Como a discriminação e doença mudaram a comunidade LGBTQIA+ estadunidense e brasileira

A forma que governantes homofóbicos e sociedades cúmplices mataram e traumatizaram uma geração

Fran Geyer
Diplonite
7 min readJun 3, 2024

--

Foto por: Rick Gerharter

As identidades que atualmente compõem a comunidade LGBTQIA+ existem há tanto tempo quanto a humanidade. Sofrem constantemente, porém, com o abuso. Esses sucessivos ataques causaram uma mudança na forma como essa age, havendo uma necessidade de maior luta pela sua representatividade.

Os Estados Unidos da América foram fundados sob um suposto preceito de liberdade. No entanto, os direitos civis foram pouco respeitados durante a maioria de sua História. Os anos que sucederam à Segunda Guerra Mundial foram uma verdadeira crise de identidade estadunidense, com diversos setores da sociedade questionando valores contraditórios. Como a “nação dos livres” poderia impedir que pessoas utilizassem serviços simplesmente por sua cor de pele, ou por sua orientação sexual?

O estopim da mudança ocorreu em 1969, com a Rebelião de Stonewall. O bar Stonewall Inn — localizado em Nova York — era frequentado por homossexuais e transgêneros, que frequentemente sofriam assédio por policiais. Após meses de repressão, eles se erguem, em um levante violento que inicia na madrugada do dia 28 de junho e dura cerca de 5 dias.

Esse acontecimento ocorreu durante um período em que os direitos civis estavam em debate nos Estados Unidos e dando início a um movimento de orgulho e resistência que se espalhou pelo mundo. A chamada Rebelião de Stonewall foi somente o começo de um conflito que ainda traria muito sofrimento à comunidade LGBTQIA+.

Apesar da grande opressão sofrida no movimento, a discriminação contra essa população não havia atingido seu apogeu. No dia 20 de janeiro de 1981, em frente ao National Mall e com uma Bíblia protestante em suas mãos, Ronald Reagan foi inaugurado como presidente dos Estados Unidos da América. O ex-ator e ex-governador da Califórnia era conhecido nacionalmente por sua retórica anticomunista.

Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos

Por sua vez, algo que é pouco reconhecido é a sua retórica racista e homofóbica, escancarada em conversas vazadas com aliados e familiares. As chamadas Reaganomics afetavam desproporcionalmente minorias, uma vez que estas valorizam outros grupos mais economicamente favorecidos e pioravam a situação de populações já marginalizadas. Ainda que horríveis, essas políticas não seriam a maior tragédia humanitária de seu governo.

Por volta do mesmo período — mesmo que a enfermidade houvesse surgido ainda em 1920 — , diversos estadunidenses começaram a aparecer com doenças desconhecidas. Médicos, cientistas e até mesmo a mídia não conseguia explicar o aparecimento dessas enfermidades com sintomas muito novos, ainda sem nexo. Alguns pacientes apareciam com características semelhantes as de cânceres, outros com as de pneumonias severas.

Em 1981, a doença fora finalmente identificada como Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (a AIDS), doença causada pelo vírus HIV. Alguns meses depois, o CDC estudou a possibilidade de a doença estar relacionada à homossexualidade. Várias pessoas — principalmente associadas ao Partido Republicano — passaram então a chamar a doença de “GRID” — Gay-Related Immune Deficiency — ou até de “Praga Gay”. Ronald Reagan levava a doença como piada, utilizando nomes homofóbicos para se referir a ela.

Milhares de pessoas perderam as suas vidas enquanto Reagan debochava dos pacientes. Larry Speakes, porta-voz do Presidente, apenas falou sobre o tema quando perguntado, respondendo que “ninguém na Casa Branca sofreu com isso pessoalmente”. Naquele momento, 882 pessoas já haviam falecido por conta da síndrome.

San Francisco Pride nos anos 1980

A doença afetava, em maior parte, a comunidade LGBTQIA+ e as famílias afro-americanas. Muitos transexuais e gays viviam nas ruas, estando próximos a pontos de tráfico e de prostituição devido à rejeição e expulsão de seus lares. Foi nesse momento em que a discriminação assumiu uma face letal: diversos médicos se recusavam a tratar pacientes com HIV, por medo de que a doença se espalhasse como a gripe ou até por preconceito, já que assumiam que a enfermidade fosse relacionada à homossexualidade.

A doença existia no imaginário da população em um formato muito diferente de sua realidade. Era vista como uma “punição divina” por grupos que adotavam um falso moralismo.

Com décadas de retrospectiva, conseguimos saber hoje o real impacto que a doença teria. Sabemos também que diversos médicos se recusavam a sequer tocar em pacientes. É impossível não lembrar de diversos nomes, sejam os mais famosos ou até pessoas próximas, sejam aqueles que perderam suas vidas ou sejam aqueles — e principalmente aquelas — que enfrentaram o medo do desconhecido para cumprir o seu voto de proteger e curar.

É pouco conhecido o motivo da sigla da comunidade LGBTQIA+ começar com o “L”, de lésbicas. Na época do início da epidemia de HIV, a sigla mais usada pelos estadunidenses era GLS — ou gays, lésbicas e simpatizantes. Enquanto a comunidade gay sofria majoritariamente as consequências da epidemia, a comunidade lésbica não sentiu diretamente o impacto. Por isso, ela passou a fornecer cuidados àqueles que sofriam com os efeitos da doença. Em um momento de rejeição e preconceito, elas forneceram apoio aos necessitados. Portanto, é por tanto em reconhecimento ao preconceito acumulado causado por uma sociedade extremamente machista e homofóbica que as lésbicas foram homenageadas na sigla.

