidade da jurisdição criminal do país recebedor; ademais, se colocassem os reféns a prestar depoimento como testemunhas, estariam violando a imunidade do foro penal do Estado recebedor, também presente no parágrafo § 2º deste mesmo artigo 31 da Convenção de Viena de 1961.
Como deve ter ficado claro, apresentamos somente o que a Corte julgou a partir do que foi apresentado pelos EUA. Porém, como é típico de um julgamento, há dois lados envolvidos e é interessante entender de que forma o Irã tentou defender-se. Como o país acusado não apresentou o Contra-Memorial e nem apresentou-se perante a Corte para expor seus argumentos, a Corte valeu-se de duas cartas enviadas por representantes iranianos, em 9 de dezembro de 1979 e em 16 de março de 1980. Na carta de 1979, o Irã apontava que o tema era uma questão de soberania do país, sendo que os agentes diplomáticos americanos seriam na verdade espiões e que agiriam com intenção de interferir na política interna do país médio-oriental. A Corte discordou, apontando que questões de relações diplomáticas e consulares são em sua natureza questão de jurisdição internacional. Na carta de 1980, por seu turno, o Irã reitera o argumento, sem adição de outros fatos. Sendo assim, a Corte se limita a repetir o que havia expressado na Ordem anterior.
Na carta de 1979, também, o Irã comunica que era descabido analisar o caso de forma restrita à questão dos reféns da embaixada de Teerã (que seria secundária e marginal), mas que era necessário pensar no histórico de interferência, exploração e crimes (como o golpe de Estado de 1953) contra o Irã cometidos pelos EUA. Sobre isto, a Corte apresenta que não deve ser considerada a questão dos reféns como “secundária” ou “marginal” devido à importância dos princípios legais envolvidos e pelo fato de que nem o Estatuto ou as Regras da Corte apontam que a mesma deve deixar de analisar uma questão por ela ter outros aspectos envolvidos. A Corte aponta que se o Irã considerasse que as alegadas ações dos EUA tivessem interferência no caso em questão, ele poderia apresentar seus argumentos (mas o Irã não o faz e não se apresenta perante a Corte).
A decisão final da Corte Internacional da Justiça é de que a República Islâmica do Irã violou e continuava violando obrigações devidas aos EUA, tanto por acordo entre os dois países quanto relacionadas ao Direito Internacional geral. Ainda, essas violações acarretavam em responsabilidade do Irã para com os EUA. Também, o Irã deveria tomar medidas para resolver a situação que havia se estabelecido a partir dos eventos de 4 de novembro de 1979. Nesse sentido, deveria findar a detenção dos reféns, garantir que todos tivessem meios para sair do Irã e colocar nas mãos do poder protetor as instalações, os bens, os arquivos e os documentos da embaixada e dos consulados. Ademais, com base no exposto, decidiu que nenhum membro dos corpos diplomáticos ou consulares dos EUA deveria ser sujeito a processo judicial ou a prestar testemunho. Por fim, é decidido que o Governo do Irã deveria fazer reparações aos EUA, sendo que essa reparação (seu montante), falhando acordo entre as partes, deveria ser decidida pela Corte. Assim concluiu-se o caso na Corte Internacional de Justiça.
No entanto, a história dessas relações não pararam no caso presente no filme e até aqui citados. Em meio ao caos e ao enfrentamento político, ideológico e judicial, em abril de 1980 — meses após o início da Crise dos Reféns — o governo dos Estados Unidos pôs em ação a Operação Eagle Claw, que tinha o objetivo de resgatar os cidadãos estadunidenses. A operação fracassou e gerou novas acusações do governo iraniano, que alegou maiores violações ao Direito Internacional por parte dos Estados Unidos, considerando a invasão norte-americana em seu território uma violação do Artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas (ONU), em que “todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado” e também, segundo consideração da CIJ acerca da Resolução 2625/1970 da Assembleia Geral da ONU, o costume internacional (vinculante).
Além do fracasso militar, outros movimentos foram feitos pelos Estados Unidos. É nos anos 1980 que começam as tão conhecidas sanções ao Irã, que duram até hoje; além disso, em represália, iranianos começaram a ser expulsos do território norte-americano, tornando a situação mais turbulenta e sem resolução.
Só após a morte de Reza Pahlavi, em julho de 1980, as negociações entre Irã e Estados Unidos voltaram a acontecer. Em 20 janeiro de 1981, após os Acordos de Argel, chegava ao fim a Crise dos Reféns, 444 dias após o seu início. Vale destaque para quatro pontos dos Acordos de Argel. Primeiro, os Estados Unidos comprometeram-se a não intervir em assuntos iranianos. Além disso, menciona-se a devolução de ativos iranianos e a liquidação de reivindicações dos Estados Unidos. O Irã, por sua vez, comprometeu-se a devolver os bens da família de Reza Pahlavi. Por fim, todas as acusações por parte dos Estados Unidos na CIJ deveriam ser retiradas.
Como apontado e referenciado com base no Direito Internacional, os dois países envolvidos violaram normas e tratados, sendo o Irã o único sentenciado por isso. É fato que o conflito envolvia forças tão pontuais e inegociáveis que os Estados e seus representantes romperam o Direito Internacional com base em um interesse nacional (onde a garantia da soberania de um Estado implicava na violação da soberania do outro), como no caso da invasão da residência do embaixador canadense, devidamente retratado no filme. No entanto, sendo uma produção norte-americana e com propósitos políticos imbuídos, o interesse nacional estadunidense é representado, no roteiro, como mais justificável e racional que o iraniano.
Apesar disso, fica claro que o filme Argo é uma ferramenta pedagógica de boa elucidação e exercício dos temas de Direito Internacional, bem como da própria Corte Internacional de Justiça sobre o caso, ainda que o filme, em si, apresente o contexto histórico sobre a ótica de uma das partes, os Estados Unidos.
Notas
- Xá é um título monárquico que remete à antiga Pérsia, que tem como tradução “rei” ou “imperador”.
- Cargo mais alto da hierarquia religiosa do Islã xiita. No Irã, mesmo que o país seja considerado uma República, os três poderes — executivo, legislativo e judiciário — são submetidos ao aiatolá. Pode-se afirmar que a República Islâmica do Irã é um Estado teocrático.