As vidas perdidas deixaram um vazio: pessoas que viveram durante essa época lembram de uma rotina de velórios. Telefones que tocavam apenas para reportar mortes de amigos. Muitos daqueles que sobreviveram ainda carregam as marcas das perdas, com vários casos de “Culpa de Sobrevivente”. Uma geração traumatizada, uma geração marcada por lágrimas.

O auge da Epidemia passou, seja pela diminuição do estigma e do preconceito, seja por melhores condições de tratamento. Atualmente, temos formas melhores de ajudar pacientes e uma maior expectativa de vida. E o mais importante: a sociedade é muito menos preconceituosa contra esses grupos. Ainda que não seja perfeito, ainda que não seja o ideal, já é muito melhor.

A realidade é que se a sociedade estadunidense não tivesse negligenciado por décadas a comunidade LGBTQIA+, o impacto da HIV/AIDS não teria sido tão grande. A culpa pelo ocorrido não pode ser atribuída a uma só pessoa, a um só indivíduo, mas a uma coletânea de atitudes e de comportamentos que criaram um contexto favorável ao vírus.

Brasil

Durante a mesma época, o Brasil vivia um dos períodos mais elétricos e confusos de sua história. A queda da ditadura militar (1964–1985) foi um evento muito complexo e rico da recente história política brasileira. Mas é inegável que é um processo oposto ao que ocorria nos Estados Unidos. Por lá, o neoliberalismo estava em sua ascensão; por aqui, em derrocada. Enquanto valores progressistas eram atacados nos Estados Unidos, no Brasil eles estavam em ascensão.

A comunidade se organizara muito antes, ainda durante os anos de ferro da ditadura, quando a repressão estava no seu auge. O Governo considerava a homossexualidade uma patologia e a tratava como uma atitude subversiva, como uma ameaça ao seu Governo. Nessas épocas, grupos formados principalmente por gays, lésbicas e transexuais possuíam seus espaços em bares e clubes. O termo “gueto” era usado para definir esses espaços, e diversas publicações circulavam por dentre esses.

Em 1979, uma década após a Rebelião de Stonewall, ocorre o Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais, que organizou uma lista de demandas, dentre elas o respeito constitucional pela orientação sexual. Alguns anos depois, em 1983, um grupo de lésbicas fora expulso de um bar em São Paulo. A expulsão gerou uma reação do movimento conhecido como GRAF (Grupo Ação Lésbica-Feminista), que dribla o porteiro do estabelecimento e retoma a instalação. O dia desse evento, 19 de agosto, é agora considerado o Dia Nacional do Orgulho Lésbico.

O HIV chegou no país na mesma época em que atingia os EUA. O já decadente governo militar não fez muito para evitar que o vírus tomasse frente no País. Os testes eram caros em meio a uma economia destruída, à população desinformada e aos sistemas de saúde precários. Porém, o vírus não reconhecia dificuldades políticas ou econômicas.

A AIDS atingiu desproporcionalmente gays e travestis, já que estes eram marginalizados pela ditadura militar. Logo após a queda deste Governo, diversas vitórias políticas do movimento foram conquistadas, como a despatologização da homossexualidade, que veio em 1985. Outra conquista foi o uso do termo “orientação sexual”, que implica o fato de que ser gay, ou lésbica, ou bissexual ou transgênero não ser uma escolha, mas sim o resultado da afirmação de identidade, o resultado de um processo de descobrimento.

Em comparação, a OMS só faria o mesmo em 1990. O Brasil, apesar de ser geralmente atrasado em questões sociais, andava na frente de diversos outros países do mundo nessa época. O furor de liberdade que vivíamos no pós-ditadura ajudou a estabelecer um cenário favorável às pautas do movimento LGBTQIA+. Mesmo com tudo isso, ainda tínhamos diversos problemas, principalmente causados pela falta de recursos para o combate da AIDS.

A maioria dos processos legais e médicos associados à população sempre chegaram no Brasil. É importante lembrar que, apesar de existam recentes retrocessos, o Brasil, no período da Novíssima República, teve um governo muito mais receptivo a pautas sociais.

Podemos analisar a diferença entre os Estados Unidos e o Brasil principalmente pela diferença entre as intenções dos políticos de cada nação. Reagan e o Partido Republicano dominavam a política estadunidense da época, permitindo que suas pautas conservadoras reprimissem populações já marginalizadas. Os Estados Unidos triunfavam sobre a União Soviética, estavam no auge de seu poder financeiro e político. Tinham condições de adotar qualquer política pública que desejassem para combater o HIV. Decisões deixaram de ser tomadas por conta do preconceito dos governantes, o que custou a vida de milhares de cidadãos durante a epidemia de um vírus que poderia ter sido combatido.

Já o Brasil, vivendo num período caótico pós-ditadura, tinha-se interesse e vontade de mudanças. Mas a falta de recursos por conta de uma nação economicamente falida não permitiram que muitas medidas fossem adotadas.

--

--

Fran Geyer
Diplonite

Brazilian journalist living in Sweden. My work tends to be about Global Politics, Culture, Sociology or LGBTQ+ rights